Ícaro e Narciso
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Ícaro e Narciso

“Olhei no espelho, Ícaro me encarou

Vitória Britto
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“Olhei no espelho, Ícaro me encarou

Cuidado, não voa tão perto do Sol

Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei

O abutre quer te ver de algema pra dizer: Ó, num falei?!”

- Emicida

A consciência da negritude é um processo que se inicia tarde para muitos dos meus. Ouço pessoas próximas relatando experiências em que foram vítimas do racismo escancaradamente, mas não se davam conta, uma vez que se supõe que o povo preto precisa se acostumar com a violência diária, velada e exposta a qual é submetida.

Lia Vainer Schucman escreveu que o racismo nem sempre é exposto de forma a demonstrar repulsa ou impedir que se mantenha relações sociais para com o grupo que é atingido, mas que na maioria das vezes, é o olhar que é tido, que demonstra pena, dó, e uma noção narcisística de que ao manter negros em seu ciclo social, e supostamente colaborarem com a luta antirracista – Hashtags #PretosnoTopo, bravo! – estariam nos fazendo um favor, ao permitir que compartilhássemos  da “superioridade” branca.

A criança negra que fui, se lembra muito bem das advertências do meu pai, quando eu usava uma roupa “despojada”, ou o discurso feito sempre que eu ia mal em alguma matéria na escola, sendo lembrada sempre de que eu precisava ser melhor, entrar numa faculdade, ter um futuro, porque não existia outra alternativa para uma pessoa preta, se não, ser melhor, já que ser medíocre, é privilégio branco.

O que atravessa uma pessoa negra, que ascende socialmente sem ter as oportunidades de uma elite branca quando lhe é dito, por um homem branco, cis, hétero que “Nós pagamos o seu salário”?  A fala elitista e narcisista do apresentador global Tiago Leifert, retrata perfeitamente a branquitude que acredita que o fato de estarmos ocupando espaços, é um favor que foi feito, é a mesma branquitude que afirma que ações afirmativas são esmolas e não são justas, mas burlam o sistema para ingressar em universidades com as mesmas, a mesma branquitude que se apropria diariamente da nossa cultura, que fica milionária com as nossas ideias e criatividade, a branquitude que sozinha, sem que um negro estivesse nos bastidores, suando, construindo, lutando por um pequeno espaço para viver de forma decente, sem privilégios e sem pais ricos, não conseguiria metade do que tem.

Ícaro Silva, um ator, dublador, cantor, negro, queer, é muito maior do que o filho de algum milionário cheio de contatos. Ícaro é rei, e deve voar até onde ele quiser.

Trecho da tréplica feita por Ícaro para Tiago Leifert. <i>Reprodução: Instagram </i><br>
Trecho da tréplica feita por Ícaro para Tiago Leifert. Reprodução: Instagram