Sobre a qualidade da Democracia
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Sobre a qualidade da Democracia

Lembro-me das aulas de geografia, pelo final do ensino fundamental e início do ensino médio (comecinho dos anos 2000). As apostilas falavam sobre o “vale do jequitnhonha”, como marco geográfico inicial do chamado “bolsão da fome”, território ...

Pedro Melo
10 min
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Lembro-me das aulas de geografia, pelo final do ensino fundamental e início do ensino médio (comecinho dos anos 2000). As apostilas falavam sobre o “vale do jequitnhonha”, como marco geográfico inicial do chamado “bolsão da fome”, território que, ainda em Minas Gerais, apresentava características demográficas similares ao nordeste, com marcante pobreza, fome, analfabetismo e saneamento básico quase inexistente. 

22 anos, 3 governos de esquerda (PT) e um de direita depois, as características geopolíticas não mudaram muito e a demografia, um pouco mais inflada, foi o fiel da balança que definiu as mais equilibradas eleições da história da nossa democracia. 

Lembro-me também do meu primeiro ano na Faculdade de Direito de Jacarezinho-PR, quando assistia a uma palestra do Professor Orides Mezzaroba, que dizia “a democracia é o estupro da maioria”. “Imagine a seguinte situação”, dizia o Professor, “quatro amigos vão acampar e apenas um deles leva sua namorada. No terceiro dia de acampamento, os amigos que estavam desacompanhados decidem votar pela socialização da namorada, já que não seria justo, nem igualitário, que apenas um deles pudesse desfrutar da companhia feminina”. O final da história é desnecessário. A lição é pesada, mas necessária. Democracia é um perigoso poder! E aqui não há citação melhor do que o Tio Ben Parker: “com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”. É, portanto, preciso SIM discutir a qualidade da democracia no Brasil. 

Entretanto, pela histórica concentração de votos de um partido em determinada região, com características geopolíticas e demográficas bastante particulares, discutir isso virou sinônimo de xenofobia.

Controle a narrativa e concentre o poder! Discutir a qualidade da democracia no Brasil não passa somente por estudar os rincões de votos de um ou outro partido. É importante olharmos para as instituições e os papéis que cada uma delas vem desempenhando.

E nesse contexto, hei de me lembrar da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, que, em grossíssima síntese, aduz haver na sociedade uma teia de sistemas e microssistemas que são “autopoiéticos” entre si. Tento explicar. Importando conceitos das ciências biológicas para as sociais, Luhmann constrói um raciocínio onde identifica que existem alguns sistemas que são, ao mesmo tempo, fechados (o ordenamento jurídico, por exemplo, é “completo” em si mesmo), mas abertos à influência de outros sistemas, que o alimentam e modificam (o sistema político, pode alterar o jurídico por meio da atuação legislativa, por exemplo. Por sua vez, o sistema político é influenciado e modificado pelo sistema democrático que, a seu turno, pode ser influenciado e modificado pelos sistemas jurídico e político). Esses sistemas coexistem num ambiente complexo, influenciados interna e externamente por inúmeros fatores. Poderia, talvez deveria, gastar muito mais tempo e atenção explorando melhor tais conceitos. Mas, as premissas acima bastam. 

Noam Chomsky, festejado sociólogo americano, em seu documentário “Requiem for the american dream” traduz, com didática invejável, a dinâmica em que os poderes (sistemas) capital e político se retroalimentam para a concentração cada vez maior desses poderes. Ou seja, o poder capital alimenta o poder político que, por sua vez, retroalimenta o poder capital, gerando um ciclo de concentração de poder que influencia e danifica a sociedade como um todo. 

Colocadas essas premissas, volto os olhos à democracia brasileira. Um país que dificilmente consegue se entender como nação. À despeito das diferenças culturais, regionais e sociais, haveria algum sentimento, objetivo ou desejo comum a todos os habitantes desse território de dimensões continentais? Em alguma medida, retiradas todas as camadas de pensamento, de experiências próprias, interesses, visões de mundo, as pessoas possuem algum núcleo duro central de objetivo comum enquanto nação? A Constituição Federal prometeu que sim! Seu artigo 3º estabelece os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. E todo o resto do texto constitucional é, ou deveria ser, um mapa, um direcionamento de como realizar tais objetivos. 

Nesse contexto, a eleição do representante do povo a ocupar a cadeira de chefe do Poder Executivo é, ou deveria ser, a forma mais significativa de “autoanálise” da nação, a “Assembleia-Geral Ordinária” do País, onde olhamos para os resultados e pensamos se estamos sendo conduzidos aos nossos objetivos enquanto nação, ou que líder pode vir a fazê-lo. 

Lamentavelmente isso não ocorre. Em tempos de eleições, discute-se TUDO, menos resultados e projetos. Não à toa, foi eleito o candidato que não tinha programa de governo publicado.

E isso ocorre por fácil constatação: havia um inimigo a ser derrotado. Mais uma vez, as eleições foram contra alguma coisa. Muito pouco a favor de algo, mas fortemente contra alguém. É a cartilha da mobilização de massa. Derrotar o grande inimigo comum… essa foi a estratégia de propaganda historicamente utilizada, entre outros, pelo Nazismo de Hitler. 

É o sistema democrático influenciado e modificado pela falta de senso crítico, de emancipação racional, pela educação sucateada (fruto de um sistema político que falhou em promover os seus objetivos republicanos).

A Narrativa do Inimigo ganhou tanta relevância que permeou a atuação das instituições, dos sistemas encarregados de preservar a legitimidade do processo democrático. Em decisões dignas do mais eficiente “Ministério da Verdade”, a lisonjear o próprio George Orwell, o TSE impediu que determinados veículos de imprensa viessem a traduzir os complexos meandros dos processos judiciais que acabaram por anular as condenações do então candidato Lula, agora eleito Presidente da República.

A história é simples: houve um ex-Presidente da República que, após o término do seu mandato se descobrira, estava envolvido em um gigantesco esquema de corrupção de proporções bilionárias. Ministros e assessores seus o delataram, o processo correu em 1ª instância e eclodiu em condenação. O Tribunal de segunda instância analisou as provas e confirmou a condenação. O ex-presidente foi preso e assim permaneceu por 500 e tantos dias. O Tribunal Superior, que protege a aplicação das leis federais, confirmou as condenações. Demais envolvidos naquele esquema de corrupção também foram condenados e devolveram aos cofres públicos dezenas de bilhões de reais. No mundo dos fatos, portanto, o crime existiu. 

Porém, no mundo do direito, no sistema jurídico, existe um Tribunal Supremo, que, encarregado de proteger a Constituição Federal, é composto por 11 Ministros indicados pelo Chefe do Poder Executivo, que deveriam julgar, conforme prevê o art. 102 da CF, somente as matérias que digam respeito ao texto constitucional. O que versa sobre Lei Federal, cabe ao STJ. Deveria ser assim. Como nossa constituição é extensa e versa sobre bastante coisa, algumas com detalhes profundos, a estes 11 Ministros acaba recaindo a decisão sobre muita coisa. Mas muita coisa mesmo, de modo a redundar, muitas vezes, numa desequilibrada concentração de poder nas mãos deste único tribunal. 

Voltando ao caso do ex-presidente condenado por corrupção. Seus processos acabaram por ser julgados neste Tribunal Supremo, em que muitos dos 11 Ministros foram indicados pelo próprio réu, ou pela sua sucessora, do mesmo partido político. Nesse momento, a autopoiese dos sistemas, como explicara Luhmann, aconteceu e o sistema político influenciou o jurídico, no momento em que alguns desses Ministros (que deveriam julgar apenas sobre a Constituição) julgaram sobre o teor de Lei Federal e decidiram, em maioria, que o processo do ex-presidente foi julgado no lugar errado (Mas o sistema jurídico não determina que competência territorial é relativa e, como tal, convalesce com o curso regular do processo?) e que o primeiro juiz do caso era imparcial (mas e todos os outros 3 Desembargadores e 6 Ministros de Tribunal Superior que também julgaram o caso?). Com isso, ressuscitou-se politicamente alguém que, juridicamente, não poderia participar de pleitos eleitorais. 

Mas mesmo essa manobra não teria o condão de superar o principal filtro democrático: a consciência do eleitor, que, numa democracia madura, poderia olhar, discutir e interpretar esses fatos para tomar sua melhor decisão. Ocorre, porém, que estamos tratando do Brasil, onde os níveis de educação não são nem próximos dos países desenvolvidos e, apesar de haver MUITA GENTE BOA E ESCLARECIDA, que trabalha, produz e vota tanto em um candidato quanto em outro, com a mesma legitimidade de seus motivos, há também muita gente que vota sem critério, com base em propagandas e anti-marketings ferrenhos que sempre permearam os embates eleitorais. Para essa parcela volumosa da população, as complexidades do sistema merecem ser melhor explicadas e simplificadas. Daí, criou-se o termo “descondenado”, utilizado por parte da mídia para retratar o que aconteceu com o ex-presidente.

Ora, já que juridicamente não houve absolvição (que só ocorre na estrita forma do art. 386, do Código de Processo Penal, o qual não fulcrou nenhuma das decisões que beneficiaram o réu) as decisões que anularam as condenações, para serem compreendidas pela parcela da população que tem menos acesso ao complexo entendimento do sistema jurídico, poderiam sim ser interpretadas como “descondenação”. O termo não é técnico, sequer existe juridicamente. Mas também não é mentiroso! Retrata com fidelidade no mundo dos fatos o que havia acontecido. 

Porém, novamente os sistemas atuaram e o TSE (O Tribunal que cuida das eleições, e é presidido pelo mesmo Ministro do Tribunal Supremo que havia participado do julgamento da “descondenação”) PROIBIU emissoras de rádio e televisão de falarem sobre essa tal descondenação. Novamente, o sistema jurídico influenciou o sistema democrático, retirando do debate um tema que era, senão o mais importante, um dos mais necessários à embasar a tomada de decisão democrática. 

Sem poder discutir e quiçá compreender na plenitude o que estava em jogo, o sistema democrático decidiu: 60 milhões de pessoas “perdoaram” crimes de corrupção que ocorreram no mundo dos fatos (ou ao menos entenderam que isso não tinha tanta importância). Outras 58 milhões, não.

Foi a eleição mais disputada da história, o resultado mais aproximado (se fosse uma pesquisa, seria empate técnico). E também foi a eleição em que o sistema democrático foi mais descaradamente influenciado pelo sistema jurídico.

A diferença, em números, foi equivalente a um daqueles rincões históricos de votos em favor de um único partido. 

A boa notícia: sai o Bolsonaro! 

A péssima notícia: entra o Lula!

Como disse um grande amigo: “aquele que está destinado e tem disposição para progredir, não importa o governo, vai prosperar. Mas aquele que tem esperança de que um presidente vai tirar ele da miséria, esse terá problemas”. 

Eu gostaria de ter a esperança daqueles que acreditam na tal “reconciliação”. Infelizmente desde que tirei meu título de eleitor, aos 16 anos, eu vejo seguidas eleições pautadas na luta contra um inimigo. Antes era contra os “neoliberais”, que agora, vejam só, se tornaram os aliados para combater “o facista-genocida”. O Primeiro discurso do Presidente eleito não me permite acreditar na unificação, na construção de uma nação. Eu não sei qual é seu programa de governo. A experiência me mostra que o Bolsonarismo foi uma abjeta consequência dessa política de ficar taxando todo mundo de facista, odioso, etc.. dividindo o País. O Bolsonaro é um subproduto de 15 anos de Petismo. 

O que virá adiante? Qual o próximo inimigo? 

A qualidade da democracia brasileira precisa ser discutida para romper esse ciclo. Não há o que comemorar.