Profissão: Pedinte
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Profissão: Pedinte

As instituições que deveriam tratar para resolver de forma definitiva este problema são aparelhadas pelo viés de esquerda

HS Naddeo
13 min
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Recentemente minha esposa se condoeu da situação de um morador de rua que dorme sobre a marquise de uma agência bancária na Avenida Prudente de Morais, a principal via do bairro Cidade Jardim, em Belo Horizonte. Um senhor simpático, sorriso fácil, que fica ali pelas manhãs pedindo ajuda a quem passa, some durante a tarde, e retorna a noite como quem volta para casa. Seus pertences se resumem a um carrinho de supermercado cheio de bugigangas, um caixote e cobertores.

Imbuída de espírito cristão e senso de solidariedade, parou um dia para conversar com ele. Renato é o nome dele. Na rua há 4 anos, a aparência envelhecida esconde sua idade, 55 anos com cara de 65. Conversaram um pouco, sem que ele revelasse muito. Revelou no entanto que é cristão, e que teve sua bíblia roubada junto com seus pertences, sem explicar muito mais além do fato. A partir desse dia, ela sentiu-se motivada a ajudá-lo, levando café da manhã, almoço, e se prontificando a ajudá-lo a sair da rua, desde que ele assim quisesse. E ele disse que queria. A primeira providência que tomou foi dar a ele uma bíblia nova, com o que ele se sensibilizou e chorou bastante quando recebeu.

Compartilhando a história com amigos da igreja, uma amiga citou uma fazenda que recolhe moradores de rua com problemas de álcool e/ou drogas, com o objetivo de recuperá-los, dar-lhes uma profissão e reintegrá-los à sociedade. Era necessário também que o morador de rua tivesse no máximo 58 anos e fizesse exames de AIDS, sífilis e DSTs. O "Seu Renato" se encaixava nestas condições, então ela foi ao posto de saúde que fica bem ao lado da nossa casa relatar a necessidade dos exames, informando que Seu Renato não tinha documentos, recebendo desse posto a recusa em atendê-lo, no que ela ficou bastante inconformada.

Procurou então um outro posto que fica perto de uma comunidade aqui na região, e lá não teve problemas na aceitação de atendimento ao Seu Renato, e também se indignaram com a recusa do outro posto de saúde, afirmando que moradores de rua tem prioridade nesse tipo de atendimento, independente de ter ou não documentação. Deram a minha esposa a orientação para levá-lo no dia seguinte, informando a melhor hora e que ele seria atendido quando chegasse.

De posse destas informações minha esposa foi até o Seu Renato, confirmou com ele seu desejo de sair da rua, e combinou com ele de no dia seguinte, às 13:30, encontrá-lo para irem ao posto de saúde fazer os exames. Ao mesmo tempo, conseguiu que o pastor responsável pela fazenda dispensasse a necessidade de que Seu Renato passasse por uma triagem, uma vez que ele já chegaria lá com os exames realizados, e já marcaram o dia em que levaríamos Seu Renato ao encontro do pastor para que ele fosse encaminhado para a fazenda. A partir desse momento eu entrei na história, solicitado a acompanhar com ela, até por segurança, o trajeto de menos de um quilômetro até o posto de saúde.

Por volta do meio dia da data do exame, minha mulher levou almoço para o Sei Renato, e confirmou o local e horário que nos encontraríamos com ele, questionando se ele teria como acompanhar o horário para não se atrasar. E na hora e local marcados lá estava o Seu Renato e seu carrinho com seus pertences. Enquanto andávamos na calçada, ele ia pela rua empurrando o carrinho. E rapidamente chegamos. Minha mulher, então, entrou no posto para agilizar os trâmites enquanto eu fiquei com ele do lado de fora, momento em que procurei saber mais a respeito dele, dos motivos que o levaram a ir para a rua e viver como pedinte. Procurei ser engenhoso na maneira de perguntar as coisas, para evitar que ele fosse evasivo nas respostas. Iniciei dando a ele informações sobre o pouco que eu sabia sobre a vida dos pedintes, buscando dele confirmações e novas informações.

Descobri, então, que Seu Renato foi parar na rua porque chegou em casa um dia e descobriu que a mulher o traía. Ele não foi muito claro se houve algum flagrante ou como confirmou o fato, mas disse que simplesmente pegou sua mochila, colocou algumas roupas, e foi embora dali. Consegui saber também que ele era profissional especializado em impermeabilização de lajes, piscinas, dito com muito orgulho, e que já havia trabalhado em boas empresas. Perguntei se ele não havia procurado ajuda nestas empresas e ele respondeu que não quis se expor com pessoas que o tinham em bom conceito, e que seu propósito era se recuperar e estar se sentindo digno de voltar a procurar seus conhecidos.

Quando entrei no assunto de vida na rua, disse a ele que tinha ouvido um boato dizendo que quem não bebe cachaça não suporta muito a vida na rua. Ele confirmou. Perguntei se ele bebia, ele também confirmou, e me deu ainda a informação adicional de que também usava cocaína, com menos regularidade que a cachaça, mas usava. Curioso, quis saber como ele conseguia a cocaína, e ele me contou que durante as madrugadas há uma espécie de "delivery" de buchas de maconha e pinos de cocaína destinado aos moradores de rua, e que eles pagam com o que conseguem arrecadar com as esmolas que recebem durante o dia.

Seu Renato me contou também que há havia passado por uma clínica de recuperação e que, como interno, chegou a ser coordenador e conselheiro espiritual de alguns colegas. Quando perguntei porque saiu de lá ele me disse que saiu um dia para tirar uma carteira de identidade, que o "demônio" disse a ele para não voltar. Mostrou-se arrependido quando me falou isso. Aproveitei essa fala para confirmar se ele realmente queria sair da rua, se não faria o mesmo caso fosse para a tal fazenda de recuperação que minha esposa arrumou, e ele disse que não, que desta vez queria mesmo sair dessa condição. Foi quando ele foi chamado para ser atendido.

Durante esse curto diálogo ele reclamou mais de uma vez que estava com dor de estômago, que há alguns dias não tomava Omeprazol. Dei essa informação quando minha mulher se aproximou para encaminhá-lo aos exames. E quanto entraram, fiquei ali tomando conta dos pertences do Seu Renato e fazendo um retrospecto da conversa enquanto esperava.

Cerca de uma hora depois Seu Renato havia realizado os exames. Minha esposa conseguiu, também, que ele fosse atendido pelo médico para ver a questão da dor de estômago, mas ele recusou terminantemente o atendimento. Saiu dizendo que precisava ir para passar no restaurante que lhe dava sobra de comida, o que eu achei estranho, pois ele já havia almoçado a comida que minha mulher levou. Mas, pensei, talvez essa seja a comida que ele come a noite, então desencanei do assunto. Antes dele ir embora, combinamos que as 7:30 do dia seguinte estaríamos lá para levá-lo até o pastor, sujo escritório fica do outro lado da cidade. Tudo confirmado, eu e ela ainda ficamos no posto por mais uns 45 minutos esperando o resultado dos exames, todos negativos, felizmente, o que, oficialmente, tornava Seu Renato qualificado para ir para a fazenda.

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No resto da tarde nos ocupamos em resolver o transporte do Seu Renato até o pastor, uma vez que estamos sem carro. E não foi fácil. Táxis e motoristas de aplicativo não se interessaram em colocar um morador de rua em seus veículos, uma vez que não se tratava apenas da corrida, mas seria necessária uma higienização do veículo e que isso a remuneração não pagaria. Por fim, entrei em contato com um amigo que já havia ajudado uma pessoa nas mesmas condições e encaminhado para a mesma clínica. Combinamos o horário e o transporte do Seu Renato estava resolvido.

Nesta mesma noite, na reunião da nossa célula, conseguimos roupas novas para o Seu Renato, para que ele ao menos estivesse mais bem vestido para a nova vida. Saindo de lá, de carona com uma amiga, ela resolveu passar diante da "moradia" do Seu Renato. E ele não estava lá. Um sinal amarelo acendeu nas nossas cabeças. Por outro lado, nunca soubemos o horário que ele chega lá para dormir. Mantivemos a fé no desejo dele de sair daquela condição.

Na manhã seguinte, pontualmente as 7:30, estávamos lá, assim como nossa carona. Mas o Seu Renato não estava. Ficamos ali por alguns minutos e como ele não apareceu, agradecemos nosso amigo por ter acordado tão cedo para praticar a bondade de nos ajudar a tirar alguém da rua. Mas, ao invés dele ir embora, pediu que entrássemos no carro para darmos uma volta pelas redondezas e, quem sabe, encontrar o Seu Renato em algum outro local próximo. E foi o que aconteceu. Ele estava dormindo junto a outros dois moradores de rua debaixo de uma marquise há uns 300 metros do posto de saúde onde fez os exames. Eu desci do carro, fui até ele, chamei, e ele acordou meio assustado. Dei bom dia e perguntei na lata: e aí, Seu Renato, desistiu? Ele soltou o sorriso simpático de sempre, talvez um pouco encabulado por termos conseguido encontrá-lo, e disse: desisti. Dei um novo bom dia, voltei para o carro e fomos embora.

No dia seguinte pela manhã eu procurei o Seu Renato para lhe entregar os resultados dos exames. Não fazia nenhum sentido mantê-los conosco e talvez, quem sabe, viesse a ser útil para ele em algum momento. No verso do papel minha esposa colocou o endereço do escritório do pastor que poderia levá-lo para a clínica, com o dia da semana e o horário em que esse procedimento acontece. Mas, Seu Renato não estava lá. Voltei no dia seguinte e o encontrei, dormindo. Chamei, mais uma vez ele olhou para mim encabulado, e antes que dissesse alguma coisa eu falei: Seu Renato, estes são os resultados dos seus exames, felizmente todos negativos. Guarde com o senhor, de repente dentro da sua Bíblia para não perder, e quem sabe Deus abençoa e o senhor decide voltar atrás. O endereço do pastor está escrito no verso! Virei as costas e fui embora.

Hoje, pela manhã, vi Seu Renato no mesmo local. Agora, além de seus pertences, tem um filhote de cachorro como companhia. Estava cercado por duas mulheres que davam-lhe atenção. Eu estava com minha esposa, o cumprimentamos quando passamos, ele nos viu, sorriu, mas nem sei se nos reconheceu. Enquanto minha esposa entrou na loja eu fiquei esperando na porta, observando a cena. As duas mulheres saíram dali e Seu Renato, sentado no chão sentado nos seus papelões, coberto da cintura para baixo, abordava as pessoas que passavam pedindo uma ajuda. Minha esposa saiu da loja, passamos novamente diante dele, mas ele não nos abordou. E voltamos para casa e eu resolvi escrever este relato.

Recentemente contei essa mesma história para o jornaleiro que fica na praça aqui bem perto de casa, e ele me contou uma coisa interessante. Disse que diariamente troca dinheiro para pedintes que ficam na frente do supermercado próximo e moradores de rua. O interesse do jornaleiro é fácil de entender, ele precisa de dinheiro trocado. Mas não entendi bem para que servem notas maiores aos pedintes e moradores de rua, e quando o questionei o jornaleiro ele me contou que não é incomum trocar até 200 reais para os pedintes que ficam na frente do supermercado. Fiquei meio inconformado com a informação e resolvi perguntar sobre isso numa banca de jornal que fica próxima à "moradia" do Seu Renato, e também no sacolão ali por perto, e no bar que também fica na praça, e todos me confirmaram a mesma coisa.

Obter 100 reais por dia como pedinte significa um ganho mensal de 3 mil reais. Se for apenas 50 reais por dia, são 1500 reais mensais, mais do que um salário mínimo. Não vou dizer que não há nenhum esforço para ganhar esse dinheiro. Mas não é um esforço laboral. É apenas um esforço de cara de pau/humilhação para pedir e de paciência para fazer o montante. Não posso afirmar também que todo pedinte ou morador de rua consiga uma féria de 50 ou 100 reais por dia, mas, tendo o Seu Renato como referência, consegue o suficiente para a cachaça e os pinos de cocaína que "gentilmente" os deliverys noturnos lhe proporcionam.

Na região onde moro, zona sul, proliferam os pedintes e moradores de rua. Alguns vem de longe por terem vergonha de pedir na região próxima onde moram, ou porque se tratam de regiões carentes onde não vão conseguir o que precisam. Por aqui, muitas são as pessoas como a minha esposa, motivadas pela solidariedade, pelo espírito cristão, por acharem que realmente estão ajudando estas pessoas dando-lhes dinheiro e comida, talvez sentindo-se em paz com Deus por terem ajudado um necessitado, como se fossem suas obras que lhes garantissem a redenção. Mas, infelizmente, e penso que minha esposa entendeu isso, estas boas almas estão colaborando para que estes pedintes e moradores de rua permaneçam na condição que estão. Parece que poucos são os que realmente tem desejo de sair da rua e se submeter às regras da sociedade, dentre as quais não se encontram a cachaça e os pinos de cocaína.

Infelizmente, o poder público não trabalha para resolver esta questão profunda em nossa sociedade. As instituições que deveriam tratar para resolver de forma definitiva este problema são aparelhadas pelo viés de esquerda, e isso já começa na universidade, onde ao invés de profissionais são formados militantes, que, muitos, mesmo sem perceber, são usados como massa de manobra do sistema, para o qual é importante que milhares de "Seus Renatos" existam para justificar suas ideologias e combates a quem pensa diferente.

Penso que não podemos dar as costas para os necessitados, mas temos que refletir sobre qual é, de fato, a menor maneira de ajudá-los, e creio que isso passa, necessariamente, pela escolha de políticos que tenham pensamentos desenvolvimentistas e não assistencialistas. Para que um político com ideologia assistencialista sobreviva ele precisa da existência dos Seus Renatos, eles não podem deixar de existir. Políticos assim ganham votos pelo espirito solidário e ingenuidade das pessoas que acreditam estar elegendo alguém que vai fazer alguma coisa por pedintes e moradores de rua, sem analisar que nos últimos 35 anos a única coisa que a esquerda brasileira fez foi ajudar que eles proliferassem, e fizessem da mendicância uma profissão.


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