Uma grande quantidade de fatores devem ser levados em consideração quando se analisa uma canção, e quando se encontra uma certa coincidência em várias músicas ou cantores contemporâneos, podemos dizer que surgiu ali uma corrente musical ou um...
Uma grande quantidade de fatores devem ser levados em consideração quando se analisa uma canção, e quando se encontra uma certa coincidência em várias músicas ou cantores contemporâneos, podemos dizer que surgiu ali uma corrente musical ou um movimento. Na tropicália temos uma miscelânea na interpretação vocal, um excesso na performance dos artistas, seja na voz com timbre, emissão e projeção bem próximos da Bossa Nova, seja nas variações melódicas e rítmicas, seja na harmonia hora bem trabalhada em seus acordes dissonantes, hora bem simples com a letra quase declamada, certo é que na tropicália se vive a máxima “o interprete é a música”. Um desses fatores nada tem a ver com música, mas sim com o momento histórico do período. O tropicalismo se deu em um momento muito turbulento da nossa história e por isto não se pode analisar o período musical sem entender o que se passava no país naqueles anos no campo político e também cultural. |
A década de 1960 viveu uma grande revolução histórica e social, e como não poderia deixar de ser, a cultura, mais propriamente a música, se engajou nos temas políticos de então. Basicamente podemos dividir em quatro etapas, vindo em ordem cronológica. A primeira herdou uma musicalidade bem próxima da Bossa Nova, com o canto próximo da fala, em registros médios de voz, encontrava-se nas músicas traços do Samba e do Cool Jazz, música que utilizava um piano com acordes bem trabalhados, uma caixa de bateria americana normalmente tocada com vassourinha e um baixo-acústico, tudo isto trazia ao intérprete, alguns ainda da Bossa Nova, um ar de intimidade entre o músico-cantor e o público. O segundo grupo se recusava a utilizar influências da música americana, como o Cool Jazz, por exemplo, porém, não apenas se recusavam como usavam suas músicas como instrumento para protestar contra esta influência estrangeira em nossa cultura, e contra a ordem política e social de nosso país, por isto recebendo o nome de “Canções de Protesto”. Em terceiro lugar veio um movimento chamado “Jovem Guarda”, ou “Iê-iê-iê”, como ficou conhecido por trazer para nossa cultura os fortes traços do rock inglês e norte americano, com suas frases musicais repetitivas e simples com cerca de três acordes a música toda. E em quarto lugar o alvo deste artigo o movimento conhecido como “Tropicalismo”. |
Vários artistas passaram por mais de um desses grupos, pois cada um destes movimentos era de caráter bem reduzido em suas linhas filosóficas e musicais, por este motivo o quarto grupo ganhou bastantes adeptos, mas também vários contrários ao movimento. A ideia não era utilizar isto ou aquilo, mas sim isto e aquilo, era mesclar tudo que se tinha até então: o violão, a guitarra, o violino, o berimbáu. Misturavam o rock, a música erudita, a música popular, fazendo uso exagerado de cores e roupas, se caracterizavam pelo excesso com seus cabelos compridos e desarrumados, fazendo canções de deboches e paródias musicais, protestavam com canções moderadas, chocavam sim, mas musicalmente, se utilizando da mistura de sons de instrumentos de toda qualidade, com sons típicos do cotidiano, como a captação da paisagem sonora na canção “Domingo no Parque”, com o vozerio das pessoas que se alegram ao redor, ou o som do caos em “Tropicália”, onde passa também por instrumentos típicos de orquestra e também de banda. |
Como exemplo desta crítica intelectualizada, temos “Alegria, alegria” de Caetano Veloso que com uma introdução simples de guitarra e bateria, típica do rock, resume em uma única música a ideia do movimento tropicalista. A história de um jovem que chega na cidade pra tentar vida nova, que está sem preocupações, numa tarde ensolarada e preguiçosa de Dezembro, caminha alegremente, sem pensar em problemas, na banca vê o jornal “O Sol”, começa a ler as notícias sobre política, guerra, cinema, mas encara estas notícias como um gostoso passa tempo, mas que não passa disto, ele pensa nele e não na notícia. No final ele termina de ler o jornal e sai cantarolando, alegre, querendo viver e deixando os problemas para trás, “...Por quê não? Por quê não?”. |
Por esta maneira de conduzir sua temática, o movimento foi muito criticado chegando a ser chamado de vago em suas ideias e musicalidade, pois embora fossem feitas muitas críticas político-social, o pensamento era libertar a música do dia a dia dos problemas da nação. Ainda os que faziam protesto em suas canções, a faziam para grupos de pessoas intelectualmente privilegiados, pois as letras das canções eram bem trabalhadas em códigos e jogos de linguagem, a crítica era feita de forma velada, era necessário fazer uma análise da letra para se chegar a conclusão de que se tratava de uma crítica a ordem estabelecida. |
Seguindo a linha de raciocínio de unir as partes dispares do pensamento musical até então vigente, surge logo no começo do movimento tropicalista a canção “Domingo no parque”, de Gilberto Gil. Quebrando a rixa entre Canção de Protesto e Jovem Guarda, ela vem com uma musicalidade que lembra as rodas de capoeira nordestina em suas formas rítmicas e melódicas, acrescentando a isto uma guitarra. Este casamento traz dois lados de um mesmo povo: o moderno, com o avanço tecnológico da guitarra elétrica, e a velha bagagem da cultura popular, como o berimbáu, por exemplo, sem tirar nem valorizar algum em prejuízo do outro. A melodia com letra rápida e o contraponto com palavras curtas, leva o ouvinte a entender melhor esta trágica notícia, dando a impressão ás vezes de estarmos em uma roda que vai girando, girando e que de repente, de uma forma abrupta acaba com uma faca em Juliana e João. É importante observar a riqueza de detalhes que nos leva a ver a cena deste crime, típica de um namoro no parque, como a rosa, o sorvete, a roda gigante, e nos leva a ver o vermelho do sangue, com Juliana e João estendidos ao chão. Esta canção poderia se resumir em uma manchete de jornal: “Operário mata feirante e sua namorada em parque da cidade”. Veja aqui uma letra de tragédia, ou acontecimento, do cotidiano das pessoas, como é o crime passional, sem ter nenhuma ligação com política, governo ou ideologia cultural, filosófica ou intelectual. |
Podemos ver também a junção de estilos antagônicos, principalmente na utilização de instrumentos e ritmos, na música “Tropicália”, que empresta o nome ao movimento. Nos versos iniciais percebe-se a utilização de instrumentos bastante utilizados pela Bossa Nova, mas com arranjos, podemos dizer que, modernos demais para este estilo musical, que jamais seriam utilizados pelos bossanovistas por estar em desacordo com o peso da música em relação a letra, contrapondo-se, no refrão, ao Xote, ritmo característico das regiões do nordeste. Depois de “Iracema/Ipanema”, estes dois estilos se misturam para trazer à tona o pensamento do tropicalismo. Durante toda a música Caetano mostra o ponto e o contraponto: o popular e o erudito, o simples e o clássico, o moderno e o antigo. Mas quero frisar o termino da canção onde cita a “Banda” de Chico Buarque, que não fez parte do movimento tropicalista, em contrapartida a uma das referências do sentimento tropical, Carmem Miranda, muito criticada por se alinhar com o capitalismo norte americano, fazendo uso, segundo os críticos de seu trabalho, das figuras características brasileiras, mas valorizada por outros por propagar as figuras características brasileiras. Esta música, embora rica em figuras cotidianas do brasileiro, não é, como alguns pensam, uma crítica ao governo, e isto se deve ao período em que foi escrita – ditadura militar, mas não nos anos de chumbo, os mais complicados de se viver - mas sim uma pura acentuação do pensamento tropicalista, ou seja, mostrar que é possível unir tudo e se utilizar de tudo, sem fazer inimigos pelo simples fato de pensar diferente, seja na música ou em qualquer outro aspecto da vida. |
Assista a cinco minutos desta reportagem sobre o movimento tropicália, que, segundo Caetano Veloso, se resume na indefinição de propósitos: |
REFERÊNCIAS: |
NAVES, Santuza Cambraia. “Da Bossa Nova à Tropicália: contenção e excesso na música popular brasileira”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Volume 15, Número 43. |
NAPOLIOTANO. Marcos. “A Música Brasileira na Década de 1950”. Revista USP, São Paulo, Nº 87, p. 56-73, Setembro/Novembro 2010. |
MATOS, Claudia Neiva de. “Canção Popular e Performance Vocal”. Anais do V Congresso Latinoamericano da Associação Internacional para o Estudo da Música Popular. |
Disponível em : http://www.iaspmal.net/wp-content/uploads/2011/12/ClaudiaNeivadeMatos.pdf. Acessado em : 31/10/2014. |
VELOSO, Caetano. “Alegria, alegria”. LP “Caetano Veloso – 1968”. Polygram. |
“Tropicália”. LP “Caetano Veloso – 1968”. Polygram. |
|