Sempre que eu faço um texto aqui, geralmente, uso exemplos da minha vida como ponte para assuntos maiores, que possam interessar outras pessoas para além da minha mãe e do meu marido. Mas hoje eu queria falar de mim mesmo.
Sempre que eu faço um texto aqui, geralmente, uso exemplos da minha vida como ponte para assuntos maiores, que possam interessar outras pessoas para além da minha mãe e do meu marido. Mas hoje eu queria falar de mim mesmo. | ||
Peço licença para contar como foi minha experiência no último rito de ayahuasca que participei, e compartilhar algumas notas do meu diário pessoal de psiconauta. | ||
Eu estava há meses esperando por esse último rito, porque seria a primeira vez que eu estaria com a consciência expandida ouvindo o som da Shamani, banda de amigos rezadores que têm um trabalho de pesquisa cabuloso em cima de ícaros da etnia Shipibo Conibo. | ||
Tecnicamente, eu deveria estar feliz. Mas depois de uma semana desgastante de trabalho, eu não tava. | ||
E era com esse ânimo que eu fazia parte da equipe de cuidadores da casa. Ser cuidador exige uma certa atenção, já que a equipe também toma o chá e, além de cuidar de si mesmo, a gente precisa cuidar das outras pessoas. Mas não demorou muito para perceber que tinha alguma coisa estranha comigo, que não deixava eu me concentrar. | ||
No meio da apresentação da Shamani, senti uma presença incômoda. Ela era como um buraco negro. Não tive medo, mas me senti sendo sugado pra dentro daquele vórtice de tristeza sem fim. Toda vez que eu tentava mudar meu foco de atenção, dançando ou tocando algum instrumento, eu era tragado novamente para aquele lugar. E eu sabia o que era aquilo. | ||
Era minha sombra, aquela sujeirinha da minha personalidade que eu escondo embaixo do tapete quando as visitas chegam pra ninguém saber que eu tenho. Ela tava representada como uma figura humana obscura e sem rosto. | ||
Eu poderia ficar com raiva — e, por um breve momento, eu até fiquei. Afinal, eu queria estar bem disposto, não discutindo com um dementador de calça jeans. Mas a força do chá não funciona assim. Se a pessoa precisa estar aberta para receber os benefícios terapêuticos do DMT, isso também inclui a parte difícil do processo. | ||
Como disse, não senti medo. Me mantive firme o suficiente para entender que não adianta brigar com as coisas que a gente julga serem desagradáveis. Elas precisam ser absorvidas e entendidas. Não adianta fingir que não tô vendo um problema do tamanho de um dinossauro na minha frente se ele pode me comer a qualquer hora. | ||
Aí fiz o que pensei ser o certo: convidei aquela figura sem rosto para entrar e tive uma conversa civilizada com ela. | ||
Com a sombra ali na minha frente, comecei a me sentir mais triste. Mas não entendi o porquê, uma vez que não tem nada de errado acontecendo na minha vida. Seria esse um sinal de melancolia? Onde esse tipo de pensamento poderia me levar? Se eu entrar dentro de um buraco de tristeza, será que eu consigo sair depois? | ||
"CALMA!", me disse a sombra. "Você não tá triste." | ||
Isso caiu como uma bigorna na minha cabeça — ao mesmo tempo fiquei curioso pra saber o que aquele sentimento poderia ser além de tristeza. | ||
"Você só tá cansado", ela disse. | ||
Apesar de estar me envolvendo com projetos que realmente fazem sentido para mim, nas últimas semanas, eu não tava respeitando meus períodos de descanso, tava relapso com as minhas práticas pessoais, me deixando levar por ansiedades que nem eram minhas, tendo desavenças desgastantes com meu amor e enchendo minha cabeça de tantas tarefas que meu corpo parecia estar ruindo sem eu nem perceber. | ||
Mesmo me sentindo triste e prestes a tombar na lama, eu tentei me manter firme até o fim da apresentação da banda. Mas quando eles acabaram, percebi que não iria conseguir mais ajudar a equipe de cuidadores. | ||
Pedi um rapé para a Joy e ela percebeu que eu não tava bem. Depois de me passar o sopro, ela pegou na minha mão e disse: "Descansa", como se tivesse lendo minha mente. | ||
E eu descansei. | ||
Aos poucos, fui tomando consciência de como eu ando circunspecto ultimamente. Cada vez mais, tenho tido vontade de falar menos, de ouvir mais o silêncio e de me abster de julgamentos. Quanto mais eu falo, mais pareço estar me transformando em um clichê hippie. Minhas ações soam forçadas a mim mesmo e eu não acho que as pessoas tenham interesse em saber o que eu tenho a dizer. | ||
Tem o lance de buscar sabedoria no silêncio, o que é ótimo, mas também tem um pouco (ou muito) de insegurança aí. Uma insegurança completamente descabida. | ||
Assim, sem perceber, parece que tô me tornando uma pessoa muito séria. E essa seriedade toda me levou a me lembrar do sapo que tenho em meu totem. | ||
No xamanismo, existe o conceito de "animal de poder", que são arquétipos que ajudam a entender padrões de comportamento. Segundo essa ideia, cada pessoa tem um totem formado por quatro animais. Cada um deles, corresponde a um aspecto da personalidade: a essência, a sombra, o mental e o espiritual. | ||
Através de uma jornada xamânica, descobri que o sapo é o meu animal de sombra. E isso me deixou bastante escandalizado, na época, porque tenho verdadeira ojeriza a sapos, desde quando brincava no condomínio onde passei parte da infância e era surpreendido por esses bichos gosmentos. | ||
Talvez, temesse uma retaliação deles, porque uma das brincadeiras entre as crianças era jogar sal nos sapos e observar com curiosidade alquímica o processo de osmose. Foi assim que eu entendi o que era "osmose". Mas, obviamente, eu era um capeta em forma de guri e só fazia isso porque não tinha a mínima noção da vida. | ||
Enfim, nunca entendi porque eu tinha um sapo como animal de sombra. A seriedade, o ar blasé e a soberba que esse bicho me transmite sempre me pareceram muito distantes de mim. Eu não sou assim. | ||
Mas, ali descansando, eu dei de cara com ele. Entendi que, se ele é um arquétipo da minha sombra, o lado da minha personalidade que eu procuro esconder, é porque a seriedade, o ar blasé e a soberba que ele transmite fazem tanto parte da minha estrutura quanto a alegria, a humildade e a empatia que eu julgo ter — além da modéstia, claro. | ||
É como se, pra ser princesa, eu não precisasse apenas beijar um sapo, mas me integrar a ele. Ser ele. | ||
Só de voltar minha atenção a essa ideia, é como se eu tivesse jogado um pouco de luz num canto escuro da minha mente. Entendi que essas características que eu julgo serem tão abjetas podem ser úteis em alguns momentos. Se eu estou em equilíbrio, com plena consciência das minhas virtudes e defeitos, eu posso usar isso tudo ao meu favor. | ||
A seriedade, o ar blasé e a soberba podem ser ferramentas úteis quando eu preciso ser mais firme em alguma situação, tipo quando eu preciso me impor. | ||
E me impor, às vezes, é uma dificuldade que eu tenho, por achar que eu sempre tenho que ser agradável com todas as pessoas do mundo, mesmo que isso implique aceitar cargas emocionais maiores do que consigo aguentar. Saber dizer "não" é uma benção para a saúde mental. | ||
No fundo, é o que o Morrissey sempre disse: "Por que eu devo dedicar um tempo valioso a pessoas que nem querem saber se eu tô vivo ou morto?". | ||
Acho que no caso dele tem um tom de melancolia juvenil, mas não deixa de ser uma boa reflexão sobre a necessidade de aprovação. | ||
Encontrar o limite do meu silêncio e dominar os meus defeitos é uma tarefa que eu não consigo fazer estando cansado, com a cabeça inundada por preocupações. Eu preciso entender quando meu corpo pede pra parar um pouco. Se não, eu corro o risco de confundir esse cansaço com tristeza, e mergulhar nela. | ||
Depois de tomar essa consciência, fiz as pazes com meu sapo. Acolher essa parte da minha sombra foi tão embaraçoso quanto pegar elevador com o chefe. Afinal, era uma parte de mim que eu não conhecia. Ainda assim, sem brigar, nem discutir, eu agradeci à figura sem rosto e ela foi embora. | ||
Mas eu sei que ela sempre vai estar perto quando eu precisar, não como uma ameaça, mas como uma ferramenta que agora faz parte do meu arsenal. | ||
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie. | ||
Com amor, | ||
Nathan | ||
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