Existe Vida Após o Conto de Fadas?*
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Existe Vida Após o Conto de Fadas?*

O desenvolvimento tecnológico em meados do século XIX contribuiu consideravelmente para a evolução da sociedade. A economia existente era amplamente estimulada pela sociedade capitalista, estando cada vez mais no centro das atenções. Com iss...

Leonardo de Lima Netto
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O desenvolvimento tecnológico em meados do século XIX contribuiu consideravelmente para a evolução da sociedade. A economia existente era amplamente estimulada pela sociedade capitalista, estando cada vez mais no centro das atenções. Com isso, o consumismo cresceu desmoderadamente com os passar dos dias. O projeto criado rumo à modernidade passava pela criação de uma sociedade com hábitos baseados no consumo e pela necessidade da existência de trabalhadores com espírito altamente competitivo, com uma enorme sede de vitórias e cada vez menos capaz de suportar frustrações por seus desejos não atendidos. Este indivíduo deveria ter o trabalho como único foco, sem questionar nada, visando apenas o crescimento e o acúmulo de bens. Como consequência, surge nesse indivíduo uma ansiedade crescente devido ao fato do meio ambiente em que está inserido consistir em um dos fatores importantes na construção da personalidade. Segundo Fromm (1974, p.95),

Esta necessidade econômica de competição conduziu, especialmente na segunda metade do século XIX, a uma atitude cada vez mais competitiva, caracterologicamente falando. O indivíduo se sentia compelido pelo desejo de ultrapassar o seu competidor (...). Nessa luta pelo sucesso ruíram as regras sociais e morais de solidariedade humana; a importância da vida consistia em ser o primeiro em uma corrida competitiva.

Neste panorama, a importância da essência é deixada de lado, o que faz com que o desenvolvimento de um indivíduo não seja pleno, pois para sua realização é necessário que ocorra o desenvolvimento em diferentes níveis, o que faz dele um ser biopsicossocial, ou seja, capaz de sofrer influências tanto de fatores biológicos quanto psicológicos e sociais. Qualquer desses sentidos de desenvolvimento que for reprimido em demasia poderá ocasionar sérios distúrbios comportamentais, acarretando prejuízos na vida do indivíduo. Jung (2008, §558) nos diz que a “separação de sua natureza instintiva leva o homem civilizado (...) à cisão de sua própria natureza que, num dado momento, se torna patológica, uma vez que a consciência não é capaz de negligenciar ou reprimir a natureza instintiva”.

Da mesma forma, as relações interpessoais vêm sofrendo grandes transformações devido ás diversas e constantes mudanças sociais (CAVALCANTI, 1987; HAMAWI, 1995; LEICK, 2003; MONTEIRO, 1998; NOLASCO, 1999; STEARNS, 2007; e TANNAHILL, 1983). Com o sujeito competitivo e cada vez mais frágil, o sistema de valores presente na sociedade tende a ser mais superficial, sendo a importância social restrita à quantidade de posses. Assim, cria-se uma despersonalização dos seres humanos, fazendo com que fiquem cada vez mais autômatos e menos espontâneos. O importante deixa de ser quem o indivíduo é, passando a ser quem os outros acham que ele se parece, ou seja, passa a se identificar excessivamente com a persona, deixando de lado seu estado in natura (FROMM, 1974; WHITMONT, 1991).

Esse formato social cria prejuízos na vida afetiva de tais pessoas. O consumismo exacerbado as leva para um mesmo tipo de relação interpessoal igualmente superficial e consumista. Atualmente, a moda é se apaixonar sem se apegar muito, pois o laço, quando desfeito, machuca e abre as feridas de um vínculo ausente. Criam-se laços superficiais, ao mesmo tempo que os deixam frouxos para que possam ser desfeitos com maior facilidade (BAUMAN, 2004). As pessoas, projetam partes de si mesmas nas outras e se apaixonam perdidamente como se tivessem encontrado o tal paraíso perdido por Adão e Eva, ou o “felizes para sempre” dos contos de fadas.

Entretanto, tal qual mostra o mito de Tristão e Isolda, em que ambos fogem apaixonados para a floresta com o intuito de escaparem da obrigação do casamento dela com o rei da Cornualha e, assim poderem viver felizes, em um estado inebriante de paixão e perfeição. Este estado apaixonado, em que os personagens do conto encontram-se embriagados por um vinho enfeitiçado, sempre chega ao fim (JOHNSON, 1987). E no fim do conto de fadas, o que resta para a pessoa é se dar conta de que tudo que ela viveu foi uma ilusão, não foi a realidade concreta, pois não é possível viver eternamente na floresta. A vida exige muito mais do que isso.

A paixão ocorre através da projeção do arquétipo contrassexual, presente em cada um dos indivíduos, o que faz com que o objeto fruto de tal sentimento receba características divinas de perfeição. Anima/Animus, estão presentes na psique de cada um, sendo vivenciadas a partir das relações interpessoais. Projetá-los não é um equívoco, pois é algo natural. Entretanto, manter um relacionamento com o outro sendo uma personificação exata de parte inconsciente do próprio indivíduo faz com que tal indivíduo se relacione consigo mesmo, gerando um relacionamento irreal, como Pigmaleão que se apaixona pela estátua de marfim de uma mulher esculpida por ele mesmo (BOECHAT, 1997; GRIMAL, 1997; HILLMAN, 1995; JUNG, 1995; SAMUELS, 1989).

Cada homem sempre carregou dentro de si a imagem da mulher; não é a imagem desta determinada mulher, mas a imagem de uma determinada mulher. Essa imagem, examinada a fundo, é uma massa hereditária inconsciente, gravada no sistema vital e proveniente de eras remotíssimas; é um “tipo” (“arquétipo”) de todas as experiências que a série dos antepassados teve com o ser feminino, é um precipitado que se formou de todas as impressões causadas pela mulher, é um sistema de adaptação transmitido por hereditariedade.[…] O mesmo vale também para a mulher, pois também ela carrega igualmente dentro de si uma imagem inata do homem (JUNG, 1995, p.278, §338).

Assim, se apaixonar por alguém e vê-lo como uma perfeição é algo que acontece e sempre ocorrerá, além de ser uma experiência maravilhosa, mas que chega ao fim como o estado inebriante da paixão entre Tristão e Isolda (JOHNSON, 1987). No final do conto de fadas fica perceptível que apesar de ter sido excluído do paraíso, esse novo mundo, real, aonde o outro não é mais um ser perfeito, também possui coisas positivas. O outro, o objeto da paixão, deixa de ser perfeito para ser mais perfeito ainda, pois não existe perfeição maior do que viver a experiência real, mesmo com todos os seus defeitos.

* Revisão do artigo escrito inicialmente em 2012 a partir do trabalho de conclusão de graduação “Sociedade Patriarcal e a Crise de Gênero na Contemporaneidade” escrito em 2008 pelo mesmo autor.

Referências Bibliográficas

BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed, 2004.

BOECHAT, W. Arquétipos masculinos: “animus mundi”. In: BOECHAT, W (Org). O masculino em questão. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

CAVALCANTI, R. O casamento do sol com a lua. São Paulo, SP: Cultrix, 1987.

FROMM, E. Psicanálise da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro, RJ: Zahar Editores, 1974.

GRIMAL, P. Dicionário da mitologia grega e romana. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 1997.

HAMAWI, R. Intrdução – que querem os homens? In: NOLASCO, Sócrates (org). A desconstrução do masculino. Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 1995.

HILLMAN, J. Anima: anatomia de uma noção personificada. São Paulo, SP: Cultrix, 1995.

JOHNSON, R. A. We: a chave da psicologia do amor romântico. São Paulo, SP: Editora Mercuryo, 1987.

JUNG, C. G. O desenvolvimento da personalidade. Obras Completas de C. G. Jung. Volume XVII. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1995.

LEICK, G. Mesopotâmia: a invenção da cidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago Editora, 2003.

MONTEIRO, D. da M. R. Mulher: feminino plural. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos, 1998.

SAMUELS, A. Jung e os pós-junguianos. Rio de Janeiro, RJ : Imago, 1989.

STEARNS, P. N. A história das relações de gênero. São Paulo, SP: Contexto, 2007.

TANNAHILL, R. O Sexo na História, Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves, 1983.

WHITMONT, E. C. O retorno da deusa. São Paulo, SP: Summus, 1991