No. 3 | Quem policia a sua memória?
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No. 3 | Quem policia a sua memória?

Em "A Polícia da Memória", de Yōko Ogawa, questões de identidade, memória, opressão e resiliência são abordadas com uma suavidade dolorosa.

iana a.
7 min
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Em "A Polícia da Memória", de Yōko Ogawa, questões de identidade, memória, opressão e resiliência são abordadas com uma suavidade dolorosa.

Eu não tinha lá muita intenção de escrever uma news só sobre “A Polícia da Memória”, mas uma vez que o livro foi lançado no Brasil, em tradução inédita de André Cunha pela Editora Estação Liberdade, me parece bastante adequado explorar um pouco ele porque, minha nossa, ele explorou meu emocional e é uma leitura que recomendo demais para qualquer um remotamente interessado nos tópicos abordados.

O romance de Yōko Ogawa, originalmente publicado no Japão em 1994, foi traduzido para o inglês apenas em 2019, e desde então ganhou vários prêmios, como o National Book Award for Translated Literature em 2019 (EUA), o International Booker Prize (2020), além de ser finalista no World Fantasy Awards do mesmo ano; e agora ganha sua primeira tradução para o português.

O que uma tradução para o inglês não faz, né, meus amigos?

Talvez tenha sido essa época de pandemia socialmente estabelecida (e ignorada por muitos), sem previsão de fim, com o horror necropolítico se desdobrando diante de nossos olhos, que tenha contribuído para o impacto dessa história em mim. Ou não.

Na imagem: capa de três edições do livro, a primeira edição em japonês (1994), edição em inglês, e a edição brasileira lançada em 2021.<br>
Na imagem: capa de três edições do livro, a primeira edição em japonês (1994), edição em inglês, e a edição brasileira lançada em 2021.

Em A Polícia da Memória, lemos a história escrita em primeira pessoa pela autora-protagonista (no romance, ninguém tem nome, mais próximo de uma identidade é R., o editor que é referenciado pela inicial). As angústias começam a brotar daí — é um livro sobre o desaparecimento de memórias narrado em um livro de memórias.

Ao longo do romance, temos dois livros em um: o primeiro é, claro, A Polícia da Memória, e o segundo é o romance que a própria autora-protagonista está escrevendo e do qual podemos ler trechos ao longo da história. Um é tão interessante quanto o outro e caminham de mãos dadas, se tornando cada vez mais próximos ao longo da narrativa, ambos com seus próprios elementos do inexplicável se desdobrando.

Na ilha onde a autora mora, uma dinâmica catastrófica (distópica? Necropolítica?) está em vigor há anos e é socialmente aceita pela população: o “desaparecimento” de objetos e conceitos, não apenas sua fisicalidade (quando se trata de algo físico), mas, também, sua memória na mente dos moradores da ilha e seu substantivo.

Apesar de começarmos o livro lendo uma memória da autora sobre sua mãe — que era uma dessas raras1 pessoas que não esqueciam —, o primeiro desaparecimento que é descrito em detalhe para o leitor é o dos pássaros.

Quando os pássaros desaparecem, as pessoas os esquecem. Juntam-se nas praças e parques e aqueles que mantinham os animaizinhos como companheiros abrem suas gaiolas para esquecer da existência daquelas criaturas. O animal, sua presença e, consequentemente, o substantivo que o identifica desaparecem da memória de (quase) todos. Quando isso acontece, a autora percebe que também se esquece da afetividade do pai, o ornitólogo. Enquanto os pássaros voam para longe da memória e dos céus da ilha2, a autora se vê perdendo memórias afetivas, sobre o par de binóculos que o pai usava com ela para observar pássaros, sobre as visitas que ela lhe fazia no observatório quando criança, sobre as tardes sentadas no colo dele identificando bicos, cores, plumas.

Isso acontece logo nas primeiras páginas do livro e estabelece bem claramente o tipo de jornada emocional que o leitor irá fazer através das memórias da autora.

Mas onde entra a polícia em tudo isso? Ora, na repressão, é claro.

Os “desaparecimentos” são estabelecidos por qualquer coisa não identificável, mas definitivamente formal. Uma instituição (pública?). E tal instituição possui a Polícia da Memória nas ruas da ilha, que tem como função garantir que os desaparecimentos sejam efetivos — se alguém tentar esconder um passarinho de estimação, por exemplo, será detido, tal passarinho será apreendido e, caso a pessoa ainda se lembre do animal mesmo depois disso, ela será escoltada pela polícia para… algum lugar. E desaparecerá. Mas não como o passarinho — as pessoas se lembrarão dela, mas evitarão ao máximo mencioná-la em público ou até mesmo em suas vidas privadas. É assim que a mãe da autora “morre” quando ela ainda é uma criança: levada pela Polícia da Memória por ser incapaz de se esquecer das coisas desaparecidas.

Para os moradores da ilha, os desaparecimentos se tornam naturais. Não é possível sentir falta daquilo que não se lembra. Chapéus, pássaros, sinos, perfumes, cartas, barcos, fotos, dicionários, calendários, rosas… tudo desaparece, deixando apenas buracos nas pessoas que não são preenchidos por memória ou sequer saudade.

Na imagem: citação do livro, em inglês. Em tradução livre: "Mas à medida que as coisas ficam mais vazias, mais cheias de buracos, nossos corações também se esvaziam, como que diluídos. Acho que isso mantém as coisas em equilíbrio."<br>
Na imagem: citação do livro, em inglês. Em tradução livre: "Mas à medida que as coisas ficam mais vazias, mais cheias de buracos, nossos corações também se esvaziam, como que diluídos. Acho que isso mantém as coisas em equilíbrio."

Há apenas buracos e a Polícia da Memória para garantir que isso, sim, exista. Há focos de resistência: pessoas que não se esquecem, que guardam objetos e memórias, que se escondem em porões e sótãos de famílias solidárias, ou mesmo que fingem se esquecer e se mantêm escondidas à vista de todos, arriscando serem levadas pela polícia e desaparecerem. Não fica claro qual o objetivo final dos desaparecimentos, e está a critério do leitor imaginar razões por trás disso. A verdade, talvez, é que não haja razão alguma.

Em certo ponto, a autora-protagonista questiona se as pessoas daquela ilhota conseguem criar coisas na mesma velocidade em que os desaparecimentos acontecem. Tolhidas de memórias, cheias de espaços vazios, pouco se cria naquele lugar.

A questão da resiliência a todo custo, a despeito de todas as privações que as pessoas na ilha passam, está presente desde as primeiras páginas do livro. Até que ponto podem as pessoas resistir às incontáveis perdas que, é verdade, elas não “sentem” (pois não se lembram), mas que deixam enormes espaços vazios dentro de si, tolhindo sua comunidade, suas identidades, suas histórias e criatividade?

A autora-protagonista decide esconder, em sua casa, uma pessoa que se lembra das coisas. Mais especificamente, seu editor, R. É uma relação complexa, por vezes dolorosa, especialmente depois que os romances desaparecem e a autora deixa de ser autora e torna-se incapaz de compreender o conceito de “escrever ficção”, sentindo-se cada vez vazia.

Acho que o mais fascinante do livro é que, ao contrário de grandes nomes da ficção distópica que já abordaram questões similares, o foco de Ogawa está muito mais no indíviduo, e como, ao apagá-lo aos pouquinhos, se destrói a comunidade. Quanto menos memórias a autora e os moradores da ilha têm, maior são as dificuldades socioeconômicas, emocionais (e, eventualmente, físicas) que eles precisam suportar.

A cada item perdido, a cada afeto esquecido, a autora vai ficando irrecuperavelmente vazia. Poderia-se supor que a dor maior seria lembrar de coisas, conceitos e pessoas que não temos mais, mas no romance de Ogawa, a perda absoluta da memória significa também a perda de si. No fim do livro, sabemos mais sobre a autora-protagonista — somos mais a autora-protagonista — do que ela mesma, pois nossa memória sobre a vida dela está intacta, enquanto que a dela desaparece progressivamente. Essa, talvez, seja a maior tragédia do livro.

Ogawa leva a questão desse desaparecimento até as últimas consequências. Não quero estragar o final, então vou encerrar por aqui minha divagação sobre esse romance. Terminei a leitura extremamente tocada, pensando sobre minhas próprias memórias, sobre a memória coletiva, sobre o impacto que certos apagamentos têm em nossas comunidades (em qualquer escala que seja). Quem é a Polícia da Memória por aqui? Quem dita o que lembramos e o que devemos esquecer, e a que custo “esquecemos” das coisas? Nossas lembranças ditam nossa identidade, e quando somos privados delas, o que nos resta?

Eu não tenho resposta para nada disso, e talvez Ogawa também não tenha, mas todas as inquietações e questionamentos que ela traz em A Polícia da Memória deixam uma marca inesquecível em que a lê. Essa leitura preenche alguns vazios que, talvez, a gente nem soubesse que estava lá, e a experiência do livro é reversa ao que acontece nele: não há instituição que apague essa memória.

Digo “raras” porque é assim que são tratadas durante o livro, mas nunca fica realmente claro se essas pessoas que não perdem as memórias são raras mesmo ou se são tão completamente oprimidas e apagadas que a autora as entende como exceções.

Honestamente, não fica claro se eles realmente desaparecem da ilha ou se apenas as pessoas esqueceram o que eles eram e são incapaz de identificá-los/ouvi-los. Na memória sobre sua mãe, logo no início do livro, a autora não ouve o som de um sino, objeto que já havia desaparecido antes do seu nascimento.