O feminismo socialista e a luta antirracista
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O feminismo socialista e a luta antirracista

Tradução do artigo de Ingrid Luciano, Movimento Socialista de Trabalhadoras e Trabalhadores (República Dominicana)

Natália Granato
6 min
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Tradução do artigo de Ingrid Luciano, Movimento Socialista de Trabalhadoras e Trabalhadores (República Dominicana)

A rebelião antirracista estadunidense e seu impacto internacional  

No dia 20 de abril deste ano, foi condenado nos Estados Unidos o ex-policial Derek Chauvin pelo assassinato de George Floyd. A decisão foi uma conquista da rebelião antirracista do ano passado, que, sob a consigna de Black Lives Matter (vidas negras importam), mobilizou mais de 20 milhões de pessoas jovens, trabalhadoras, afroamericanas, latinas, que denunciaram o racismo institucional do país, evidenciando a brutalidade policial e sua crueldade contra a população racializada, assim como o sistema penintenciário, o desigual acesso a saúde e educação e a abismal desigualdade na distribuição da riqueza. O racismo tem cumprido um papel estruturador do regime político e da sociedade sob o capitalismo imperialista estadunidense, como consequência de sua história de escravismo e segregação. A onda antirracista se sentiu em todos aqueles países que sofreram ou exerceram a colonização e escravidão e que mantêm práticas sistematicamente racistas contra comunidades imigrantes, negras, asiáticas, indígenas e outras etnias oprimidas. Foram icônicos os derrubamentos e destruições de estátuas de escravistas e colonizadores por multidões organizadas, como em Bristol, Reino Unido, onde atiraram na água a estátua do escravista Edward Colston, ou na Virgínia, Estados Unidos, onde derrubaram a estátua do general confederado Williams Carter Wickham. Outras estátuas foram removidas pelas próprias autoridades sob a pressão das manifestações. Na América Latina, a onda antirracista também teve impacto. As organizações antirracistas vêm denunciando há anos o racismo institucional dos países da região. No Brasil, adotaram a consigna “Vidas Negras Importam” para denunciar o assédio e brutalidade policial contra a população negra das favelas, assim como a discriminação sistemática que os leva ao empobrecimento e a falta de acesso aos serviços mais básicos, em mobilizações no Rio de Janeiro e outras cidades. Na República Dominicana, um ato em homenagem a George Floyd se chocou com a cumplicidade entre os grupos neonazistas e policiais que terminaram prendendo lideres feministas antirracistas que seguravam flores e cartazes. Há um ano da rebelião antirracista nos Estados Unidos e no mundo, os povos celebram a condenação do policial assassino. Porém, seguimos gritando que o racismo não nos deixa respirar e continuaremos lutando contra a opressão racista.  

Exploração e opressão  

Em 1851, Sojourner Truth, uma dirigente abolicionista e defensora do voto feminino, exO feminismo socialista e a luta antirracista Ingrid Luciano, Movimento Socialista de Trabalhadoras e Trabalhadores (República Dominicana) escravizada nos Estados Unidos, realizou um discurso em uma convenção sobre os direitos das mulheres. O discurso ficou conhecido como fundacional do Feminismo Negro. O discurso, posteriormente entitulado “Por acaso não sou uma mulher?”, desmonta os estereótipos com os quais se constituem a suposta fragilidade feminina, que não se aplicavam para as mulheres negras escravizadas forçadas a trabalhos pesados [1]. Seguindo esses passos, nos anos 60, 70 e 80 do século XX, nos Estados Unidos, em meio às mobilizações pelo Black Power e o movimento feminista, as dirigentes e teóricas negras puseram em evidência o preconceito sexista e racista que colocava no imaginário todas mulheres como brancas e todos os negros como homens, invisibilizando as realidades e lutas das mulheres negras. Autoras como Patricia Hill Collins, Audre Lorde, Angela Davis e Barbara Smith enfatizam distintas formas de opressão e exploração. É o que depois a jurista Kimberly Crenshaw chamará de “interseccionalidade” e, mais adiante, Patricia Hill Collins nomeará como “matriz de dominação”. O marxismo e o feminismo socialista, desde o século XIX e inicio do século XX, reconhece a combinação entre opressão e exploração. Flora Tristán, Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo e Alexandra Kollontai já teorizavam a respeito, evidenciando as contrastantes realidades que vivem as mulheres burguesas e proletárias, que limitam o alcance de suas alianças como mulheres, como dizia Rosa Luxemburgo: “As mulheres das classes proprietárias defenderão sempre fanaticamente a exploração e a escravidão do povo trabalhador” [2], enquanto as proletárias lutarão como parte do povo trabalhador por sua emancipação. De forma similar, e sob a influência do marxismo, muitas teóricas feministas negras defendem que, embora denunciem o sexismo que sofrem no movimento de libertação negra, sua luta é junto com os homens negros. Na atualidade, há múltiplos debates em torno das distintas formas de opressão e o que isso implica para o movimento de mulheres. Como feministas socialistas, impulsionamos as lutas das mulheres a partir de uma perspectiva antirracista e anticapitalista. As práticas e ideologias chauvinistas, racistas, misóginas e homofóbicas dividem e debilitam a classe trabalhadora contra a burguesia para conquistar a emancipação. Da mesma forma, os distintos movimentos sociais que lutam apenas contra uma forma particular de opressão se veem debilitados quando conservam preconceitos discriminatórios contra outros sujeitos sociais ou quando limitam sua visão ao marco liberal-burguês. Por isso, buscamos fortalecer a unidade de todas as lutas, com a solidariedade e reconhecimento mútuo, sem cair em armadilhas políticas de fragmentação identitária ou o conformismo liberal, por um lado, tampouco na hierarquização das opressões, nem nas variadas formas que o conservadorismo se disfarça de “esquerda”, pelo outro. Necessitamos da articulação e mobilização de todas as forças operárias e populares para conquistarmos a emancipação como mulheres, como povos oprimidos racialmente e como classe trabalhadora, na América Latina e no mundo. 

Peru: Esterilizações forçadas Uma ferida que ainda sangra por Nila Silva, Movimento Isadora (Peru) 

“Vocês dão a luz como porcos ou porquinhos da índia” palavras que ainda ressoam na memória de Aurelia Pacchohuanca quando foi alcançada por uma ambulância e obrigada a subir nela para ser esterilizada sem seu conhecimento e consentimiento para a cirurgia. “Me amarraram os pés e mãos para que não pudesse me defender, três enfermeiras e seu doutor” conta Rute Zúñiga. “Iam de casa em casa, nos exigiam que fôssemos ao centro de saúde e nos ameaçavam que viriam com a policía, inclusive não queriam registrar os recém-nascidos se não iam primeiro ao posto de saúde.” Essas são apenas algumas das histórias de 314.605 mulheres que foram esterilizadas entre 1996 e 2001 sob o governo de Alberto Fujimori. Todas foram afetadas severamente, tanto físicamente, conjugalmente e emocionalmente. Pois algumas delas já não podiam trabalhar porque sentiam muita dor e em sua comunidade eram vistas como seres incompletos e incapazes de dar uma familia. Outras, seus parentes as abandonaram porque achavam que elas fizeram a cirurgia de propósito, e outras sofreram complicações posoperatórias que até tiveram que remover o útero; a maioria das afetadas estavam em condições de pobreza extrema, de origens amazônicas e indígenas. Essas mulheres foram levadas enganadas, ameaçadas e assediadas, com intervenção da polícia. A partir dos testemunhos, se conclui que foi parte da política nacional, o que é uma violação dos direitos humanos. Por isso é necessário que se investigue os autores e seus cúmplices, se determine qual foi a função de cada um para logo estabelecer suas culpas e puni-los adequadamente. E também que ocorram audiências onde se inclua o ditador Alberto Fujimori e seus três ministros de saúde: Eduardo Yong Mota, Marino Costa Bauer e Alejandro Aguinaga. 

Nós, do movimento Isadora, nos colocamos como parte desta luta e acompanhamos as companheiras em seu pedido justo, exigindo prisão para os responsáveis e que sejam condenados por violação de direitos humanos em crimes contra a humanidade, que tenham penas exemplares e as vítimas tenham reparação e ajuda psicológica. Para que isso não seja arquivado mais uma vez e para que nunca volte a acontecer. 

[1] Pode-se encontrar uma das versões do discurso de Sojourner Truth aqui: https:// www.nps.gov/articles/sojourner-truth.htm 

2] Luxemburgo, Rosa (2014/1912). O voto feminino e a luta de classes. Extraído de: https://www.marxists.org/ espanol/luxem/1912/mayo/12.htm