“14 de junho… Está chovendo. Eu não posso ir catar papel. o dia que chove eu sou mendiga. Já ando mesmo trapuda e suja. Já uso o uniforme dos indigentes. E hoje é sábado. Os favelados são considerados mendigos. Vou aproveitar a deixa. A Vera ...
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“14 de junho… Está chovendo. Eu não posso ir catar papel. o dia que chove eu sou mendiga. Já ando mesmo trapuda e suja. Já uso o uniforme dos indigentes. E hoje é sábado. Os favelados são considerados mendigos. Vou aproveitar a deixa. A Vera não vai sair comigo porque está chovendo. (...) Ageitei um guarda-chuva velho que achei no lixo e saí. Fui no Frigorífico, ganhei uns ossos. Já serve. Faço uma sopa. Já que a barriga não fica vazia, tentei viver com ar. Comecei a desmaiar. Então eu resolvi trabalhar porque eu não quero desistir da vida.” | ||
Esse é um trecho do livro Quarto de despejo: diário de uma favelada, escrito por Carolina Maria de Jesus e publicado em 1960. | ||
A situação vivida por Ilza Ramos Rodrigues, humilhada por Bolsonarista após revelar seu apoio a Lula, lembrou-me alguns dos relatos descritos por Carolina em seu diário. Seu livro, aliás, é fundamental para todo e qualquer brasileiro que deseje conhecer a realidade de nosso país. | ||
Apesar dos mais de 60 anos que separam a publicação de Quarto de despejo e o lamentável episódio envolvendo Ilza, a população brasileira ainda sofre enormemente com a desigualdade social, a insegurança alimentar, a falta de saneamento básico e outros abusos que se sobrepõem. | ||
Mas essa desigualdade, felizmente, não é reproduzida no processo eleitoral. | ||
O que o Bolsonarista falhou em perceber (e muitas pessoas das classes média e alta brasileiras também falham diariamente) é que seu voto possui exatamente o mesmo peso do voto de Ilza. Todos somos cidadãos brasileiros, com direitos políticos iguais. No Brasil real, não existe essa odiosa alcunha de “cidadão de bem”. | ||
Assim, Ilza apenas responde racionalmente, por meio do voto, à atenção que lhe foi dada pelos políticos brasileiros. | ||
Ainda nas décadas de 1950 e 1960, durante o governo JK, Carolina Maria de Jesus reclamava da falta de atenção despendida pelos políticos aos pobres e favelados da capital paulista. Segundo a escritora, políticos só apareciam na favela para fazer campanha. Depois desse período, desapareciam. | ||
Em nível nacional, o único político que realmente deu atenção programática ao brasileiro pobre foi Lula. Seu programa Fome Zero, liderado pelo agrônomo José Graziano da Silva, rendeu prêmios internacionais ao Brasil, foi exportado como modelo de política pública para países latino-americanos, africanos e asiáticos, além de ter alavancado o nome de Graziano ao cargo de diretor-geral da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura). | ||
Lula ainda expandiu programas sociais e criou o Bolsa Família - tão criticado pela pela direita reacionária, na história recente, e hoje instrumentalizado por Bolsonaro na tentativa desesperada de conquistar o voto dos pobres. | ||
O Brasil trilhava um caminho que, se não era perfeito, seguia firme na direção da erradicação da fome. O governo Bolsonaro em muito contribuiu para desfazer essa necessária conquista. | ||
Veja o que diz Ilza sobre Lula, em entrevista à Folha de São Paulo: “ah, eu quero falar com ele. Aquele vozeirão dele. Eu admiro ele, e não é por política, é pela pessoa que ele é, ele sempre foi por nós, ele sempre foi pelas pessoas pobres”. | ||
Não à toa, ela representa o brasileiro pobre, que vota de forma extremamente racional (ao contrário de muitos Bolsonaristas) e correspondente às demandas que entende serem urgentes para o país. | ||
Na pesquisa IPEC, divulgada ontem à noite, Lula chega a 47% nas periferias, contra apenas 25% de Bolsonaro. No recorte de eleitores que estudaram até o ensino fundamental, chega a 55% contra 27%. Entre pretos e pardos, 50% a 28%. | ||
No Nordeste, a diferença alcança 39 pontos percentuais (61% a 22%)! | ||
Bolsonaro está à frente apenas na região Sul (41% a 36%), região com menor desigualdade de renda no país, distribuição mais equitativa de terra e com maior percentual de brancos. | ||
De Carolina Maria de Jesus a Ilza Ramos Rodrigues, o brasileiro pobre - que sofre com a insegurança alimentar e com a fome, que é humilhado nos semáforos e nas portas de padarias e supermercados - pode, pelo menos uma vez, igualar-se aos que estão acima. | ||
Seu voto é soberano, como o de qualquer outro cidadão, e deve ser respeitado. | ||
Quaisquer constrangimentos, seja de “cidadãos de bem caridosos” ou de empregadores que assediam seus colaboradores, não surtirão efeito, sinto dizer. | ||
O Brasil é um país majoritariamente pobre e essa realidade fica escancarada, para a surpresa de alguns, em eleições como a atual. |