Toda a vez que viajo de avião um medo me vem à cabeça. Não é durante a decolagem, ou nas turbulências e muito menos na aterrisagem. A parte do voo sempre foi tranquila e divertida, com exceção da vez que fui para Coréia do Sul. Três escalas, ...
Toda a vez que viajo de avião um medo me vem à cabeça. Não é durante a decolagem, ou nas turbulências e muito menos na aterrisagem. A parte do voo sempre foi tranquila e divertida, com exceção da vez que fui para Coréia do Sul. Três escalas, um fuso horário louco e um total de 34 horas de viagem realmente não é nada agradável. A sensação de que será agora que minha mala não chegará me acompanha enquanto caminho até a esteira das bagagens. Este sempre foi o meu pavor e o ano de 2014 prometia muitas emoções esperando por malas. Era ano de Copa do Mundo no Brasil e eu trabalhava na comunicação da seleção brasileira de futebol. No fim de janeiro fui para Cuiabá e Natal com diretores e o presidente da CBF para cobrir a inauguração dos estádios para o Mundial. Três vezes na esteira e tudo deu certo. |
"Nem desarruma a mala", me disse meu chefe ao entrar na sede da CBF quando retornei. "Depois de amanhã você vai para Santos", tinha um amistoso da seleção sub-21 masculina. "Porra, manda o Cláudio", outro repórter/ produtor da equipe. "Ainda está de castigo. Só tem você", me respondeu. Cláudio tinha feito uma merda na sua última viagem no fim de 2013. A seleção feminina foi fazer algum jogo em algum lugar que não lembro aonde. Cláudio não sabia fazer merda e foi visto pelo chefe da delegação com uma mulher no bar do hotel durante a noite. |
"Nando, não dá para eu tocar tudo sozinho. Esse ano vai ser foda. O cara fez a merda e eu que estou pagando o preço. Não é justo", falei para o meu chefe pedindo para ele suspender o tempo que Cláudio iria ficar na geladeira. Tudo cena. Cláudio era parceiro. Recebíamos US$ 100 por diária durante qualquer viagem. Todo mundo ganha o mesmo valor. Do estagiário da comunicação ao Neymar. Na real, a suspensão de Cláudio estava me fazendo bem financeiramente, mas era foda ver um amigo se dando mau. "Semana que vem tem uma viagem para Macapá com a sub-20. Mamata. Vou tentar botar ele nessa porque é um jogo tranquilo. Vai ser bom para o pessoal retomar a confiança nele", me disse Fernando. A viagem para Santos foi normal, como qualquer outra cobertura de jogo. Aeroporto, hotel, campo, hotel, estádio, hotel, aeroporto. Essa é a rotina de jogadores e comissão técnica em viagens da seleção. Mas eu não sou jogador e, tecnicamente, nem era da comissão técnica. Trabalhava na CBF TV. Nós, da comunicação, dávamos nossos pulos. Sempre. Todo mundo sabia, mas ninguém via. A merda começou na hora do embarque de volta em São Paulo. Overbooking. Meu cartão de embarque era um dos duplicados, mas isso na ponte aérea é tranquilo. O próximo voo saia em 50 minutos. A moça da companhia me garantiu que minha mala já havia sido retirada do avião e seria encaminhada para o meu novo voo. Beleza. Fui gastar parte da minha diária comendo no restaurante mais caro do aeroporto. Tava de boa. Desembarquei no Galeão, fui para esteira com aquele pensamento, mas dessa vez ele veio com mais força. "Essa porra de trocar de voo vai cagar com a minha mala", pensei. Sem drama, minha mala foi uma das primeiras a aparecer. Fui direto para a CBF devolver os equipamentos pensando em relaxar durante o resto daquela segunda-feira de verão carioca na praia de Copacabana. Minha próxima viagem seria só no próximo mês para a África do Sul, no último amistoso da seleção principal masculina antes da convocação para a Copa. Teria umas três semanas de tranquilidade, enfim. Chegando na sede senti um clima estranho. Reparei que o pessoal do setor me olhava cochichando algo entre eles . Na hora pensei que tinha dado alguma merda. "Tinha sido visto saindo em Santos? Impossível. Ninguém me viu, tenho certeza", pensei. O clima estava muito estranho. "Qual foi?", perguntei para Cláudio. Ele me respondeu dizendo que era melhor eu ir direto falar com o Nando. |
"Qual é a merda da vez, Nando? Não me enrola", já entrei na sala dele falando. |
"É melhor você sentar, João", me disse ele. Sentei pensando: "Pronto, fudeu." |
"Falei com a presidência sobre a suspensão de Cláudio e ele aceitou revogar, mas quer ver de perto o comportamento dele na próxima viagem", me disse Nando. |
"O presidente vai para o Amapá?", perguntei. |
"Não. Você vai para o Amapá. O presidente vai para a África do Sul no mês que vem" , me explicou. |
"Porra Nando, tá de sacanagem? O cara faz a merda, é premiado e eu que me fodo? Três viagens em três semanas? Perco ainda o posto com a principal em ano de Copa? Você acha justo isso?", questionei. |
"Ordens da presidência, João. Aceita", me disse ele. |
"Porra, lógico que aceito. Vou fazer o quê? Entrar na sala daquele velho ladrão babão e dar três tapas de piru mole na cara dele? Agora você vai me ajudar também, Nando. Manda um câmera/ editor comigo pelo menos. Alivia aí, vai. Tô cansadão", falei. |
"Equipe completa. Não se preocupe. Macapá é um luxo. Você vai gostar", me disse ele rindo debochado. |
Eu, Carlos (câmera/ editor) e Galileu (assessor de imprensa). A equipe era boa. Profissionalmente também, mas quis dizer que ela era a melhor para fazer merda. Uma vez fomos para Londres juntos e quase perdemos o voo de volta. Estávamos tão drogados que não conseguíamos voltar para o hotel. O administrador da seleção ligou para Galileu de manhã atrás da gente. Já estavam todos dentro do ônibus a caminho do aeroporto, só faltava nós três, que andávamos por Camdem Town sem saber onde estávamos, que horas eram e muito menos aonde ficava o hotel. Galileu inventou que já estávamos a caminho do aeroporto. A gente tinha que descobrir aonde estávamos, onde era o hotel, voltar para lá, pegar as malas e dar um jeito de chegar no Heatrow em menos de três horas. Tudo isso completamente drogados de LSD. Entramos no aeroporto faltando 5 minutos para o portão de embarque fechar. Por nossa causa, a decolagem atrasou mais de 30 minutos. Todo mundo sabia que havíamos feito merda, mas ninguém tinha como provar nada. "Nos perdemos no caminho", inventamos. Tínhamos uma viagem marcada para a Holanda com a seleção feminina na sequência daquela. Graças a Deus, até hoje não sei porquê, aquele amistoso foi cancelado encima da hora. Se nós três fossemos para a Holanda juntos, o problema não seria sermos demitidos, isso sabíamos que iria acontecer. O problema seria a gente morrer. |
Dia do embarque. Rio-Belém-Macapá. O jogo era Brasil sub-20 x a seleção de Macapá. Os jogadores mais badalados daquela geração sub-20 nem tinham sido chamados. Ninguém se importava com aquele amistoso político que havia sido marcado para reinaugurar o principal estádio da cidade, o Zerão. Carlos e Galileu sabiam que eu estava com o diabo encarnado. A possibilidade de perder meu lugar para Cláudio na Copa havia mexido comigo. Malandro do subúrbio carioca, ele iria levar o presidente na lábia fácil na África. |
"Seguinte rapaziada, seleção brasileira é rei em qualquer lugar do mundo, em Macapá então... Ninguém se importa com esse jogo. Bora tocar o foda-se", disse para eles no avião. Eu estava errado e vi isso assim que desembarcamos. Era o evento do ano em Macapá. Fomos recepcionados por toda imprensa local, Galileu já teve que trabalhar de cara. O governador foi nos receber. Havia mais de 20 anos que nenhuma seleção brasileira jogava em todo estado do Amapá. Só se falava disso nas ruas. A viagem era minimamente rápida. Chegamos na quinta a tarde e iríamos embora logo depois do jogo no sábado a noite. No dia da chegada, o time fez apenas uma atividade em uma academia da cidade, não havia uma no hotel. Era por volta de umas 17h e o local estava lotado de gente malhando. A chegada do time agitou as pessoas, principalmente as meninas. Carlos foi filmar, Galileu ficou na porta para impedir a entrada da imprensa e eu estava ali, de bobeira vendo as meninas, trocando olhares. Macapá me surpreendera muito positivamente. Uma loira na esteira me chamou a atenção. Ela estava mais discreta que as demais, mas peguei ela me olhando uma vez, depois ela sumiu. Fiquei procurando ela com os olhos e vi Carlos largando a câmera para ir beber água bem ao lado das esteiras lotadas de gatas. Não achei minha loira. Quando olhei para o estacionamento procurando por ela, vi Galileu já trabalhando mais ativamente no seu benefício pessoal. Ninguém estava perdendo tempo. Cadê minha loira? Sumiu. |
"Irmão, uma mina me disse que absolutamente todas as mulheres da cidade estão no Tinder por causa da seleção", falou Galileu. O meu já estava instalado. Estava solteiro há 8 meses após terminar um namoro turbulento de 4 anos. "A minha loira vai estar lá", pensei. E estava. Achei ela só no dia seguinte. Match. Thainá. Linda. Comentei que havia visto ela na academia no dia anterior, ela fez que não tinha me visto. Acreditei desacreditando. Começamos a conversar e já de cara chamei ela para fazermos alguma coisa a noite. Ela disse que era pouco provável, pois iria trabalhar no sábado de manhã. "É o único dia possível para nos vermos", argumentei. Ela disse que iria pensar e tal. Fomos para o treino no final da tarde. Chegando no estádio, estavam todos os políticos que você possa imaginar e toda a corja que cerca esse tipo de gente. Jogador nem dá idéia para esses caras. Comissão cumprimenta e vai trabalhar. Sobra para nós da comunicação fazer a cena política. É um saco, mas é bom porque as vezes rola um agrado. E ali sabia que iria rolar, principalmente quando o governador disse que seu filho tinha mais ou menos a minha idade e que estava chegando. Não lembro o nome dele, mas ele estava doido para nos agradar. Deve ter sido a pedido do pai. Ele convidou todos para um jantar. Nessa altura estávamos eu, Galileu e o administrador da seleção que cuida de toda logística. O resto estava trabalhando, o treino estava rolando no campo. O administrador disse que não poderia ir, mas que falaria com técnico para liberar a nossa ida representando a seleção. O filho do governador ameaçou falar em algo a mais para a noite. Galileu se ligou e fez que não com a cabeça para ele, que entendeu o recado. Explicamos depois que, teoricamente, ninguém pode sair a noite, mas a gente dava nosso jeito. |
"Ótimo", disse o rapaz. "Fechei um camarote para nós numa boate. A melhor da cidade. Topam?". Não preciso dizer que aceitamos o convite. Chamei Thainá, ela não vai perder uma bocada dessas. Mas perdeu. Não quis ir. "Trabalho amanhã bem cedo. Não vai dar mesmo. Aproveite sua noite e não apronte muito, hein?", disse ela. O treinador liberou nossa ida ao jantar e até disse que poderíamos sair depois, mas com responsabilidade. Aquilo era algo impensável. A gente nem precisava fugir escondido. Quando saímos, passamos pelo restaurante do hotel enquanto os jogadores jantavam. Eles pediram para ir conosco. Foi uma zoação só. A gente sem permissão já fazia merda, com permissão então... pobre treinador. Deu corda para maluco se enforcar sem saber. O jantar virou ida a um bar. A gente não queria formalidade, não precisávamos disso, sim de diversão. Do bar, para a boate que ficava em frente a casa de ninguém mais, ninguém menos que José Sarney, dono do Brasil. Mandei mensagem para Thainá, tentando pela última vez convencê-la a ir. Aquele jogo duro estava me excitando. Ela disse, mais uma vez, que não. Na primeira negativa dela já tinha voltado para os trabalhos no Tinder. Marquei com uma outra menina lá na boate, Josi. Quando entramos, me senti até famoso. Segurança nos acompanhando até o nosso camarote. Nós três, o filho do governador e outros dois amigos dele. Em pouco tempo, o local já estava cercado de baldes e baldes de bebidas. Tudo do bom e do melhor. Tudo na conta do governador (ou do povo). |
"É hoje que recupero meu imposto de renda", disse Galileu ao ver a cena. Em mais alguns minutos, o local estava cheio de mulheres. Eram pelo menos duas para cada um, podia ser mais. Não lembro real. Não posso beber vodka. Me dá apagões de memória. Não há lembranças claras. Lembro daquela noite com flashes. |
Camarote lotado. Galileu pegando a mulher mais bonita do local. Eu beijando uma morena. Eu indo ao banheiro. Encontro Josi na ida. Beijo Josi. Carlos ficando com a minha morena. Galileu ainda com a mais linda, mas agora com uma amiga dela também. Josi me manda mensagem para irmos fumar. Na área externa, pego Josi. Josi fazendo sexo oral em mim dentro do banheiro. Levo Josi para o camarote. Filho do governador pega Josi. Uma gordinha linda senta e rebola no meu colo (depois fui saber que peguei ela também). Porta de saída. Dia clareando. Porrada generalizada entre seguranças e uns caras. Jogo uma garrafa na cabeça de um cara aleatório que corre na minha direção. Gordinha me puxa desesperada para dentro de um carro. "Vem, vão te matar." No banco de trás estão: Galileu com uma mulher no colo, uma cadeirinha de bebê e outra mulher. Pergunto de quem é cadeira. "Meu filho", responde a gordinha. "Você tem filho?", pergunta Galileu. "Sou casada", responde ela. |
Paramos em um bar na orla, a beira do rio Amazonas. Pedi uma Coca, uma água, outra Coca. Vou melhorando. As memórias vão ficando mais claras. A briga foi porque algum amigo do marido viu a gordinha lá. Eu não era o único alvo, ela já tinha ficado com mais gente ao longo da noite. Aquilo me aliviou de certa forma. Mais amigos dela foram chegando no bar. Galileu sumiu com as suas meninas. A gordinha também. Ficamos eu, Carlos e um grupo de gente que não fazia idéia de quem eram. Voltei a beber. Do nada uma menina começa a falar que homem que tem tatuagem no pulso é viado. Eu tenho tatuagem no pulso. Todo mundo começa a rir da minha cara. A zoação com a minha tatuagem não para, vou ficando puto. |
"Se eu sou viado, então estamos no mesmo time. Tu é travesti", falei. A mina começou a chorar, as amigas dela ficaram putas e começaram a me xingar. Carlos riu jogado na cadeira do bar. "Pior que tem cara de travesti mesmo", gritou ele debochando. Os xingamentos aumentaram direcionados a nós. Ele continuou rindo. Meu sangue ferveu. Tinham dois rapazes no grupo, eles estavam quietos. Precisava brigar com alguém. Comecei a provocar, eles não deram bola. Peguei uma lata de coca e joguei no peito de um deles chamando pra porrada. Carlos me puxou para irmos embora. A última lembrança que tenho é de uma mão fechada vindo na minha direção encobrindo parte do rosto de um homem com cabelo encaracolado com cara de quem estava com muita raiva. Carlos depois me contou o que aconteceu. |
"Um carro parou do outro lado da rua do nada. Um cara desceu, correu, te bateu, voltou para o carro e foi embora. Devia ser o marido da gordinha, ela já tinha ido embora há um tempão. Deve ter dado a localização. Você caiu, bateu a cabeça no chão de paralelepípedo e apagou. Aí foi igual cena de filme. Sabe quando a poça de sangue vai crescendo por trás da cabeça? Então, foi assim mesmo. Você revirou os olhos e começou a se tremer. Todo mundo correu fugindo achando que você tinha morrido. O pessoal do bar ligou para o Samu. Me deram um pano sujo para estancar o sangramento. Você só acordou dentro da ambulância. Ficou falando para voltar que você ia matar quem tinha feito aquilo. Os enfermeiros riram da tua cara. No hospital te levaram para emergência. Fizeram uma tomografia. Levou 10 pontos na cabeça. Tu apagou de novo. Fiquei do teu lado na maca ali no meio do corredor daquele hospital publico. O médico me chamou para falar que o resultado do exame estava pronto e você não tinha nada, precisava só dormir mesmo. Me afastei por uns 3 minutos para conversar com o doutor. Quando voltei, você não estava mais na maca", relatou ele. |
As lembranças por flash voltaram. Um teto velho verde todo descascado. Muita gente falando. Cheiro de éter. "Caralho, o que eu tô fazendo aqui?", pensei. Minha cabeça doía muito. Senti ela enfaixada. Minha camiseta verde com uma grande mancha escura que ia do ombro esquerdo até um pouco abaixo do peito. "Preciso sair daqui", conclui. Desci uma escada. Vi uma janela. Pulei. Estava em local de mata. Havia um muro. "Estou nos fundos do hospital. Preciso dar a volta", pensei. Andei, andei, andei. Me vi de novo em frente a janela que havia pulado. Olhei para o muro. Pulei o muro. Cai de joelhos na rua cheia de pedras. Calça rasgada. Perna sangrando. Olhei em volta. Andei pela rua sem ter idéia de onde estava. Virei a esquina. Vi um taxi. "Taxi", gritei. Ele andou. Corri. "Para, pelo amor de Deus", gritei. Cai no meio da rua, entre os carros. Buzinas. "Que lugar é esse? Aonde eu estou?", pensei já desesperado. "João?", escutei a voz de alguém berrando entre aquelas buzinas. Olhei, não vi de onde vinha a voz. "João!", a entonação já era de quem tinha certeza que era eu mesmo. Ainda não achei de onde vinha aquela voz. "Meu Deus!", ouvi outro grito. Encontrei a direção do som. Olhei. Uma mulher loira saia desesperada de dentro de um carro azul e corria em minha direção. "João", gritou ela de novo. Reconheci. Tinder, academia. |
"Caralho, eu tô em Macapá. A trabalho. Hoje tem jogo. Essa mina que tá vindo correndo na minha direção... Ela é um anjo? Como ela está aqui?" Todos esses pensamentos correram pela minha cabeça doente (literalmente) em menos de um segundo. "Me ajuda Thainá, por favor", foi tudo o que consegui falar. |
"O que você está fazendo aqui?", perguntei assim que entramos no carro. |
"Eu trabalho aqui", disse ela apontando para a grande casa verde velha. Thai era administradora do hospital. |
"Eu é que te pergunto o que você está fazendo aqui? O que aconteceu? Você está todo machucado", me disse ela bem assustada. Expliquei a ela, omitindo a parte das mulheres e do soco que levei. "Cai quando fui fazer xixi ali na beira do rio, estava muito bêbado", menti. |
"Meu Deus, você está bem? Está me parecendo meio desorientado ainda", perguntou. |
"Estou mesmo, está tudo muito confuso. Nem sei te dizer aonde é o hotel", falei. Não sabia mesmo. Ela então perguntou se eu sabia alguma referência. Só lembrava que era próximo a um shopping. Macapá só tinha um. Ficou fácil para ela matar. Não lembro muito sobre o que conversamos, acho que nem falamos muito. Estava preocupado em ser visto por alguém na entrada, lembro de comentar isso com ela. Thai me deixou na porta e pediu para eu avisá-la quando estivesse no quarto, ela iria me esperar lá caso precisasse fugir. O prédio de apenas 4 andares era praticamente todo ocupado pela nossa delegação. Já estava na hora do café da manhã dos atletas e eu não poderia ser visto naquele estado. Era demissão certa. O restaurante ficava de frente para a porta de entrada. A escada ficava colada no restaurante e o elevador bem no meio do caminho. Meu quarto era no terceiro andar. Era mais seguro ir de elevador, pois eles iriam descer para o café provavelmente pela escada. Entrei e vi que havia movimentação no restaurante, mas não muita. Sinal de que as pessoas estavam andando pelo hotel ainda. O elevador estava descendo. Iria dar de cara com alguém quando a porta abrisse. Não tinha aonde me esconder no lobby. Corri para escada e subi. Vi vários jogadores saindo do elevador. Risadas e vozes ecoavam pelos corredores. Havia gente saindo dos quartos, descendo as escadas. Precisava correr e rezar, era tudo que podia fazer. Até o segundo andar a barra foi limpa. Ouvi vozes bem próximas, não parei. Continuei subindo para o meu andar. Eram dois lances de escada. O primeiro foi vencido. Quando virei no segundo dei de cara com o roupeiro. |
"Que porra é essa, João?", me perguntou ele abismado com o que vira. |
"Jajá, me ajuda. Não dá para explicar agora. Ninguém pode me ver assim. Me ajuda!", supliquei com as mãos coladas e falando baixo para não ser ouvido. Ele me perguntou qual era o meu quarto. "Fica quieto aqui, tem jogador no corredor", disse ele sumindo por alguns segundos. |
"Vem, vem. Rápido!", me chamou logo depois. Corri para o quarto. Tentei abrir a porta. Estava tremendo. A chave caiu no chão. Ouvi a porta de trás se abrir enquanto pegava a chave. Olhei de rabo de olho. Era um jogador. |
"Netinho, você não viu nada", disse Jajá. Quando olhei para trás vi Neto de boca aberta. Camisa 10, ele era o jovem mais promissor do time. |
"Coé Neto, deu ruim a noite, mano. Só tragédia. Não fala para ninguém. Pelo amor de Deus irmão", voltei a suplicar já com lágrimas nos olhos. |
"Não se preocupa. Entra logo cara, entra", disse ele me ajudando a abrir a porta e me empurrando para dentro. Ele e Jajá entraram comigo. Carlos acordou com a movimentação. O quarto fedia a álcool. Jajá e Neto estavam preocupados com o meu estado. Me ajudaram a desenfaixar a cabeça. Vi a grande cicatriz que tinha ganho. |
"Lava essa porra com cuidado. Tá cheio de sangue aí. Quer que chame o doutor?", perguntou Neto. |
"Não, vai vazar a notícia se ele souber", respondeu Jajá me antecipando. Era melhor eu me virar sozinho mesmo. Jajá e Neto foram para o café para não levantar suspeitas caso atrasassem. Jajá me pediu para dar uma chave a ele. Ele passaria lá depois para deixar alguns bonés para tampar a cicatriz e ninguém ver nada durante o jogo. |
"Toma um banho e dorme. Não sai do quarto para nada. Ninguém vai abrir o bico, né Neto? Não se preocupe", disse ele. Foi o que fiz. |
Avisei para Thai que estava bem e agradeci por ter me salvado. Carlos me contou o que tinha acontecido. Quando acordei, Galileu estava sentado em frente a minha cama me olhando incrédulo. |
"Caralho, achei que participar de um menáge era a melhor coisa que poderia ter me acontecido. Mas começo a me arrepender depois de saber desse seu espetáculo e ter perdido ele. Parabéns, você quebrou todos os recordes", disse ele rindo da minha tragédia. |
Durante o jogo foi tudo normal, ninguém percebeu nada graças ao boné. Incomodava muito, tenho quase certeza de que clinicamente não era nada recomendável usá-lo, mas não tinha outra alternativa. Durante o jogo desci lá no vestiário, pois sabia que Jajá estaria sozinho. Agradeci pela sua ajuda e contei tudo a ele. Ele jurou não contar a ninguém e, até onde sei, nunca contou mesmo. Tinha que gravar a matéria. Estava destruído. Gravei só com off, sem aparecer em momento algum. Minha voz estava horrível. Não tinha cabeça nem para escrever um texto minimamente descente. A matéria ficou uma merda. A pior de toda a minha carreira, disparada. Era nítido para quem assistia que havia algo errado. Do jogo ainda voltamos para o hotel. O voo só sairia durante a madrugada. Apaguei. Carlos me acordou na hora de irmos para o aeroporto. Olhei para o celular. Tinha várias mensagens de Thainá querendo saber como eu estava. Falei que estava bem, com dor, mas bem e que estava indo para o aeroporto. Uma mensagem de áudio de Nando. |
"Que merda de matéria é essa, João? Que porra de voz é essa? O que aconteceu?", disse ele puto. |
"Oi chefe, desculpa a demora em responder. Estava dormindo aqui. Estou muito doente, não sei o que foi, acordei hoje com muita febre e quase sem voz. Quer que tire do ar?" respondi. |
"Não, deixa essa merda aí. Amanhã a gente vê o que faz. Agora não dá mais tempo de nada", me respondeu imediatamente. |
Comecei a arrumar as minhas coisas. Não queria ser perturbado por ninguém. Olhei para o celular. "Você vai ser despachado para eu ter paz", falei jogando ele lá dentro e fechando minha mala. Durante o embarque encontrei com Neto e lhe agradeci pela ajuda. Ele também nunca contou nada a ninguém. Daquele time, foi o único jogador que fez uma carreira reconhecida, jogando em grandes times do Brasil e da Europa também. |
Desembarque no Rio pela manhã de domingo. Minha cabeça latejando estava vazia. Só focava na dor. A vida é engraçada. Naquele dia não pensei em nada. O voo estava lotado. Só de equipamento de rouparia são vários caixotes que a seleção carrega para lá e para cá em todas as viagens. Vi a mala de todo mundo chegando bonitinha naquele dia chuvoso. Quando dei por mim já estava sozinho ao redor da esteira quando um rapaz surgiu pela cortina aonde as bagagens aparecem e, me olhando, fez um sinal de que havia terminado. Depois ele apontou para trás de mim. Quando me virei, vi uma mulher com a cara nada simpática em um guichê da companhia aérea. Coitada, ninguém procura aquela moça de bom humor. Eu era mais um puto da vida, mas não tinha forças para descarregar minha raiva nela. "Senhor, a sua bagagem por acidente foi para Belo Horizonte", me disse ela. O pior de tudo era ficar sem meu celular. Disseram que até o final do dia a mala seria entregue na minha casa e assim foi feito. A tela do celular estava toda quebrada. Não podia nem culpar a companhia aérea. Não tomei o cuidado nem de envolver ele em uma camiseta. Mandei para a assistência e fiquei uns três dias sem telefone. Quando peguei de volta e o liguei, ele apitou muito mais do que o comum. "Caralho, tem alguém me caçando", pensei. Quando desbloqueei a tela vi que 90% das notificações eram de mensagens de Thai. |