Cobrar pela cultura é emburrecer a humanidade
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Cobrar pela cultura é emburrecer a humanidade

O drama de Kbeto é ser um escritor com bloqueio criativo há anos. Kbeto até tem ideias —algumas brilhantes—, mas prefere desperdiçá-las na noite frenética paulistana. Um dia, dentro de uma caçamba de entulho, Kbeto encontra o diário de um anã...

Bruno
6 min
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O drama de Kbeto é ser um escritor com bloqueio criativo há anos. Kbeto até tem ideias —algumas brilhantes—, mas prefere desperdiçá-las na noite frenética paulistana. Um dia, dentro de uma caçamba de entulho, Kbeto encontra o diário de um anão facínora. Fascinado pela história do anão Altair, ele transcreve o bombástico manuscrito e publica o romance 'Maior que o Mundo' com seu nome, que logo alcança um sucesso estrondoso de público e crítica. É aí que seus problemas começam.

O parágrafo acima é a sinopse de um filme que me instigou. Desejo vê-lo desde o 1º minuto que fiquei sabendo dele, mas não o acho em lugar algum. Não. Ele não é um filme raro de 1930. Tampouco uma versão extra do diretor. Muito menos é um filme proibido em Bangladesh. É um filme normal. Brasileiro. De  2022. Como tantos outros.

Procurei, cacei, virei a internet de cabeça pra baixo para achar este filme. Nada. Procurei na Netflix, Disney, HBO, Amazon, e até nos sites menos famosos. Nada.

Como assim alguém se dá o trabalho de contratar atores, editores, camera, figurino, cenografia, lança um filme para... ninguém ver!? é isso mesmo?

Resultado da minha busca
Resultado da minha busca

Ouvi boatos que o filme estava restrito ao Telecine. E por enquanto apenas na TV paga. Nada de streaming.

Isso me faz refletir sobre um tema que sempre discuto: PORQUE A CULTURA NUNCA É GRÁTIS? OU PELO MENOS A PREÇO POPULAR?

Cada vez mais a cultura está restrita aos mais abastados. A quem pode pagar.

Antigamente livros eram objetos que passavam de mão em mão para espalhar cultura e ensinamento pelos 4 cantos do mundo. Hoje o livro é apenas um artigo feito para se ganhar dinheiro. Nada mais. O mesmo acontece com filmes e música. A cultura custa caro.

Hoje em dia, infelizmente, alguém que escreve um livro ou faz um filme não pensa mais na qualidade da obra mas no quanto ela renderá. Perdemos a liberdade criativa.

Os livros de hoje servem para agradar públicos X ou Y. Seus personagens, assim como os de filme, são meticulosamente criados para agradar o mercado pensando apenas na venda. Se heróis estão no hype, é sobre eles que fazem-se séries/filmes. Se são temas espaciais, lança-se séries/filmes sobre isso. Se a onda mudou para guerras, é delas que se fala. E se for sexo... bom, sexo sempre vendeu. O que muda é o estilo. BDSM está na moda agora. Nada de falar de sexo romântico do séc. XIX então...

Até a década de 90 ou talvez o início dos anos 2000 ainda podíamos ver filmes com ideias 100% originais. Hoje em dia existe uma onda de 'remakes' ou de filmes de heróis. Sabem porque? porque ninguém pensa na obra em si. Pensam em vender. E eles sabem que remakes e heróis vendem. É um tiro certeiro!

Se o mercado fosse grátis os escritores e roteiristas teriam mais liberdade para fazer o que quisessem, sem pensar só na venda. Eles fariam de tudo para levar suas obras até você e mostrar como eles são criativos porque assim, com mais gente vendo sua obra, eles poderiam cobrar um percentual maior dos anunciantes (falo mais sobre isso logo abaixo). Infelizmente o que se vê é o oposto. Como eu falei, todos lançam uma obra não porque eles a acham boa ou criativa, mas porque precisam VENDER. E vende-se CARO.

O declínio da originalidade. As barras à direita mostram a quantidade de filmes originais no Top10 das maiores bilheterias.
O declínio da originalidade. As barras à direita mostram a quantidade de filmes originais no Top10 das maiores bilheterias.

Se você nasce pobre terá uma dificuldade imensa para ter cultura. Uma sessão de cinema não sai por menos de 30 reais. 20 quando em promoção. Uma boa peça de teatro, nada menos que 40

Por mais que o streaming tenha melhorado o acesso à catálogos de filmes, o preço (ainda) é caro. A Netflix custa em média 26 reais por mês (312 ao ano). Amazon, 120 por ano. Disney 280. HBO, Paramount ou Globoplay 240. Assinar todas sai por 1.432,00 por ano, num país onde o salário mínimo é 1.212,00!!!

Evoluir como ser humano ao adquirir cultura não deveria ser motivo de cobrança. Livros, filmes ou teatro deveriam ser acessíveis a todos como hoje a música é. O streaming de música nos permitiu escutar qualquer artista gratuitamente pela internet. Isso mesmo, sem paga nada!

Antigamente tínhamos que comprar álbuns para ter acesso a algum artista, tal como filmes, ou esperar que suas músicas fossem tocadas em alguma rádio da mesma forma que esperamos os filmes na TV aberta. Sem esse "dízimo" era quase impossível conhecer algum artista.

Hoje em dia quem paga pela música que você ouve grátis são os anunciantes. As empresas que colocam propagandas entre uma música e outra. E caso você queira escutar sem ser incomodado, aí sim existe o plano de assinatura, tal como o YouTube.

O Youtube e o Spotify deveriam servir de exemplos para o cinema: acesso gratuito a qualquer hora em qualquer lugar para qualquer um. 

Como os canais de YouTube  ou artistas musicais ganham dinheiro? 

Quem produz conteúdo em vídeo ou áudio sabe que é preciso investir. Arrecada-se dinheiro através de financiamento coletivo, anunciantes ou simplesmente pegando empréstimo em bancos. Tudo se paga com a monetização do seu video/música, além da venda de itens como blusas, cursos e outras coisas relacionadas ao canal/artista. Não é preciso vender nada. O dinheiro cai quase que automaticamente na sua conta conforme o número de pessoas ou anunciantes que você alcança.

A indústria musical ainda tem outra vantagem: eles continuam vendendo álbuns físicos! geralmente quem os compra são fãs fieis e/ou colecionadores. Inclusive essa política de música gratuita fez o mercado de discos de vinil (LPs) ressurgir das cinzas e bater recorde de vendas. Porque a indústria do cinema não faz o mesmo?

Venda de vinis de 1993 a 2020 nos EUA
Venda de vinis de 1993 a 2020 nos EUA

Já existem estúdios fazendo (muita) grana com a venda de souvenirs. A Disney sabe disso muito bem. Ela vende tudo que é possível e licenciável da Marvel, Star Wars e Pixar, por exemplo. Basta que os demais façam o mesmo. Liberem seus sinais! deixem que o merchan banque seus serviços!

Quanto mais se cobra, menos pessoas tem acesso ao seu serviço, logo, menos pessoas são alcançadas e menor é o retorno com merchan. Com serviços gratuitos a população assistiria mais filmes, logo, teria mais acesso a propagandas também. É uma ótima maneira de alcançar públicos maiores e poder arrecadar mais, seja cobrando % do seu anunciante, ou expondo seus produtos relacionados à sua obra. É o que aconteceu com o "boom" do YouTube. É tudo muito óbvio.

Além do mais, ao não precisar pagar para ver um filme a população economizaria uma grana e melhoraria sua cultura. Ao engrandecer-se culturalmente a população enriqueceria, o que a permitiria comprar mais e mais produtos licenciados e/ou pagar para não ver as propagandas exibidas no streaming. 

Elitizar a cultura é emburrecer a sociedade.

Agora deixa eu parar de escrever porque tenho que achar um site "piratão" pra conseguir ver o filme que eu quero.

E tenho dito.

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