“Jameson. Duas pedras.”
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“Jameson. Duas pedras.”

As três palavras pronunciadas por Matheus iniciaram a sua participação em mais uma noite de obrigatoriedades sociais diante de seu status. O garçom — com a simpatia de um agente penitenciário- serve o jovem jogador de poker com aquele copo me...

Mati Castro
7 min
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As três palavras pronunciadas por Matheus iniciaram a sua participação em mais uma noite de obrigatoriedades sociais diante de seu status. O garçom — com a simpatia de um agente penitenciário- serve o jovem jogador de poker com aquele copo meia altura com pequenos frisos em forma de folhas de trigo gravados em um recipiente acostumado a grandes eventos e homéricos porres em bailes chatos como aquele. Matheus não queria estar lá. Já sabia o que iria acontecer do primeiro aperto de mão até o último “eu te amo, cara” de um bêbado conhecido qualquer que tem auto estima tão duradoura quanto às maquiagens das mulheres no recinto. Smokings, ternos, gravatas, vestidos chamativos pelo mau gosto, decotes falsos e um teatro interminável com atos decorados e tediosos. Os atos de tal peça eram facilmente decifráveis por Matheus que insistia em estar lá pela bebida e pela sensação de estar em uma aula de antropologia avançada onde podia se ver na prática os espécimes de alguns primatas modernos com a capacidade intelectual de um cachorro que vive para comer, correr atrás do osso e copular. Matheus se alimentava da hipocrisia que a ignorância poderia lhe sorver. O tédio era o seu wingman indesejado quando se tratava de estar em um ambiente socialmente ativo, então o combatia com sarcasmo e a brincadeira mental de acertar os detalhes de todos aqueles que o cercavam. Projetos de macho alfa brotavam do chão como praga e tinham a expertise na escrotidão de ser meramente ilustrativos em uma vida medíocre regadas à “champas”, sapatênis, coleiras das esposas e alguns casos por trás das cortinas para afirmar sua frágil masculinidade. Esse era o cenário. O longa-metragem repetido. Matheus nota os mesmos mínimos detalhes daquele circo todo: os brilhos excessivos dos vestidos das mulheres com maquiagens pesadas escondendo a insatisfação de estar ao lado de um coitado, as altas gargalhadas em uma competição infame de quem era o coitado mais evidente da brilhante sociedade de coitados, selfies de amigas tão verdadeiras quanto o silicone que portam no decote e a sensação de tudo estar interligado na maestria de uma obra satírica de uma sociedade de Machado.

A música, inesperadamente, surpreendeu. Um soul arrastado. Sensorial. Uma proposta diferente. Aquém da expectativa dos coitados. Além da de Matheus. Ele toma mais um gole e cerra os olhos. Apenas ouve murmúrios intermináveis de um calvo conhecido que há tempos não o via. Escutava tudo. Não ouvia nada. Devia ser o mesmo protocolo de “o que anda fazendo?/eu estou fazendo isso/solteiro ainda?/pois é, eu sou um coitado ainda como pode ver”. Matheus finge aceitar e apenas responde o clássico: “Eu entendo”, quando queria dizer: “Suma daqui”. A luz vai diminuindo em alguns pontos e ele estranhou pelo fato de ninguém reagir a nada disso. A música aumenta de volume e amplitude. Os movimentos vão ficando lentos ao som de um contrabaixo fretless nas mãos de um jovem geek aparentando uma versão remodelada de um James Dean contemporâneo. Ele nota a banda. E percebe que o som não acompanha os movimentos. “Bebi rápido demais?” As dúvidas ecoam em sua mente sobre aquela estranha movimentação. A lentidão. A charmosa lentidão que parecia acometer ele apenas. As luzes vão ficando em meia fase e tons de um laranja amadeirado vão surgindo das paredes e evidenciado três aspectos. A banda, Matheus e ela. “Quem é ela”? Dolorosamente, a dúvida ecoa em seu peito ao vê-la.

O vestido longo preto delineava o seu delicado e arrebatador corpo. Nem tão alta, nem tão baixa. Ela estava lá. Parada com um copo de glenfiddich na mão sendo abordada por aquele mesmo coitado que estava ao lado de Matheus. Os olhos profundos denotavam ceticismo e autenticidade, os traços finos de como o vestido caía em seu corpo marcavam uma intensidade difícil de ser compreendida. Cabelo curto, liso mas nem tanto, algo que a definiam como uma bella ragazza que surgiu vindo de um pequeno vilarejo italiano no norte da Velha Bota. Sua pele branca beirava à translucidez comparada ao bronzeamento excessivo das outras. A garganta de Matheus seca ao ver a quintessência que a beleza daquela mulher causou como uma Apollonia ao ver o seu amado fugitivo Corleone. Ela devolve o olhar, o tempo pára e ela ri. Um riso irônico. Um sorriso enigmático e belo. Uma prova do intangível que toca. Do metafísico em ação. Do inexplicável em palavras escritas. Ela volta ao tempo presente quando evita o olhar de Matheus. A música aumenta a pulsação. Matheus faz força para que sua boca não fique aberta e fecha os olhos para dar o gole da misericórdia de sua garganta seca ao atestar à perfeição em forma de um corpo feminino a passos de distância. “Talvez eu esteja bêbado demais e é uma miragem deste embelezador fantástico”. Não era. Matheus avista ela e a si mesmo com o braço envolta de sua cintura. Ele olha à sua volta e o tempo-espaço continua mais lento que o humanamente natural, mas algo o dizia: “Não analise, sinta”. Ele presta atenção àquela estranha cena de avistar a si mesmo na mulher mais bela que já havia visto. Algo faz com que o seu rosto vire para a banda e um olhar dizendo mais que um convite insinua seu desejo de dançar. Um trompetista francês começa a entoar La Vie En Rose e os dois delicadamente começam a deslizar pelo salão como um só. A banda tocava com a maestria de um vinil sendo reproduzido. “Ninguém está vendo isso?” Ele se perguntava constantemente. Era a cena mais bonita de sua existência. Uma projeção sua dançando com a ragazza que sempre sonhou. Quando a icônica introdução termina, um cover perfeito de Armstrong começa a entoar a oitava maravilha do mundo em forma de acordes e notas provenientes de Edith Piaf com toda a genialidade de uma vida cor de rosa. Matheus estava deliciado ao ver aquilo e não queria que acabasse nunca mais, mas algo incomum lhe torna aos olhos. Nota que a aparência do casal está diferente. Os acordes do trompetista seguem assim como a rouca voz do intérprete, as feições não mais tão joviais e sim amadurecidas. Os sorrisos petrificados nos rostos de uma imutabilidade de espírito e apenas dos corpos. A eternidade estava cravejada naquele momento. Cada acorde, cada passo, cada nota cantada, a aparência iria amadurecendo ao ritmo da intensidade dos sentimentos envolvidos. Matheus nota que ele envelhece junto à ela a cada momento. Não entende, mas não busca respostas. Degusta daquele momento sublime de ver um casal idoso dançando até o seu clímax. Era ele e ela apenas. Não sabia o seu nome e nem a sua história. E não importava. Apenas queria digerir cada fração de segundo daquele momento. E assim o fez. O trompetista solta o seu último grande sopro da magnífica sinfonia de Piaf e o Armstrong silencia. O casal some gradativamente enquanto se olham da mesma maneira quando se tocam no início da música.

As luzes se acendem e o efeito termina. Matheus está em estado de choque. Suas mãos tremem. O barulho das duas pedras batem contra o copo. “Vou terminar esse copo e irei embora”. Como ele poderia estar em um lugar onde viu o paraíso com os próprios olhos mas não o realizou? Uma tímida lágrima surge em seu rosto enquanto dá o último gole daquele doloroso choque de realidade. Seus olhos abrem. E o trompetista aparece juntamente ao cantor. A vida de cor de rosa começa a ser construída novamente em acordes e ela está lá olhando para ele com a mesma lágrima. Matheus sorri como nunca sorriu antes. Entrega o copo vazio a um coitado qualquer e se aproxima dela. Palavras não são trocadas e ele estende a sua mão. Ela segura na mão de Matheus, e assim os dois eternizam na realidade o que há pouco foi um mero devaneio.