Como saber se a criança precisa do ensino explícito para aprender a ler?
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Como saber se a criança precisa do ensino explícito para aprender a ler?

Para aprender a ler qualquer pessoa precisará dominar o sistema alfabético e entender o que ele representa. E o que é o sistema alfabético?

Mariane Assis Dias
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Para aprender a ler qualquer pessoa precisará dominar o sistema alfabético e entender o que ele representa. E o que é o sistema alfabético?

O sistema alfabético é aquele que representa com os caracteres do alfabeto (letras) os sons da fala. E quando uma criança ou um adulto analfabeto se dá conta de que os caracteres alfabéticos não são meros sinais gráficos, mas que, individualmente ou em grupo, representam os sons da fala (ou os fonemas da língua), dizemos que essa pessoa compreender o princípio alfabético, passo crucial no processo de alfabetização".

Nesse ponto que encontramos sérias divergências na educação brasileira.

De um lado estão aqueles que defendem que o conhecimento do princípio alfabético virá naturalmente. Nesse caso acredita-se que o real conhecimento de que as letras que vemos representam os sons da nossa fala, virá através da exposição frequente a textos e palavras. Para isso bastaria a criança estar exposta a um amiente letrado, criativo, lúdico e que eventualmente se aplique atividades com intencionalidade para fazer a criança refletir sobre o que as letras representam. O problema é que não há um ensino direto e explícito sobre o que cada letra representa e preocupa-se somente com o nível discursivo do texto, ou seja, o que ele deseja comunicar e o seu significado, investindo o tempo precioso da criança com a perspectiva do “uso ou função social da escrita”. Deixando a responsabilidade para a criança refletir diante do sistema alfabético. Segundo Benedetti (2020) essa “perspectiva do uso ou função social da escrita obscureceu e diluiu a natureza real da alfabetização e transformou a prática pedagógica alfabetizadora numa miscelânea de atividades de ‘uso social da escrita’, ao invés de priorizar os aspectos estruturais da língua ou as tarefas cognitivas implicadas em sua aquisição”. Nas últimas décadas a ciência da leitura avançou e apontou as tarefas cognitivas que devem estar presentes em bons programas de alfabetização e que as mesmas devem se apoiar em 5 pilares, conforme resumido no Painel Americano da Leitura de 2000, sendo eles:

  • Consciência fonêmica;
  • Instrução fônica sistemática;
  • Fluência;
  • Vocabulário e,
  • Compreensão de textos.

Ainda que os defensores da frase “que se aprende a ler, lendo”, apliquem atividades com intencionalidade e considerem cada um dos pilares acima, falta um ensino explícito em todas as etapas e pior, a devida sistematização.

Do outro lado temos aqueles, que assim como eu, defendem que o ensino explícito é o melhor caminho para qualquer criança aprender, pois nesse contexto partimos do princípio que a criança não sabe o que o sistema alfabético representa e que por esse motivo, precisamos instruir explicitamente. Ainda que algumas crianças tenham maior facilidade para aprender de forma autônoma, isso não é a realidade para a maioria delas. O estudo americano “Ladder of Reading” revelou que 60% das crianças precisarão de instrução explícita para aprender a ler, dentre elas, até 15% podem ser cometidas pela dislexia. O que torna ainda mais urgente a instrução explícita do sistema alfabético (esse tema foi mais aprofundado no artigo: Método fônico e crianças com dislexia, disponível aqui). Embora para cerca 40% das crianças o ato de aprender a ler é relativamente fácil através de uma instrução mais geral, todas elas se beneficiarão do ensino explícito. Nesse ponto fica a indagação: em uma sala de aula ou na vida do seu filho, olhando ele hoje, com 3, 4 0u 5 anos é possível inferir se ele estará no grupo A onde 40% das crianças não precisarão do ensino explícito ou no grupo B em que 60% só aprenderão a ler consistentemente através do ensino explícito da relação entre as letras que vemos e os valores sonoros que elas representam?

Isso me parece impossível. O que nos leva a crer que é mais racional submeter todas as crianças ao ensino explícito desde os anos iniciais da educação formal.

Por outro lado, com o passar dos anos, ficará cada vez mais evidente aquelas crianças que precisam de um ensino explícito. Uma vez que passado os anos iniciais de ensino formal, essas crianças não aprenderão a ler de forma natural e sem instrução explícita. Logo, para elas avançarem rumo à aquisição da leitura será essencial o ensino explícito, sistemático e bem instruído de todas as etapas necessárias para ler.

No artigo de Regtvoort & Leij (2007), os autores analisaram crianças em situação de risco para aprendizagem da leitura, cujos pais tinham dislexia. As crianças foram separadas em 4 grupos; um grupo composto por crianças em risco que passaram por intervenção e ensino explícito da consciência fonológica e conhecimento de letras, outro grupo composto de crianças em risco mas sem intervenção, chamando de grupo controle, além dos grupos com crianças sem risco sem intervenção e com intervenção. No final do acompanhamento dos alunos constatou-se o notável avanço das crianças do grupo de risco que tiveram intervenção adequada em detrimento daqueles em risco que não tiveram. O primeiro grupo se assemelhou às crianças fora de risco em termos de avanço rumo à alfabetização. O estudo evidenciou que todas as crianças que tiveram intervenção foram beneficiadas, principalmente as do grupo de risco. Portanto, deixando evidente que o ensino explícito não é apenas benéfico, mas essencial para as crianças em risco e responsável por deixar todas as crianças mais próximas de adquirirem a leitura e escrita. O ensino explícito diminui as diferenças entre as crianças, seja a diferença cognitiva ou de condições sociais e econômicas.

No estudo de Braga et al (2017), um adulto analfabeto foi submetido ao processo de alfabetização seguindo o método silábico e de palavras-chave segundo Paulo Freire. No total de 16 meses que se seguiram a esse tipo de instrução, que reconhecidamente não é uma instrução explícita da relação letra-som, conforme já apontado no artigo “Paulo Freire e alfabetização”, o adulto não conseguiu decodificar precisamente as palavras. Ao chegar no mês 17, o adulto foi submetido a instrução fônica através do método fônico e em 7 meses tornou-se um leitor funcional. Esse estudo evidenciou que a instrução explícita é mais eficaz e portanto, conduz a resultados mais rápidos.

São inúmeras as referências científicas e os relatos de educadoras sobre a eficácia do ensino explícito, no qual ensinamos explicitar aquilo que a criança precisa aprender para ler: compreender em um primeiro momento como a escrita representa a fala e qual a relação entre a letra que ela vê e o som que ela fala e escuta. Para isso ensine explicitamente os sons das letras e não espere a criança descobrir isso sozinha, a maioria não será capaz.

Referências

Benedetti, K. S. 2020. A falácia socioconstrutivista. Kírion.

Braga, L. W., et al. 2017. Tracking Adult Literacy Acquisition With Functional MRI: A Single-Case Study. Mind, Brain, and Education Society and Wiley Periodicals, Inc.

Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Alfabetização. PNA - Política Nacional de Alfabetização – Brasília: MEC, SEALF, 2019.

Regtvoort, A. G. F. M.; Leij, A. V. D. 2007. Early intervention with children of dyslexic parents: effects of computer-based reading instruction at home on literacy acquisition. Learning and Individual Differences.