UM ARTIGO QUE VAI TE INCOMODAR!
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Quando eu retornei à Mariana, um ano após o rompimento da barragem de Fundão, lembrei como foi difícil e arriscado retirar mais de 700 pessoas da rota da lama naquele dia 05 de novembro de 2015. Agora, seis anos depois, o que vivi naquelas primeiras horas com centenas de moradores e cerca de uma dezena de fiéis e dedicados bombeiros ainda permanece muito claro na memória. E por mais que a vida tenha seguido em frente para muita gente e até mesmo outros desastres tenham acontecido depois desse, acredito que é importante essa lembrança continuar presente de alguma forma. E não apenas para mim. Ela pode servir de aprendizado para que tragédias parecidas não voltem mais a ocorrer. Embora sabemos, já aconteceu de novo. Então, ao menos que sirva para que estejamos mais atentos e preparados para o que não queremos que aconteça novamente. Mas, se acontecer, eu, os meus irmãos de farda que estiveram lá ao meu lado, muitos outros que também estiveram envolvidos nessa operação e, principalmente todos aqueles que ainda podem se inspirar com essa história, estaremos prontos para ajudar. | ||
Um amigo costuma dizer que o bombeiro é como um personagem real que surge nas histórias dramáticas em situações e ambientes e muitas vezes cinematográficos para ajudar outros personagens que não conhece a encontrar um final feliz. Ou então, o mais feliz dentro aquilo que é realmente possível. Algumas vezes, infelizmente, não é possível salvar vidas. Em Mariana, 19 pessoas morreram. Nós não conseguimos encontrar uma das vítimas e eu carrego até hoje o nome dela comigo. Ao longo da carreira, o bombeiro não lembra quantas vidas salva. Mas sente por todas aquelas as quais não consegue fazer algo. É por isso que se entregam tanto, mesmo quando não há mais chances de se encontrar vidas. Em Brumadinho, também em Minas Gerais a operação já passa de dois anos e, além da busca por corpos que podem dar ao menos um conforto para a família, os bombeiros e também os voluntários resgatam objetos, documentos e lembranças para aqueles que perderam tudo e querem se encontrar em algo. | ||
Tão difícil quanto resgatar corpos é também resgatar as histórias soterradas na lama. Lembro de diversos pedidos como: “Bombeiro, você poderia pegar meu álbum de casamento que ficou na sala da minha casa?”. “Bombeiro, você poderia encontrar a santa da Igreja que foi destruída?”. “Será que você conseguiria pegar o troféu de futebol do meu filho que morreu para eu ter de recordação?”. Em resumo: “Já que nós perdemos tudo, ao menos você poderia entrar lá e resgatar nossos sonhos e nossas histórias?”. E isso realmente é uma tarefa difícil de ser cumprida, difícil, mas não impossível. | ||
A lama não levou embora somente vidas, sonhos e histórias que estavam ali, ela soterrou a economia local que ficou estagnada com a paralisação das atividades da empresa mineradora que empregava muitos dos moradores, além de afetar a circulação de dinheiro no comércio, hotéis, restaurantes e em outras atividades do local. Várias famílias tiveram suas fontes de renda zeradas ou diminuídas drasticamente. As cidades atingidas perderam o movimento. Por isso, ao mesmo tempo que muitos moradores queriam, querem e precisam de justiça por tudo que perderam, ainda assim não queriam a paralisação das atividades, já que mais da metade da receita estava ligada a empresa. Um sentimento antagônico e até mesmo de culpa, mas é óbvio que não esperam a volta do movimento da cidade e da atividade mineradora sem responsabilidade, sem segurança, sem planejamento, sem cuidado com a população e sem respeito. | ||
Eu tive a oportunidade de presenciar um bom exemplo de retorno a “normalidade” quando fui ao Japão estudar gestão do risco de desastres, que engloba também os desastres com barragens. Sim, há barragens no Japão. O que não há são acidentes. Ou melhor, algumas barragens também rompem no Japão, mas eles preveem que isso pode acontecer e para tanto desenvolvem técnicas de engenharia para minimizar os danos causados, além de estarem atentos a proximidade de moradores no entorno. Se uma barragem romper, logo abaixo, deve existir uma barragem de contenção como sistemas de amortecimento e de diminuição da velocidade de todo fluxo de rejeito, sendo que as paredes dão um direcionamento para escoamento e para que a “lama” não atinja cidades. Há ainda bolsões para armazenamento de rejeitos, fazendo com que não haja contaminação do solo ou dos rios, além de não oferecer riscos. Existe uma grande responsabilidade com a vida, com o meio ambiente com a história e com os sonhos. Nos locais de desastres no Japão, as tristes histórias são preservadas em memoriais para que as pessoas visitem estes espaços e saibam o que aconteceu e se lembrem disso para evitar que novos episódios ocorram. Assim deveria ser por aqui ou em qualquer lugar do mundo, para que sonhos, histórias não fiquem soterrados e esquecidos debaixo da lama. | ||
O que ninguém quer te falar é que nós precisamos da Mineração ! | ||
Como o próprio nome já diz, é compreensível que “mineiros” tenham muito proximidade e até dependências da mineração. Todo mundo conhece o famoso queijo mineiro. Mas quando se trata da quantidade de barragens de minério existentes no estado, Minas Gerais está mais para um queijo suíço. São mais de 400 barragens de minério catalogadas, a maior concentração do país. Da mesma forma, a população da histórica cidade de Mariana, depende também desta atividade. | ||
Portanto, a retomada da atividade da empresa tem a sua relevância, pois pode voltar a dar alguma esperança para que os moradores daquela região comecem a reconstruir suas histórias e seus sonhos. O que não pode voltar é o medo de que outro episódio como aquele do dia 05 de novembro de 2015 se repita, nem mesmo em outras localidades. Para isso, cabe aos responsáveis por essas e por qualquer outra importante atividade que possa causar riscos aos seus empregados e as comunidades que a cercam, assumirem o compromisso de respeito a vida, além de se dedicarem ao máximo para aprimorar técnicas e conhecimentos, cercarem-se de mais cuidados preventivos, elaborarem planos de contingências e capacitar a população. As sirenes são imprescindíveis, mas não são a única solução. É preciso saber o que eles devem fazer quando ela tocar. Para onde correr? Quais são os pontos de encontro? Quais são as casas que tem cadeirantes ou pessoas que necessitam de ajuda em sua locomoção? Como avisar um deficiente auditivo? Você deixaria alguém para trás? O bombeiro, não. | ||
Além de continuar ajudando pessoas como capitão do Corpo de Bombeiros Militares de Minas Gerais, eu descobri que as histórias também podem ajudar. Basicamente elas contam sobre dificuldades e mostram as formas com que os personagens tentam superar seus desafios. E quando elas são histórias reais, podem se tornar até mais que uma importante inspiração para o surgimento de novos personagens reais dispostos a ajudar outras pessoas a resgatarem suas vidas, lares, trabalho e dignidade. Também são aprendizados e lições que vão muito “Além da Lama”. | ||
Leonard de Castro Farah | ||
Mestre em Engenharia Geotecnica de Desastres Naturais - UFOP. Pós Graduado em Gestão de Emergência e Desastres pela UFF-RJ |