4 Lições pra vida que aprendi com meu avô
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4 Lições pra vida que aprendi com meu avô

"Vovô era dos que... conversam mesmo sem nada falarem."-  Mia Couto.

Monalisa
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"Vovô era dos que... conversam mesmo sem nada falarem."-  Mia Couto.

Eu não sei se você teve a oportunidade de conviver com seus avós, eu cresci com os meus. Tenho inúmeras lembrança com os dois, e cada um deixou sua marca em mim das formas mais variadas. São muitas e boas histórias!

Meu avô,  durante a minha infância, parecia me deseducar e mimar, enquanto me deixava lições valiosas para a vida. Com uma pitada de psicologia reversa, e com toneladas de amor que hoje para mim é pura poesia.

Quando penso no meu avô em retrospecto a primeira memória que eu recupero é sempre a do primeiro dia que fui para escola sozinha. Porque volto para esse dia? Não sei explicar, mas certamente Freud explica!

Durante um bom tempo, meu avô foi quem me levou para escola todas as manhãs, não era muito longe de casa, muitos dos meus vizinhos já iam para escola sozinhos, mas eu por bom tempo não. 

Lição 1 - Você está segura

Segurança,&nbsp;<a>Unsplash</a>
Segurança, Unsplash

Íamos sempre caminhando de mãos dadas e conversando. Nas primeiras caminhadas as regras foram estabelecidas: olhar para os lados antes de atravessar a rua, andar sempre pela calçada, e prestar atenção para aprender caminho.

Até que chegou o dia que finalmente eu iria sozinha para escola. Rua a fora, seguindo todas as recomendações milimetricamente, até que em um dos momentos de atravessar a rua olhando para um lado e para o outro, avisto meu avô que não teve tempo suficiente para se esconder dessa vez. Eu fingi não ver!

Ele me seguia de longe observando se eu obedecia as instruções dadas para o trajeto e velava por minha segurança, nessa primeira tentativa de fazer o caminho sozinha.

Eu fiz o  caminho segura  e sem medo porque sabia que ele me acompanhava de longe, ele repetiu isso muitas vezes, até se sentir seguro de me deixar ir sozinha. Ou por perceber que eu já tinha segurança para não ser mais acompanhada de longe, não sei!

E aqui ele me deu uma primeira e inesquecível lição; você está segura, ainda que eu não esteja perto, sempre te acompanho mesmo de longe. Aquelas caminhadas seguida ao longe por ele, me ensinaram que posso confiar.

Lição 2 - Quebre a sombrinha velha pra ganhar uma nova

'Rain Girl' by Dima Dmitriev.
'Rain Girl' by Dima Dmitriev.

Tempos depois, eu era  a menina com uma sombrinha infantil pra cada dia da semana, todas dadas pelo meu avô, o que nos garantiu, uma proibição (ele) de comprar e (eu) de pedir sombrinhas novas, imposta por minha avó.

E em uma das nossas caminhadas vespertinas, nos deparamos  com uma sombrinha maravilhosa, olhamos um para outro. E eis que ele me apresenta uma solução para burla a proibição.

- Quebra uma  velha que eu compro essa nova.

Até hoje me pergunto o que de tão encantador havia naquela sombrinha infantil, para que eu recebesse essa sugestão desafiadora, do meu avô. Eu não quebrei a sombrinha. Mas ele me ensinou, meio sem querer, uma outra coisa, no detalhe dessa situação. Quebre a sombrinha velha pra ganhar uma nova - me fez entender eu não devo me apegar a coisas, coisas sempre podem ser substituídas.

Lição 3 - Escolha sempre o melhor sapato.

Outra coisa que eu e meu avô fazíamos juntos era comprar sapatos.  Ele me  levou para comprar sapatos durante toda minha infância e parte da adolescência eu sempre adorei isso. Porque  o critério era bem simples entrar na loja e escolher o que eu quisesse independente do preço, desde que fossem sapatos bons e bonitos.

Um dia antes de um desses passeios até a loja de sapatos, recebi mais uma orientação da minha vó um 'limite de crédito', o sapato só poderia ser até o valor tal, você vai com seu avô, mas deve obedecer o limite.

Saímos  de casa fomos até a loja e como de costume, entre e escolha o que quiser...

Eu fiquei na vitrine que se adequava ao limite estabelecido por minha vó...Tentando escolher o menos pior e com alguma personalidade. Meu avô estranhou, ele seguia na busca pelo sapato bonito.

Até que ele perguntou: por que está olhando aí? Tem procurar aqui.

Eu relembrei do limite estabelecido,  ele disse "isso é comigo", e completou:  escolha sempre o sapato bom e bonito. Ele e sua verve Drummondiana, de ser gauche na vida, me ensinava por contrate.

O seu gosto pelo belo se materializava em sapatos, e mais uma vez, me deu uma lição  devemos preencher a vida com coisas bonitas, as que podemos pagar e especialmente aquelas que só podemos viver e desfrutar.

Lição 4 - Só se fica velho depois dos 92.

Dia do idoso, Brasil Cultura.
Dia do idoso, Brasil Cultura.

Eu cresci...nossa vida mudou. Ele seguiu me ensinando. Com sua vivacidade e disposição que pareciam nunca acabar. Viajando de um lado para outro, quando de repente, Vovô decidiu parar de viajar e em uma de nossas conversas perguntei: por que?

E ele do alto dos seus 92 anos me respondeu: - Acho que tô ficando velho. Rimos juntos e eu completei a pergunta: mas só agora? 

Ele dando outra risada, respondeu: é, porque eu era meio velho por fora, mas tinha 18 por dentro. Ele foi o primeiro a me dizer isso, depois esbarrei em um conto, que não consigo recuperar na memória título e autor... Que a personagem notava que vida tinha passado da mesma forma.

Sabiamente, ele me ensinou que  podemos esticar o prazo, para envelhecer. Você não precisa ficar velho porque chegou aos 30, aos 40, aos 50, aos 60... Você pode deixar para ficar velho quando de verdade envelhecer.  E isso talvez aconteça só depois dos 90.

Eu não sei se você vai entender muito bem as lições que aprendi...Talvez elas sirvam só pra mim, por serem minhas, e por estarem ligadas a tudo que vivemos. Meus avós me ensinavam na contraposição apontavam os limites, e me mostravam que tinha outros modos de olhar para esse mesmo limite estabelecido. Juntos eles me ensinaram que a vida é alternativa.

Hoje meu avô está com 99 anos, começou a ter lapsos de memória,  mas continua me olhando com brilho nos olhos e aquele sorriso que enche meu coração de alegria inalterável, ainda que de longe. E mesmo com a memória brincando de se esconder. Ele conseguiu me fazer recuperar todas essas lições, só de me olhar.


Para ler depois:

Nas águas do tempo - Mia Couto.

A terceira margem do rio - Guimarães Rosa.