Esses dias fui fisgado pela descrição de uma série da Amazon. Ela chama Undone. Tinha ali qualquer coisa sobre "viagem no tempo" e "xamanismo" e eu já fiquei todo serelepe.
"Me Ilumino de imensidão" | ||
Esses dias fui fisgado pela descrição de uma série da Amazon. Ela chama Undone. Tinha ali qualquer coisa sobre "viagem no tempo" e "xamanismo" e eu já fiquei todo serelepe. | ||
Isso porque me parece cada vez mais clara a ligação entre esses conceitos filosóficos dos povos nativos com os da ciência ocidental. E me deixa meio puto perceber o quanto a gente perde por não agregar esses conhecimentos. | ||
Mas o que chama atenção na série é a ligação que eles fazem entre o xamã e o esquizofrênico. | ||
Participo de um grupo de estudos sobre ayahuasca com o pessoal da Unicamp, e, numa das conversas, o Luis Fernando Tófoli (psiquiatra que é o coordenador lá e um dos maiores pesquisadores sobre psicodélicos no Brasil) comentou sobre essa ideia de que, enquanto pessoas com esquizofrenia são tratadas como xamãs nas culturas indígenas, na nossa cultura, elas são tratadas como loucas. | ||
O interessante é que a ideia não é desqualificar o trabalho do xamã, mas, sim, questionar o que a gente entende por loucura e "normalidade" na nossa sociedade. | ||
Essa era uma tese que até foi pensada pelo Levi-Strauss, na década de 1940, mas, segundo o Tófoli, já foi superada, porque conseguiram encontrar pessoas esquizofrênicas dentro de etnias indígenas que não eram tratadas como xamãs. | ||
Ainda assim, não elimina os questionamentos sobre o que a gente entende por loucura na nossa sociedade. | ||
Tenho um amigo lindo, Ramon Mello, que é poeta e cuida do legado do escritor Rodrigo de Souza Leão. O Rodrigo era esquizofrênico e morreu numa clínica psiquiátrica. Na reedição do livro Todos os Cachorros São Azuis, o Ramon colocou um texto que ele fez na época da morte do escritor. | ||
Acho legal esse texto porque o Ramon faz uma confissão quando foi convidado pra ir à casa do Rodrigo pela primeira vez: "Fiquei receoso, talvez por medo de que o encontro com um esquizofrênico me revelasse que, afinal, não éramos assim tão diferentes". | ||
Esse medo do que a gente entende como loucura foi discutido pelo Foucault — inclusive, ele tem um livro chamado História da Loucura, né. Como ele fala, até o início da idade moderna, os loucos eram vistos apenas como um bug do sistema. Mas, com a chegada do pensamento cartesiano e a valorização da ciência e da razão, eles passaram a ser vistos como ameaça. | ||
Logo, o louco deixa de ser um problema da sociedade e passa a ser um problema científico. A psiquiatria dá à loucura um status de doença e, assim, a gente trancafia os "doentes" em hospícios pra que eles possam morrer sem arranhar a nossa racionalidade. | ||
Esse é um problema gigante, que já foi muito discutido por gente brilhante como a Nise da Silveira. | ||
Entre tantas referências, uma vez, o Ramon me indicou um livro que eu só posso descrever como fascinante. Chama Mare Nostrum, e foi escrito pelo diretor de teatro Fauzi Arap, o guru psicodélico da Maria Betânia. No livro, ele fala das experiências controladas que ele teve com LSD e do interesse que acabou desenvolvendo pela psiquiatria. | ||
O Fauzi chegou a trabalhar com a Nise e, numa parte do livro, ele comenta sobre um dos pacientes que ele ajudava a atender. Apesar de ser muito inteligente, o cara parecia totalmente fora da realidade e, quando falava, era em latim. Ele não parecia estar na Terra. | ||
Um dia, enquanto o Fauzi fazia algumas atividades com os pacientes no pátio da clínica, um helicóptero começou a sobrevoar o lugar e o cara do latim começou a rir sem parar, perturbando a atividade e os outros companheiros. O Fauzi perguntou do que ele ria, mas, como de costume, o cara não respondeu. | ||
Depois de um tempo, pra surpresa de todo mundo, o cara disse: "É uma piada que Ogum me contou lá fora... De um homem que pegou um helicóptero, e foi embora, partiu... E aí encontrou uma pedra preciosa e nunca mais quis voltar". | ||
Para o Fauzi, aquilo soou como uma piada poética, redonda e autobiográfica sobre o próprio cara. E ele logo associou aquela história da pedra à ideia dos alquimistas em busca da pedra filosofal. | ||
"Jung defendia a ideia de que todo o trabalho desenvolvido por eles [os alquimistas] não passava de uma busca interior à procura da totalidade, e que a pedra filosofal não passava de um símbolo da conquista dessa totalidade. (...) E a inclusão de Ogum, uma entidade ligada aos cultos afro, na mesma história, acrescentava um elemento contemporâneo e original, mostrando a superposição de dois tempos distintos — um, o do alquimista que se referiu ao Mare Nostrum, e outro, o do carioca vivendo na década de 70 no Rio de Janeiro." | ||
Para o Fauzi, o que parecia ser uma confusão mental era, na verdade, "um sinal de que todo símbolo resulta atemporal em sua expressão e por isso passível de ser justaposto a outro distante, no tempo e no espaço". | ||
O que eu entendi é que se a gente tiver as ferramentas pra compreender alguém que parece insano, essa insanidade deixa de ser tão absurda assim. E, se essas ferramentas são subjetivas, tipo, se elas variam do repertório e da vivência de cada um, então como a gente pode definir a loucura? Algumas coisas que soam como loucura para a ministra Damares Alves com certeza não soam da mesma forma pra mim. | ||
Eu sinto isso quando faço coisas que parecem sem sentido pra gente que tá ao meu redor — obviamente em uma escala diferente da esquizofrenia. Mas, tipo, sempre que eu preciso dar um salto de fé pra mergulhar em alguma coisa que eu sinto que eu preciso fazer, acham que eu pirei, que nem quando eu larguei um emprego CLT no meio de uma crise pra viver como frila. | ||
Mas acho que o pior é quando essas críticas partem da gente mesmo. Tipo, eu demorei 22 anos pra aceitar o fato de que eu poderia beijar outro homem, mais 2 anos até contar isso pra alguém. Isso só demorou tanto pra acontecer porque, primeiro, eu enfrentei um crítico implacável, que era eu mesmo. | ||
Numa sociedade obcecada por entender, em vez de sentir, QUALQUER coisa que escape à norma é considerada loucura. Mas talvez a gente tenha muita coisa a aprender com as piadas de Ogum. | ||
A newsletter é minha área de teste né. Então, eu me sinto confortável pra ir mudando algumas coisas aqui, por isso decidi fazer essa edição mais minimalista. Vamos ver... | ||
Meu abraço intergaláctico pra você que leu esse amontoado de palavras e que viu algum sentido aí. | ||
Como sempre, se quiser me deixar saber o que está se passando nessa cabecinha, é só responder o email ou me achar lá no Insta ou no Twitter. | ||
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie. | ||
Com amor, | ||
Nathan | ||
Você chegou aqui por um link? Digita seu e-mail aqui pra receber as próximas edições na sua caixa. E se quiser ler as edições anteriores, é só clicar aqui. |