Por um instante, breve, mas do tamanho do Universo, surgiu na mente dele um bebê azul de quatro braços. O pensamento veio como uma lembrança, bem na hora em que Pedro Paulo ia ligar para mais um cliente a fim de oferecer o novo plano de benef...
Por um instante, breve, mas do tamanho do Universo, surgiu na mente dele um bebê azul de quatro braços. O pensamento veio como uma lembrança, bem na hora em que Pedro Paulo ia ligar para mais um cliente a fim de oferecer o novo plano de benefícios do banco, que não era um título de capitalização. | ||
— Olá, bom dia! Aqui é o Pedro Paulo, seu gerente do Itaú, tudo bem? | ||
— Ah, sim, tudo bem — diz alguém com sono na outra ponta da linha. | ||
— Estou ligando para te falar do nosso novo plano de benefícios. | ||
— Ah, é tipo aqueles títulos de capitalização, né? — pergunta a voz sonolenta. | ||
— Não, não, o plano de benefícios… — Antes de terminar a frase ele percebe que já não está falando com ninguém. | ||
Seria fácil lidar com a rejeição, se não acontecesse sempre. Mas, apesar dos inconvenientes, Pedro Paulo era um excelente gerente do Itaú. Naquela manhã, ao observar as anotações em seu bullet journal, feito com um Moleskine preto básico, que não transparecia nenhuma pista sobre seus gostos pessoais, ele percebeu que, se fechasse mais um plano de benefícios, bateria a meta do mês, e garantiria a viagem de ano novo a Trancoso. | ||
Não que ele fosse deixar de ir para a Bahia se não batesse a meta, mas sempre é melhor pagar com seu dinheiro do que ficar dependendo das marcas que patrocinam Gaby Love, sua namorada influencer. | ||
Pedro Paulo não reclamava. Na maior parte do tempo, ele era feliz. Só ficava triste quando esquecia de cortar o cabelo e o topete loiro ficava tão grande que a pomada já não o sustentava. Era a hora de passar a usar aquele edifício loiro tombado para o lado, até ter tempo de cortar de novo. O problema era que o cabelo daquele jeito não valorizava tanto seu rosto, ele achava. | ||
A pomada, inclusive, estava no fim. Ele teria que passar no Pão de Açúcar da esquina de casa para comprar uma nova. O bom é que era quarta-feira e ele poderia aproveitar a promoção de cervejas especiais. Ele adorava as cervejas especiais, apesar de não saber o que exatamente as tornavam especiais, além do preço. Ele só sabia que deveria evitar as Pilsen, porque eram tipo Brahma, Skol, essas marcas mais aguadas. | ||
Naquela manhã, antes de fazer a última ligação que precisava, Pedro Paulo foi atravessado pela estranha imagem do bebê azul de quatro braços. Ele tentava discar os números, mas sua presença já não estava junto do telefone. A cabeça já não estava no presente. Com a rapidez de um pensamento, ele estava dentro de um berço, na antiga casa de seus pais, no Jardim Europa. | ||
Recuperando memórias já corroídas e quase encobertas pela poeira do esquecimento, ele se viu sentado no colchão. Dois dos braços agarravam as grades do berço, os outros pareciam dançar com o vento, enquanto seus pais conversavam com um médico indiano: | ||
— Eu estou dizendo aos senhores. Se me permitirem conduzir os estudos desse menino, ele vai entender com facilidade que a vida é uma eterna dança entre o micro e o macro cosmos. O que eu estou dizendo é que o filho de vocês pode ser o coreógrafo dessa dança. O que quer que ele escolha criar, o resultado vai ter a beleza de um bailarino que flutua no espaço, porque ele vai saber unir ação e boa intenção, e vai entender que a criatividade vem de uma fonte inesgotável de conhecimento, que é o Universo. Ele vai aprender com o silêncio. Vai entender que lá vive a entidade mais poderosa que ele poderia conhecer: ele mesmo. Vai entender que os relacionamento que ele tem, sejam com pessoas, com o dinheiro ou com as coisas são um reflexo do relacionamento que ele tem com ele mesmo. Quanto mais ele entrar em contato consigo, mais facilmente vai saber diferenciar seu eu do seu ego. Ele não vai ter dificuldade para descobrir que o ego é uma sapatilha de cetim que esconde os dedos quebrados da bailarina, é um lençol que encobre a nossa bagunça. Por medo de revelar essa bagunça, muita gente acaba se apegando ao lençol, sem perceber que não se faz uma faxina mantendo as coisas no lugar. Essa percepção vai torná-lo imune ao mais paralisante de todos os sentimentos, o medo. Sem medo, sem culpa e sem inseguranças ele vai ser o melhor dançarino do Universo. | ||
— O senhor continua brincando com a nossa cara, Doutor Arjuna? — interrompeu Pedro Pompeo, o pai de Pedro Paulo. | ||
— Nos disseram que o senhor seria o único médico que poderia ajudar nesse caso, mas o senhor nunca nos ajudou. — Disse Audrey, a mãe de Pedro Paulo, pronunciando todas as sílabas com precisão cirúrgica, dom que o filho herdaria em algum momento da vida. | ||
— Veja bem, o filho de vocês é especial. Eu nunca falei tão sério em toda minha vida. — acalmou o Doutor Arjuna. | ||
— Doutor, ele é uma aberração! — irritou-se Pedro Pompeo, antes de ser repreendido pela esposa com um olhar que o mataria se tivesse laser. | ||
— Os senhores estão equivocados. É esse tipo de coisa que essa criança vai poder ser capaz de transcender. Se eu, ao menos, puder orientá-lo a... | ||
— Nós agradecemos a ajuda do senhor, mas acho que já tomamos nossa decisão, não é, querida? — interrompeu Pedro Pompeo, dirigindo-se à porta e abrindo-a, fazendo um leve sinal com a cabeça, indicando a saída. — E agradeceríamos se o senhor parasse de vir aqui. | ||
— O filho de vocês é parte de um mistério tão grande que vocês nunca vão conseguir esconder. — esbravejou o Doutor Arjuna, deixando a sala. | ||
A cena surgiu com a clareza de um raio na cabeça de Pedro Paulo, assim como as cirurgias que nunca lhe contaram que tinha feito. Com procedimentos cirúrgicos relativamente simples, seus dois braços extras foram decepados com facilidade. E as cirurgias plásticas eliminaram qualquer vestígio de membros indesejáveis. O que deu mais trabalho foi a despigmentação da pele. Foi só depois de trinta sessões dentro de uma cabine estranha de uma clínica de estética que o tom azul começou a amenizar. | ||
Aos dois anos de idade, Pedro Paulo já era loiro e a única parte azul de seu corpo eram os olhos, iguais aos de Audrey. Os pais fizeram de tudo para garantir a segurança do filho, e, principalmente, para que não sofresse bullying na escola. E conseguiram. Pedro Paulo cursou administração em faculdade pública, onde conheceu Gaby Love — antes dos dois milhões de seguidores. | ||
O casamento com a namorada está marcado para o próximo ano. Ele queria passar a lua de mel em Bali, porque viu as praias de lá no canal Off, mas Gaby prefere Paris. Pedro Paulo não contraria a namorada, porque sabe que, se o homem é a cabeça de um relacionamento, a mulher é o pescoço que o direciona. Para ele, o casamento é uma instituição séria. Quando selada a união, ele deve abrir mão de certos prazeres, como fumar um baseado na cama antes de dormir. Talvez, precise fumar escondido no banheiro. Mas isso ainda é uma preocupação do futuro. | ||
Naquele momento, antes de fazer mais uma ligação para oferecer o novo plano de benefícios do banco — que não era um título de capitalização —, Pedro Paulo teve um lapso de memória. Ele transcendeu o espaço-tempo e o sentido das coisas. Ele assistiu a sua vida de longe, como se a observasse através de uma janela pendurada no infinito do cosmos, lá onde todos os problemas têm o tamanho de uma estrela quase apagada pela distância. | ||
Por um instante, breve, mas do tamanho do Universo, ele se lembrou de que é um deus. | ||
Como vocês puderam perceber, essa é uma edição especial. Terminar um conto e decidir que ele está pronto para ser lido pelos outros é sempre um momento especial. | ||
Não acho que eu deva ficar explicado o conto, mas talvez seja legal falar como ele nasceu. Foi durante uma experiência psicodélica, quando você percebe que um Universo que abriga um tipo de vida consciente capaz de refletir sobre si mesmo só pode ser uma fonte inesgotável de criatividade. | ||
Primeiro, me veio a imagem de um bebê azul meio Krishna, meio Shiva, e depois uma frase: "Por um instante, breve, mas do tamanho do Universo, ele se lembrou de que é um deus". Ela me atingiu como uma flecha no coração. E eu chorei. | ||
Não por eu lembrar de que eu sou um deus, mas por lembrar que TODO MUNDO é. Acredito que se a gente habita esse mundo, a gente já carrega todo o potencial do Universo que nos cerca. Alguns chamam isso de Deus, outros chamam de natureza, de cosmos. Não importa. | ||
O certo é que, ao longo da vida, a gente vai se decepando aos poucos para caber na caixinha do mundo adulto. Até que não resta mais nada daquele mistério. Por sorte, a gente consegue acessar essa lembrança divina, seja através da meditação, das experiências místicas, ou psicodélicas, ou seja lá o que for. | ||
Por mais que a gente tente se esconder por trás do lençol do ego, do medo e da ignorância nada apaga o fato de que a existência é um grande mistério esperando pela nossa revolução, que deve ser dançada. Porque como diz a anarquista Emma Goldman, "se não posso dançar, essa não é minha revolução". | ||
Escrever ficção é um desafio gigante, por isso, vou ficar muito, mas MUITO feliz de saber se você curtiu essa pequena mudança que eu fiz na edição de hoje e se essa flecha atingiu você também. É só responder esse e-mail, ou me achar lá no Twitter ou Insta. | ||
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie, | ||
Com amor, | ||
Nathan | ||
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