(Texto baseado em trecho da obra LOBISOMEM - O APOCALIPSE)
Um dos Nômades me encontrou próximo de meu refúgio - não adianta querer saber onde é, eu não vou contar - e me disse que um humano maluco queria se encontrar com um Garou e saber mais sobre as lendas e as histórias. Acabou me entregando um bilhete onde se lia: | ||
"Gostaria de conversar, se possível, no Jardim Botânico. Quase uma entrevista, na verdade uma entrevista... estou fazendo uma pesquisa pra escrever um livro. Abraço, Jonas. PS: meu telefone é o (61) 2721-7557." | ||
Liguei pro cara, confirmei dia e horário e me preparei para o pior, como sempre fiz e como sempre faço. No mundo dominado pela Sombra, você não pode baixar a guarda. O mais seguro é sempre pensar que cada babaca que você encontra por aí é o maior filho da puta na face de Gaia. | ||
Às 16h já estava no anfiteatro, deitado ao lado de minha moto, sobre a grama, curtindo a chuva leve de Outubro. Foi então que vi um carro se aproximando, não pude ouvir motor porque era um carro elétrico. Pelo menos não emitia aquele vapor do sangue da Mãe-Terra, mas tinha o cheiro da Sombra, não era 100% limpo. Nós, os Garou, podemos sentir quando algo traz em si a energia da Sombra e do poder corrompido dos homens. O carro parou um pouco distante, um sujeito franzino desceu, guarda-chuva na mão, mochila nas costas, óculos, relógio, calça jeans... com certeza era um nerd na época da escola. | ||
- Opa, você que é o Lúcio? Sou o Jonas, o cara da pesquisa. | ||
Ele estendeu a mão, eu continuava deitado. Me sentei no mesmo lugar em que estava, retribui o cumprimento: | ||
- Eu mesmo, velho. Tudo tranqüilo? | ||
- Tudo sim, Lúcio. Posso te chamar de Lúcio, não é? Ou te chamo de senhor? Não sei como me dirigir a alguém da sua raça, ou espécie... | ||
- Fica tranqüilo, Jonas. A gente só morde quando sente que é a melhor defesa, mas náo mordemos enquanto estamos na forma humana. Já abri o jogo, já disse que sou um dos lobos. o quê mais tu quer saber? | ||
- Sim, sim. Sobre a entrevista/pesquisa. Recebi algumas mensagens estranhas e comecei a pesquisar pelo nome que havia nelas: Garou. Esse nome me levou ao termo mais comum, LOBISOMEM e daí eu encontrei muita coisa na internet, em livros que falavam sobre os mitos e lendas. | ||
- E tu encontrou muita coisa que não faz sentido... muita coisa que parece mais mentira do que verdade, né não? Deixa eu ver: Europa, vikings, nórdicos, idade média... | ||
- Isso mesmo. Consegui traçar uma linha do tempo desde a antiguidade até nosso tempo. Pensei que fosse coisa de jogos, de ficção. Pensei que não seria possível existir nenhum lobisomem na América do Sul, muito menos no Brasil. | ||
- Mas a gente existe aqui, cara. Desde muito tempo. Mas aí... como que tu ficou sabendo de mim? Quem te contou sobre a gente? | ||
- Então... um amigo me disse que se eu quisesse saber mais sobre essas lendas e sobre outras coisas que acontecem no mundo que ninguém desconfia, eu deveria ir ao Bar do Viking. É um bar novo, fica na 416 Sul. Bem grande; o dono é um senhor alto, barbudo, loiro. Ele tem tranças na barba e no cabelo e se veste como um viking. O tema é viking, então o lugar mais parece uma taberna do que qualquer outra coisa. | ||
- Saquei, mas tu ainda não disse como que tu ficou sabendo de mim ou dos Garou aqui em Brasília. Desembucha, mano. Sem grilo. | ||
- Lá eu encontrei uns caras, uns motoqueiros. O nome do clube que estava nas jaquetas era GUARÁS DE GAIA. Quem me contou sobre você foi um cara que chamavam de Quebrado... | ||
Hmmm, Quebrado. Da última vez que vi esse cara foi quando ele recebeu o apelido. Foi uma briga feia entre dois de nós. Ele ficou ferrado, mas o outro Garou quase morreu... O engraçado é que o apelido pegou não porque ele ficou moído, mas porque o rabo dele quase foi arrancado. Ficou quebrado, pendurado, todo torto. | ||
- É, eu conheço o cara. Tinha tempo que não ouvia falar dele. Se foram os GUARÁS que te contaram de mim, velho... devem ter falado um bando de merda, devem ter dado risada também. A gente viveu umas paradas bizarras, cara. | ||
- Eles contaram de algumas brigas, falaram de uns zumbis, falaram de caçadores e muitas outras coisas. O Quebrado mesmo disse que eu tinha que começar a entrevista perguntando da tua primeira transformação. | ||
É... o Quebrado sabia mesmo o que falar pro nerd, cara. João Quebrado é um dos poucos que merece o respeito e o reconhecimento de qualquer Garou. A briga que rendeu o apelido foi provocada por um dos que se alinharam com a Sombra, mas essa é outra história. Levantei da grama e me encostei na moto... | ||
- Minha primeira transformação, cara... Se tu tá com tempo, Jonas, eu te conto como aconteceu: | ||
Lembro que era uma sexta-feira. Eu tava puto, cara. Minha esposa sumiu porque não agüentava mais o perrengue e a falta de grana. Na verdade ela tinha grana, eu é que vivia de bico em bico, mano. Cheguei no apartamento depois de um dia de muita correria e só tinha meus livros, minhas roupas, computador e videogame no chão da kitnet. Um bilhete dela que dizia que tinha que me virar pra sair de lá porque os caras que iam pintar o bagulho iam começar na segunda. | ||
Então eu peguei tudo que eu podia carregar na moto e levei pra casa da minha coroa. Voltei pra casa, peguei umas roupas e botei na mochila. Passei no mercado e comprei umas coisas pra comer no meio do mato, cara. Fui até o Parque da Floresta Nacional, onde tem a Água Mineral, o clube, saca? Sou amigo dos vigias lá, os caras sempre me deixam entrar quando quero dar uma espairecida, eu sempre ajudo eles a tocar de lá qualquer babaca que vá fazer farra entrado por alguma cerca caída ou sei lá como. | ||
Fui a pé até uma clareira que eu adoro, velho. Bem quieta, tu só ouve as pacas correndo à noite e outros bichos. O silêncio ali é de outro mundo. E eu lembro certinho, cara, quando aqueles cuzões daqueles motoboys começaram a fazer arruaça ali perto. Eu já tava puto da vida e ainda tinha que aturar aqueles cretinos aloprando minha paz, velho... | ||
Eu acordei caído na lama. Pensei que tinha chovido, mas não era chuva. Tinha cheiro de ferro e eu sentia o cheiro da terra também. Abri os olhos e vi a luz de uma fogueira, pelo menos parecia uma fogueira. levantei a cabeça e vi um velho sentado numa pedra. Eu tava muito tonto sei lá por que... O velho tava vestido de branco, segurando um cajado. Tentei ficar de pé e foi quando ele correu pra segurar e falou comigo: | ||
- Calma, criança. Só respire fundo. Tente relaxar. Tente não pensar muito. Fique calmo." | ||
Eu só consegui olhar pra ele... tentei perguntar alguma coisa, mas minha voz não saía, só sentia a garganta seca, pegando fogo. | ||
- Sou um amigo, criança. Na verdade sou um... primo. Vou te ajudar a agüentar o resto da noite. A gente tem algumas horas antes de dar o fora, então respire devagar e se acalme. | ||
Eu ainda não tava entendendo nada do que tava acontecendo ou do que tinha acontecido. Será que eu tinha apanhado dos motoboys? Eu tinha feito alguma coisa com a moto e ela pegou fogo, explodiu e me jogou no chão? Não tinha como saber, cara. Eu tava confuso e ainda tava puto pela confusão que minha vida tava. | ||
- Criança, você deveria saber que isso ia acontecer, mais cedo ou mais tarde. Você teve sonhos? Às vezes são os sonhos. Nos sonhos você está correndo de quatro, farejando sangue a quilômetros de distância, sente o luar... Ou talvez fossem os outros garotos, enchendo o seu saco e depois se afastando do nada, como se pudessem ver algo de perigoso em você. Você percebeu isso? Se não aconteceu ainda vai acontecer. Sempre quando a gente cresce as coisas pioram. Chega a adolescência, os sonhos pioram. Na fase adulta os sonhos são piores ainda. A gente sente como se tivesse algo preso dentro da gente. Os colegas de classe começam a te evitar. Talvez os professores percebessem que você andava meio esquisito e começaram a indagar se você estaria usando drogas. Os colegas de trabalho costumam se comportar do mesmo jeito. E tudo isso ajudando à pressão aí dentro aumentar. | ||
O velho me estendeu um copo, uma lata, uma caneca, sei lá. Mandou eu beber daquilo. Era quente, um chá, talvez. Mesmo quente, aquele negócio ajudou a melhorar a garganta. Senti a voz voltar. Perguntei: | ||
- O que que aconteceu aqui, cara? - O velho seguiu falando como se não tivesse me ouvido... | ||
- Eu sei bem como é esse lance, toda essa história. Principalmente a parte que vem agora. Foi tanta pressão, tanta gente e tanta coisa enchendo teu saco que algo dentro de você se rompeu. Quando você se deu conta você estava coberto de sangue, em cima de uma pilha de tripa, carne e ossos que um dia foram uma pessoa ou pessoas. | ||
Quando ele disse isso foi que eu me toquei... eu não tava na minha clareira. Eu tava onde os motoboys tavam, mano. Vi as motos com aquele baú na garupa, vi os saruês que eles tavam torturando e que tavam fazendo barulho... vi os quatro mortos ali, rasgados, estripados... QUE PORRA É ESSA QUE TÁ ACONTECENDO, CARALHO? Era a única coisa que passava na minha cabeça. | ||
- Mas está tudo bem, criança. Tudo bem... Dessa vez, está tudo bem. Esses caras aí estavam maltratando Gaia e estavam no lugar errado, na hora errada. Era você ou eles. Pelo menos tu te saiu bem, um deles estava armado com uma .380. Os outros três puxaram facas, mas não tinham a menor chance. Você só precisa aprender um pouco sobre controle. | ||
Eu me sentei, continuei bebendo o chá e me toquei que o velho sabia o que tinha acontecido comigo, como se ele tivesse vivido a mesmo coisa que eu... | ||
- É, você adivinhou. Aconteceu comigo também. Na primeira vez e eu fiquei tão assustado quanto você. | ||
Já tinham passado umas duas horas desde o ocorrido. Eram umas três da madrugada, cara. Foi quando ele me deu um tapinha no ombro... | ||
- Vamos, filhote. É hora de sair daqui. | ||
- Quem é você, Velhote? Como é que tu sabe de tudo isso? | ||
- Meu nome é Ivan. Esse cajado é pra defesa e pra me apoiar quando necessário, criança. Em outras situações eu utilizo as armas que a Mãe me deu. Como você fez com os coitados aí... Ande, vamos logo. | ||
- Foi mais ou menos esse o diálogo que eu tive com o Ivan. Faz tempo que aconteceu, mas me lembro como se fosse hoje. Ainda mantemos contato, somos do mesmo Caern, andamos com o mesmo rebanho - que eu não gosto de chamar de rebanho, pra mim é a matilha, a alcatéia. | ||
(IMAGEM DA CAPA - fundo com árvores, um carro e uma moto). |