Antes que fechem a porta
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Antes que fechem a porta

O AutoTune e os imitadores podem até tentar, mas jamais vão conseguir. Há uma característica na voz de Bob Dylan impossível de ser reproduzida: a sua autenticidade. Sem ela, suas imitações caem no grotesco. Sem ela, os covers que fazem de sua...

Gab Piumbato
4 min
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O AutoTune e os imitadores podem até tentar, mas jamais vão conseguir. Há uma característica na voz de Bob Dylan impossível de ser reproduzida: a sua autenticidade. Sem ela, suas imitações caem no grotesco. Sem ela, os covers que fazem de suas canções são apenas música sem alma.

E, pior, sem verdade.

No riso e nas lágrimas, no calor tropical e na névoa tripeira, a voz de Bob Dylan está sempre comigo. Um dos prazeres de ouvi-lo sempre e uma vez mais é descobrir novas entonações, diferentes melodias e emoções num verso - ou, no limite, numa simples palavra.

A palavra certa que faça o mundo andar, como cantou o Herbert Vianna. Ou a inflexão de voz correta que mantenha o universo nos eixos. Ou que bagunce o coreto do tempo. If the Bible is right, the world will explode.

A voz de Dylan canta e conta a história humana. É evocativa e direta, crua e esquiva, empoeirada como um livro de outro milênio, cruel como um (falso) profeta.

É um instrumento afiado pelo desgaste do tempo e da própria existência, um atestado do seu poder mágico de trovador. As cuspidas, os sussurros, as torções a que submete cada nota são alguns dos efeitos usados para comunicar a sua mensagem.

Gosto de canções que mudam o verso final do refrão, como Soul to Squeeze (RHCP), ou Ascension e Out of Time, que alteram o sentido do verso com um fraseado diferente na repetição final.

Repare como Damon Albarn modula "out of time" por quatro vezes nos últimos segundos:

E como o verso "Ascending endlessly and I don't even have to try" de Frusciante também se transforma conforme as repetições avançam em direção à ascensão espiritual:

Muitas vezes as mudanças que Dylan imprime ao cantar os seus versos em cima do palco causam estas duas sensações: a de que por um instante estamos fora do tempo e a de que a sua música eleva o espírito. Esta semana Tryin' To Get To Heaven capturou a minha atenção novamente.

Uma canção contém o universo e o universo tem muitas faces, um dia é diferente do outro e cada canção de Bob Dylan absorve e reflete, contesta e redefine esses clichês. Dito de outra forma, sua voz é a própria natureza enigmática da realidade, nos confrontando com a morte e o humor, o fervor espiritual e o apelo a forças que não conseguimos compreender.

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tradução de Angelina Barbosa e Pedro Serra
tradução de Angelina Barbosa e Pedro Serra

Do centro da desolação, "Tryin' To Get To Heaven" é um passeio pela terra devastada do blues, do folk e do gospel. Dylan pediu ao engenheiro Mark Howard para distorcer o som de sua gaita na gravação original.

Já estive em rodoviárias por várias cidades no interior deste país desgraçado. Já andei também por rodoviárias de Portugal. Esta parelha de versos descreve com perfeição por que todos esses locais são iguais, seja qual for a sua localização:

People on the platforms, waitin' for the trains
I can hear their hearts a-beatin', like pendulum swingin' on chains.

Mais impressionante são os versos imediamente posteriores:

When you think that you've lost everything,You find out you can always lose a little more

No show de 2012 aqui no Brasil, Bob passava a maior parte do tempo tocando gaita nesta canção. Como neste vídeo, do ano anterior:

Já em 2014, no alvorecer de seu projeto sinatrístico, o mago do pedal steel Donnie Herron passou ao centro, transformando "Tryin' To Get To Heaven" numa oração meditativa:

Como camparação, ouça o perfeito cover do Bowie: asséptico, pura superfície, perfeito em sua inocuidade. Isto é o que chamam de pop:

Das várias encarnações desta canção, a próxima parece o próprio Frankstein. É preciso ouvi-la várias vezes para a) compreender as mudanças na letra, b) perceber todos os instrumentos, que parecem ir cada um numa direção, c) apreciar o solo matreiro, de pouquíssimas notas, que Dylan martela no piano (lembrando outro solo safado, o de Ira Kaplan em "Sometimes I Don't Get You"):

Aqui, em sua reescrita mais recente, é como se Dylan usasse tudo o que está em suas mãos para chegar próximo do céu. Em vez do desespero, a urgência. Em vez de uma vaga tentativa, determinação.

Os cínicos podem se regozijar com a piada de que a Never Ending Tour nunca tem fim pois Dylan precisa pagar as contas dos seus inúmeros divórcios e fihos espalhados por aí.

É uma boa piada.

O lado verdadeiro é que o artista só tem a sua arte para dar - e enquanto Dylan não chegar ao céu, nós podemos levantar o véu e ver um bocadinho do paraíso musical.


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Escrevi a melhor discografia comentada de Bob Dylan em português. Me siga no Twitter.