Um novo modo de pensar, um novo modo de compor
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Um novo modo de pensar, um novo modo de compor

Lançada originalmente em 1979, para o disco Slow Train Coming, "Gonna Change My Way of Thinking" é uma declaração de intenções. Adoro o cowbell na versão original. O riff básico tem um sabor claptoniano (ou melhor, sabe mais a J.J. Cale). Log...

Gab Piumbato
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Lançada originalmente em 1979, para o disco Slow Train Coming, "Gonna Change My Way of Thinking" é uma declaração de intenções. Adoro o cowbell na versão original. O riff básico tem um sabor claptoniano (ou melhor, sabe mais a J.J. Cale). Logo na primeira estrofe, contra um blues pesado, Dylan afirma:

Gonna change my way of thinking

Make myself a different set of rules

Gonna change my way of thinking

Make myself a different set of rules

Gonna put my good foot forward

And stop being influenced by fools

Fernando Sabino dizia que o tabuleiro de damas não era preto com quadrados brancos nem branco com quadrados pretos. É bastante claro quem são os tolos - os ímpios, os que merecem a danação eterna. A aposta nessa divisão se intensifica no desenrolar da letra, e o interesse de quem está sendo condenado também diminui conforme a violência do fervor se avoluma.

Mas como se muda o modo de pensar?

Milhares de livros de auto-ajuda e de pesquisas científicas aparecem todos os anos, com novas descobertas e insights. No caso de Dylan, as regras diferentes envolviam um poder mais alto, um terreno menos terrestre e uma autoridade indisputável. Um retorno para a religião - ou melhor, uma conversão verdadeira.

Este novo modo de pensar era uma lente pela qual condenar e salvar os outros. Era também uma voz, mais antiga do que o vento, capaz de enunciar a Verdade. E por fim era também um renascimento em público: Dylan começaria a turnê evangélica tocando apenas as novas canções, como se o passado não existisse. E, de fato, desse novo ponto de vista, as canções políticas folk, a música lisérgica da revolta, a invenção de uma América no porão de Big Pink, a Rolling Thunder Tour - tudo isso era A.C. Antes da Conversão.

Ainda hoje temos alguma dificuldade em compreender como o maior compositor da música pop da segunda metade do século XX, menos de duas décadas depois de seu surgimento para o estrelato, renegaria toda a sua trajetória. Agora parece apenas um procedimento comum, algo que a Lady Gaga precisa fazer a cada três anos para se manter relevante.

Mas há uma mudança de pensar ainda maior. Estou falando da regravação desta canção em março de 2002 para a compilação Gotta Serve Somebody: The Gospel Songs of Bob Dylan. Mavis Staples, que participa do dueto, lembra do trabalho de Dylan para reescrever esta letra quase que em sua totalidade. Mais uma amostra do seu gênio - ou então apenas puro exibicionismo para sua antiga namorada. Dylan pediu Mavis em casamento mas ela não aceitou.

A mais famosa integrante da família Staples e Mr. Zimmerman fantasiado de torcedor do Boavista
A mais famosa integrante da família Staples e Mr. Zimmerman fantasiado de torcedor do Boavista

Jeff Tweedy conta uma história divertida em sua autobiografia Let's Go (So We Can Get Back):

Mavis chama Bob Dylan de "Bobby", o que me deixa um pouco enciumado. Mas Dylan a pediu em casamento nos anos 60, e ela disse não, então eles têm uma história anterior a mim em cerca de meio século. De fato, uma das minhas outras interações na tour com o Dylan foi quando ele me disse: "Diga à Mavis que ela deveria ter se casado comigo!". Eu disse a ele que passaria a mensagem adiante, então disse a ela e ela me pediu para relembrá-lo de que ela ainda estava disponível. Quando eu o vi do lado do palco na noite seguinte, eu disse a ele o que Mavis havia dito, e ele riu e respondeu: "É? Eu queria mesmo!". Ser literalmente um intermediário num flerte divertido entre Mavis e Bobby é provavelmente o pináculo da minha carreira. Eu deveria emoldurá-lo. Não tem como ficar melhor do que isso.

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Eis a nova letra:

Change my way of thinking, make myself a different set of rules

Change my way of thinking, make myself a different set of rules

Put my best foot forward, stop being influenced by fools

I’m sittin’ at the welcome table, I’m so hungry I could eat a horse

I’m sittin’ at the welcome table, I’m so hungry I could eat a horse

I’m gonna revitalize my thinking, I’m gonna let the law take its course

Jesus is calling, He’s coming back to gather up his jewels

Jesus is calling, He’s coming back to gather up his jewels

We living by the golden rule, whoever got the gold rules

The sun is shining, ain’t but one train on this track

The sun is shining, ain’t but one train on this track

I’m stepping out of the dark woods, I’m jumping on the monkey’s back

I’m all dressed up, I’m going to the county dance

I’m all dressed up, I’m going to the county dance

Every day you got to pray for guidance

Every day you got to give yourself a chance

Storms are on the ocean, storms out on the mountain, too

Storms are on the ocean, storms out on the mountain, too

Oh Lord, you know I have no friend like you

I’ll tell you something, things you never had you’ll never miss

I’ll tell you something, things you never had you’ll never miss

A brave man will kill you with a sword, a coward with a kiss

Esta canção me interessa aqui como semente de um método de composição que alcançaria o seu auge em Rowdy and Rough Ways (2020). Vários versos da nova letra são títulos de canções folk e gospel tradicionais, eis alguns:

"Gonna Sit At The Welcome Table" (1874)

"When God Comes & Gathers His Jewels" (Hank Williams, 1947)

"The Storms Are On The Ocean" (Família Carter, 1927).

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Ao adicionar títulos de outras canções como versos desta (nova) composição, Dylan plantou as sementes do que seria o tour-de-force de "Murder Must Foul" (quase uma centena de citações a outros artistas ou obras de arte). A enumeração (caótica) é um procedimento relativamente comum na poesia moderna, tendo já sido estudado por vários críticos, em especial por Leo Spitzer. Walt Whiman, um dylanesco antes do próprio Bobby, já era adepto desse recurso. Mas a frequência de versos alheios citados por Dylan alcança uma intensidade inédita na canção americana (embora na poesia vanguardista atual seja possível encontrar poemas feitos apenas de palavras alheias).

Dylan realmente operou um milagre nesta canção - e ficou tão orgulhoso do seu resultado que a tornou a música de abertura de seus shows durante um bom período entre 2009 e 2011. Aqui a última vez em que ele e sua banda interpretaram-na nos palcos:

O que era uma canção unidimensional (crentes x pecadores) se abriu não só para a incorporação de outras referências - enfim, a canção americana, da qual Dylan é filho, mestre e inventor - mas para a ambiguidade sexual. Não deve passar despercebida a tensão entre Bobby & Mavis, mesmo para quem sequer conhece a história amorosa dos dois.

"Todo dia você tem de dar uma chance a si mesmo". Esta pérola de sabedoria parece uma frase motivacional de perfis de auto-ajuda no Instagram. Mas se você é um Bob Dylan, você sabe como fazer essa frase brilhar. Uma chance para a canção renascer. Um novo modo de pensar. Uma regra diferente para compor. Alguém pode dizer que é tudo culpa da Mavis Staples.

E se for, temos mais uma razão para amá-la. Certo, Bobby?

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