PunkYoga #34: O pós-apocalipse de Jup do Bairro
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PunkYoga #34: O pós-apocalipse de Jup do Bairro

Tem uma cena do filme Donnie Darko na qual a professora Drew Barrymore discute com os alunos um conto do escritor Graham Greene, chamado Os destruidores. 

Nathan Fernandes
10 min
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"Não há agonia maior do que a história não contada dentro de você"

Tem uma cena do filme Donnie Darko na qual a professora Drew Barrymore discute com os alunos um conto do escritor Graham Greene, chamado Os destruidores. 

Na história, só pra causar, uma gangue de moleques decide destruir a casa de um senhor que eles chamam de Velho Miserável. Eles invadem o lugar e acabam encontrando dinheiro. Questionado sobre se vai ficar com a grana, o líder da gangue responde que eles não são ladrões. O dinheiro é destruído junto com a casa. 

No filme, Donnie Darko explica para a classe que a destruição ali é uma forma de criação: "Eles só querem ver o que acontece quando destroem o mundo. Eles querem mudar as coisas". 

Assim como a gangue do conto, a multiartista Jup do Bairro também quer mudar as coisas. Seja através da sua parceria musical com a Linn da Quebrada; seja através do programa Transmissão, que ela apresenta também com a Linn, no Canal Brasil; ou seja através da estréia do seu primeiro EP, Corpo Sem Juízo, lançado no meio da pandemia e com produção da BADSISTA, Jup quer destruir através do rap, do funk, do rock e do trap. Destruir para criar. 

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Sim, ela precisa destruir, porque, para uma travesti preta e gorda do Valo Velho, zona sul de SP, a construção só é possível por cima dos destroços de uma sociedade que a quer musa fitness. Ela destrói modelos mofados de entender o mundo & a lógica branca de dominação. Como para os moleques do conto do Greene, a destruição da Jup é uma forma de criação. É transformação. 

Ela se atreve a criar em meio ao caos, enquanto corpos como o dela são rejeitados todos os dias, assim como o do modelo Demetrio Campos, um homem trans que encontrou no suicídio uma forma de curar sua dor. 

O assassinato de Demetrio me pegou muito. E digo assassinato pois ele foi vítima de um 'CIStema' que nos espanca, esfaqueia e carboniza física e mentalmente todos os dias. Tive momentos com Demetrio de muita alegria e celebração, o que não suaviza a falta de empatia sobre nossos corpos. Uma vez que nossas vidas, na visão de quem nos genocida, é descartável e indigna, ela não merece sua afeição. 

O single All You Need is Love, que Jup canta em parceria com Linn e Rico Dalasan, por exemplo, é uma tentativa de reverter isso. Mesmo afirmando na letra que não sabe o que é amar, ela tenta ressignificar o sentimento, mostrando que corpos como o dela também podem desejar e ser desejados com a luz acesa. 

Muitas vezes colocam expressões marginais — como o funk, falas explícitas sobre sexo e o corpo como matéria de capitalização — no lugar de uma arte menor ou sem importância. Mas existe algo mais político do que falar de tabus como a sexualidade? Expressões do desejo e extensões de nossos prazeres? É pra além de mim, de nós. Em 'All You Need is Love' são 3 pessoas pretas, profetizando afeto, carícias e tesão sobre as nossas matérias.

Se, para algumas pessoas, o corpo trans é uma incógnita, Jup mostra que o futuro pode renascer justamente deste embaraço. 

O corpo trans não é caduco, decrépito. É o mais vivo corpo. O corpo que renasce, transgride, transita e transcende. Acredito que seja o único corpo possível pós-apocalipse justamente por essa corredeira tentativa de adaptação ao seu próprio tempo; passado, presente e o futuro, pra mim. Mas as estigmas criadas em torno do corpo trans ameaçam a nossa existência no presente. Assim como os esteriótipos em torno do corpo negro são uma criação do branco, os esteriótipos em torno das pessoas transgêneras podem ser vistos como uma criação de pessoas cisgêneras. Infelizmente, não tenho o controle do meu destino, por isso sigo tentando burlá-lo.

Ao desafiar a lógica tradicional, a lógica travesti mostra que outras realidades são possíveis. Ela não é, portanto, uma ameaça, como acreditam os reacionários, pois traz uma brisa de liberdade e esperança a uma sociedade completamente sufocada pelo racismo, pela transfobia e pelo culto à imagem. 

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Além disso, a lógica travesti também é contra o tempo. Isso ficou claro pra mim numa aula que assisti da professora Helena Vieira, escritora e ativista transfeminista, na qual ela explica que, por terem seus símbolos apagados da história, corpos travestis precisam inventar um novo passado em seu presente a fim de projetar um futuro possível. Ao desafiarem essa ideia linear de tempo e entender que todos os tempos convivem no agora, uma ancestralidade travesti, portanto, poderia vir do futuro. E não deve eeu não consigo pensar em nada mais esperançoso do que travestis ancestrais futuristas. 

Imagino que seja essa ideia que faz com que a Jup diga que o seu EP passe por um ciclo narrativo de nascimento, vida e morte. Porque, no Universo, esses processos acontecem ao mesmo tempo e O-TEM-PO-TO-DO. Provavelmente, tá acontecendo agora dentro do seu corpo, se você não for um leitor defunto.

Também imagino que seja essa ideia que faz a Jup dizer que seu corpo já morreu inúmeras vezes, mesmo que ele continue vivo. Apaixonada pela professora Helena Vieira, a Jup concorda:

Sim, o corpo trans, o corpo travesti passa por outra lógica cronológica. (...) Quando falo que já morri inúmeras vezes, quero falar sobre os sacrifícios que já tive que fazer de muitos eu’s para me reconhecer. Já tive que sacrificar o filho que meus pais planejaram que eu deveria ser, sacrifiquei o cidadão que a sociedade esperava que eu fosse e venho sacrificando todas as outras características desde ao acordar até me olhar no espelho. Morro e renasço todos os dias e de todas as formas, pessoal ou profissionalmente. O tempo me atravessa em todos os lugares, desde as referências de mulheridades que constroem a artista que venho me tornado, das que já passaram pela minha vida, até admitir que posso construir a minha própria mulheridade, a minha própria performance.

A sua sanidade depende disso:

O tempo e o corpo são muito presentes no meu vocabulário, pois são as palavras-chave para a negociação da minha saúde mental. O momento agora é de muita dor, muita tristeza, muito medo e estou sentindo tudo isso. E isso é bom. Significa que me comovo e me preocupo com o que está acontecendo. Não acho que precisamos nos alienar. (...) Nós precisamos sentir o que está acontecendo, entender que não são números e sim vidas que estão desencarnando. E, claro, muito importante filtrar essas informações para que possamos nos proteger pra não pirar de vez, escolher fontes confiáveis de informação, mas não se isentar. E, assim, levo pra minha vida uma maneira de pertencer ao meu tempo, entendendo as urgências, respeitando as minhas sensibilidades, as minhas potências e principalmente esse tempo, que já é outro.

A construção da forma como Jup se entende como ser humano passa pela construção da forma como ela entende o grande mistério que está para além do ser humano. Jup cria a sua mulheridade, assim como cria também seus deuses. 

Eu digo que sou ateia não praticante, mas também sou inúmeras outras religiões não praticante. Eu tenho um exercício muito particular com crença. Já flertei com espiritismo, fui evangélica enquanto criança, simpatizo muito com a umbanda... Às vezes ouço playlists para me concentrar pra algo e lá tem reiki, ponto de macumba, gospel... Assim vou criando minhas fés. Uma vez a MC Tha disse uma coisa que sempre bate muito na minha cabeça: “A religião existe para acreditarmos que podemos ser mais felizes”. Com isso crio maneiras de me encontrar, me desencontrar. Ela faz a religião dela.

É um decreto importante esse da MC Tha, porque faz com que a gente rejeite qualquer tipo de organização que nos oprima, nos entristeça, nos sabote, nos engane, nos sugue e nos impressa de acreditar no cristalzinho raro que nós somos.

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Quando a própria sociedade faz isso, então é preciso rejeitá-la também. E o seu nível de rejeição, provavelmente, vai ser inversamente proporcional ao quanto você é aceito por essa sociedade. Os corpos transgêneros têm uma urgência maior, uma urgência que os cisgênero talvez nunca entendam. 

Uma vez me apresentaram ao capítulo 'A máscara', do livro 'Memórias da Plantação', da Grada Kilomba, e pude perceber que possuímos uma máscara em nossos rostos, como interpretações. A cisgeneridade é imposta a partir de uma genitália, logo com papéis de gênero que devem atuar a partir de sua geografia, cultura e sociedade. (...) Sexualidade e gênero são campos abertos das nossas imaginações que preenchemos ao decorrer da vida. Meu corpo é possibilidade de vida, de ser e estar. Vivo me perguntando quem sou eu, onde quero chegar, o que posso ser. Não tenho respostas, mas faço das minhas perguntas um lugar que eu caiba.

Essa ideia da máscara da Grada Kilomba dissolve meu espaço-tempo e me leva de novo a Donnie Darko, numa cena em que, durante uma ilusão, um homem vestido com uma fantasia assustadora de coelho aparece do lado do Donnie e ele pergunta: "Por que você está vestindo essa fantasia ridícula de coelho?". O coelho maldito rebate: "Por que você está vestindo essa fantasia ridícula de homem?".

De certa forma, é a mesma coisa que berram todas as músicas do EP da Jup.  


O que eu tô lendo/ vendo/ ouvindo:


Ouvi a frase da Maya Angelou, que abre esta newsletter, na série sul-africana Sangue e Água, da Netflix. 

Acho perfeita, porque ela pode ter um significado diferente pra cada um. Pra minha amiga Anna, tem a ver com esse clip independente, cósmico & maravilhoso lançado nesta sexta, cuja produção eu tive orgulho de participar. 

Pra mim, tem tudo a ver com o que venho fazendo na newsletter. Contar as histórias que eu conto aqui, com certeza, é uma forma de evitar que eu exploda em agonia. 

Em julho, vai fazer um ano que eu tô contanto essas histórias, e a entrevista com a Jup dessa edição marca uma maturidade que eu jamais achei que fosse atingir em um projeto tão pessoal. Veja bem, não tem cobrança de chefe, não tem dinheiro, só tem vontade. E eu fico muito feliz por mobilizar a energia de pessoas que eu admiro, como já venho fazendo nas últimas edições. 

Ainda mora muita falta de confiança em mim, o que é uma bosta. Mas, quando tenho respostas como essas da Jup (que aconteceram graças a Iza!) e vejo o trabalho impecável de amigas como a Anna, o espírito ganha força. 

Salve as forças de todo mundo que me acompanha aqui! Se quiser trocar uma ideia, é só responder esse e-mail, ou me achar lá no instaou no twitter

Vai pela sombra e fica na paz de Bowie.

Com amor y anarquia,

Nathan

Se você chegou aqui através de um link, deve tá pensando: "Como eu assino essa newsletter maneira?". Ora, é só deixar seu e-mail aqui. E dá pra ler as edições anteriores aqui também. Se não curtiu e tá aqui lendo esta última linha, admiro sua capacidade de autoflagelação.