Esporte de Alto Rendimento e Saúde Mental
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Esporte de Alto Rendimento e Saúde Mental

A notícia publicada1 de que o tricampeão mundial de surf Gabriel Medina havia comunicado em suas redes sociais que não participaria do início do circuito mundial de surf (WSL) para cuidar da saúde mental e de uma lesão no quadril parece ter ...

Leonardo de Lima Netto
7 min
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A notícia publicada1 de que o tricampeão mundial de surf Gabriel Medina havia comunicado em suas redes sociais que não participaria do início do circuito mundial de surf (WSL) para cuidar da saúde mental e de uma lesão no quadril parece ter repercutido mais em questão da saúde mental do que pela lesão no quadril. Em suas palavras, o surfista brasileiro cita a importância do tricampeonato mundial conquistado em 2021. Entretanto, faz ressalvas ao dizer que

(…). No ano passado, vivi uma montanha russa de emoções dentro e fora da água, o que afetou muito minha saúde mental e física. Ao final da temporada, eu estava completamente esgotado. Cheguei no meu limite. (…). Decidi que não viajarei para o Hawaii e vou tirar um tempo para que eu possa me recuperar mental e fisicamente. Estou com uma leve lesão no quadril que venho tratando desde o final do ano passado. Somado ao corpo, tenho questões emocionais que estou precisando lidar. (…). A saúde mental é muito importante. Preciso estar 100% mentalmente para voltar a competir. (…). Gabriel Medina via rede social Instagram em Janeiro de 2022.

Tanto as palavras de Medina quanto a notícia publicada ressaltam mais a necessidade da recuperação da saúde mental do que da lesão física. Talvez isso ocorra devido à rotina de lesões físicas que todos os atletas de alto rendimento estão sujeitos durante a sua carreira, ou, pelo menos, em quantidade muito maior do que se relata sobre a saúde mental. O surfista brasileiro deixa claro a importância da saúde mental para a sua prática desportiva ao afirmar que precisa estar 100% mentalmente para competir, o que demonstra que para um atleta de alto rendimento, o aspecto psicológico pode ser tão importante quanto o físico. Segundo Andersen, Ottesen, & Thing (2018)2 o esporte é muito mais do que uma prática de exercícios ou de atividade física, pois envolve diferentes dimensões psicológicas tais como socialização, experimentar emoções, relações consigo mesmo e com outras pessoas diferentes de qualquer outra atividade humana, indo além do próprio corpo e dos benefícios fisiológicos proporcionados.

Ainda há de se levar em consideração o momento relatado por Medina de quando ocorreu a sua “montanha russa de emoções”. O “ano passado” citado por ele corresponde ao ano de 2021, momento em que o mundo ainda passava pela pandemia da COVID – 19. De acordo com Park, Lee, Park, & Choi (2018)3 a saúde mental das pessoas durante epidemias necessita de cuidados maiores devido à grande quantidade de estresse coletivo. Através de evidências epidemiológicas, é possível observar que os eventos estressores também são responsáveis por desencadearem sintomas de possíveis transtornos mentais de humor, ansiedade e depressão4. Medina não deixa claro a existência de qualquer ligação entre a pandemia e seus problemas emocionais, mas não considerá-la como um dos possíveis fatores estressores, como tem ocorrido com toda a população mundial, seria algo sem lógica.

É possível observar através de indicadores sintomatológicos que atletas de alto rendimento, contrariando a ideia de que seriam o ponto alto de uma saúde perfeita, apresentam sinais de ansiedade e depressão duas vezes maior do que em controles, transtornos alimentares surgem até 3 vezes mais do que na população em geral e o uso elevado de álcool e demais drogas aparecem uma vez e meia superior do que em grupos de controle. Dessa forma, levando-se em consideração a saúde mental, ser um atleta de alto rendimento aumenta consideravelmente o risco de sintomas acabarem virando transtornos mentais (BARREIRA, TELLES, FILGUEIRAS, 2020). Dessa forma, os resultados obtidos por Abreu e outros (2020)5 vão nessa mesma linha de raciocínio de frequência de exercícios e bem estar, apontando para o fato de que atletas desse nível estariam mais propensos a certos tipos de psicopatologias.

Assim, é possível observar que o caso de Gabriel Medina não é o único e muito menos incomum entre os atletas de alto rendimento. Nas Olimpíadas de Tóquio 2020 (realizada em julho / agosto de 2021 devido à pandemia da COVID-19), a ginasta americana Simone Biles, considerada a grande favorita para a conquista da medalha de ouro nas competições da ginástica artística, abriu mão de disputar diversas modalidades por não se considerar em condições mentais ideais para as disputas. Sobre isso, a ginasta brasileira Rebeca Andrade, medalhista de ouro na modalidade de salto, falou o seguinte6:

Eu acho que o fato dela ter saí não foi nada negativo. As pessoas têm que entender que o atleta não é um robô, é um humano. Então a decisão que ela tomou foi a coisa mais sábia que ela pode fazer por ela, não foi nem pelos outros, porque não se brinca com a cabeça, sabe? Eu trabalho muito com a minha psicóloga por causa disso. Hoje, sou uma atleta diferente justamente pela cabeça que eu tenho, porque eu acho que se eu tivesse (…) em 2016, como eu era muito nova, muito crua, isso não teria acontecido, sabe? Eu acho que foi um momento, eu precisei passar pelo processo.

Dessa forma, Rebeca e Biles ressaltam a importância do trabalho psicológico dentro da modalidade da ginástica artística, assim como Medina demonstra a mesma coisa dentro do surfe. No caso da ginasta americana, há ainda um outro fator preponderante: o abuso que sofreu do ex-médico da seleção americana de ginástica artística, denunciado pela própria Biles em 20187. O fato sofrido por Biles indica a necessidade de não apenas a existência de uma equipe multidisciplinar séria e ética que acompanhe os atletas de alto rendimento, mas também, o acompanhamento de seus pais ou familiares responsáveis, pelo fato de começarem a treinar precocemente, com idades de ainda muita vulnerabilidade.

Entretanto, pode-se observar que tais casos de saúde mental em atletas de alta performance têm se multiplicado em diversas modalidades. A tenista japonesa Naomi Osaka, mais uma atleta que disputou as olimpíadas de Tóquio 2020, abandonou o grand slam8 de Rolland Garros alegando que precisava cuidar da sua saúde mental9, pois sofre de depressão. Em 2021, outro caso de depressão no esporte chamou atenção. Michael, jogador de futebol que até então jogava no time do Flamengo, relatou10 em uma entrevista que havia sofrido com a doença, inclusive tendo pensamentos suicidas, no ano de 2020. O jogador relatou11 o problema de que sentia dificuldade de dormir sozinho, recebendo atendimento e acompanhamento de uma rede multidisciplinar oferecida pelo clube do Flamengo.

É possível perceber que casos como os citados acima são muito mais comuns do que se imagina, independendo da modalidade esportiva. A psicologia desportiva vem se desenvolvendo durante alguns anos, porém ainda é de extrema necessidade que avance, conquistando um espaço maior em outras modalidades não só para o bem-estar mental dos atletas de alto de rendimento, mas também, por poder contribuir em outros fatores mentais necessários para se atingir essa alta performance.

1Em Gabriel Medina abre mão das primeiras etapas da WSL para cuidar da saúde mental | surfe | ge (globo.com)

2Em BARREIRA, C. R. A.; FILGUEIRAS, A.; TELLES, T. C. B. Perspectivas em psicologia do esporte e saúde mental sob a pandemia de covid-19. Revista Psicologia: Ciência e Profissão 2020 v. 40, e243726, 1-14.

3Em Em BARREIRA, C. R. A.; FILGUEIRAS, A.; TELLES, T. C. B. Perspectivas em psicologia do esporte e saúde mental sob a pandemia de covid-19. Revista Psicologia: Ciência e Profissão 2020 v. 40, e243726, 1-14.

4Brooks e outros (2020) em Em BARREIRA, C. R. A.; FILGUEIRAS, A.; TELLES, T. C. B. Perspectivas em psicologia do esporte e saúde mental sob a pandemia de covid-19. Revista Psicologia: Ciência e Profissão 2020 v. 40, e243726, 1-14.

5Em Em BARREIRA, C. R. A.; FILGUEIRAS, A.; TELLES, T. C. B. Perspectivas em psicologia do esporte e saúde mental sob a pandemia de covid-19. Revista Psicologia: Ciência e Profissão 2020 v. 40, e243726, 1-14.

6Em entrevista concedida para a emissora que cobria os Jogos Olímpicos

7Em Saúde mental: como a pressão psicológica pode prejudicar o desempenho de atletas | CNN Brasil

8Um dos maiores torneios da temporada de tênis

9Em Saúde mental: como a pressão psicológica pode prejudicar o desempenho de atletas | CNN Brasil

10Em Michael revela depressão no Flamengo em 2020: "Eu gritei por socorro" | flamengo | ge (globo.com)

11Em Caso Michael: como funcionou a rede de apoio no Flamengo para o atacante combater a depressão | flamengo | ge (globo.com)