Chega a quinta-feira, o dia da feira-livre no meu bairro.
Há uma semana atrás, após uma boa compra de feira livre, voltei para a casa, já aguardando a criação de caso da minha mãe por conta do volume das compras. Ao chegar em casa, deparei com dona Cida, uma velha amiga da minha família, mais chegada à minha mãe. Miúda e faladeira, estava na cozinha contando suas conversas enquanto a minha mãe pilotava o fogão. Cumprimentei-a com respeito desprendido, disposta a manter a paz. |
Somos opositoras antípodas em numerosos pontos de vista, como nos filosóficos, políticos e até religiosos, embora neste último campo houvesse só uma conversa, na qual ela, sem fervor de sua fé alucinada e prolixa, levantara sua voz estridente para decibéis ainda não mensurados, ao que preferi dar o meu desprezo silencioso . Apesar de tudo isso, reconheço-lhe a bondade e a resiliência diante dos reveses que atravessou em quase toda a sua vida, pois saiu da escola ainda no "primário" para trabalhar. |
Ao observar a conversa com a minha mãe, identifiquei o assunto como sendo de política. No tema, ela se disse achar injusto culpar o Bolsonaro por tudo e ainda o acusarem de ser o anticristo (nunca li a respeito, mas já imaginei a fonte). Foi nessa hora que fui tirar o meu prato de almoço. |
Como que tivessem lhe atiçado a corda, dona Cida continuava a falação em pleno almoço. Embora me mantivesse silenciosa, a ouvia para me divertir intimamente com as falácias. Foi então que ela, inspirada desde sempre, contou a pérola: |
- Dona Zinha, você perdeu a palestra que o amigo do pastor deu na igreja. O Globo, esses jornais aí não falam, que o nosso presidente está sendo vítima de uma "conspiração internacional plantada pela disseminação do vírus pro comunismo tomar conta direto de todo mundo, e que esse vírus foi montado em laboratório com um chip para isso" - declarou, cheia de convicção. |
-Que isso, Cida - minha mãe contestou, pois no fundo evitava ao máximo falar de política, mas desta vez se coçou e não aguentou. - eu também acompanhei minha sobrinha numa igreja aí e ninguém falou nada disso. |
-Não, Zinha, os jornais não podem falar! |
-Mas não vi jornal nenhum, e nunca vi padre nem pastor falar isso, como o amigo do seu pastor soube? |
-Foi revelação do espírito santo! Os pastores são servos escolhidos para receber e falar as revelações do espirito santo! |
Exatamente nesse momento aparece um sobrinho meu muito esperto que perguntou: |
-Mas então por que ninguém mais soube desse assunto? |
Dona Cida não deixou barato: |
-Porque esse amigo foi escolhido para falar a notícia pros outros! |
ROSSINI, S. A fanática bozominion, em: CENAS DA VIDA URBANA- crônicas do real. |