PunkYoga #35: Exu na roda punk
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PunkYoga #35: Exu na roda punk

Eu percebi que o LSD tava fazendo efeito bem no meio do show do Dance of Days. 

Nathan Fernandes
12 min
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"Você não pode comprar a revolução. Você não pode fazer a revolução. Você pode apenas ser a revolução. Ou está no seu espírito ou não está em lugar nenhum"

Eu percebi que o LSD tava fazendo efeito bem no meio do show do Dance of Days. 

O clima era ideal porque, além de estar com a Pri, uma amigona, aquela era a primeira vez que eu via a banda tocar em quase um ano. Eles tinham anunciado uma pausa para compor o novo disco, então eu sabia que aquela também seria a última vez que eu os veria ao vivo por um bom tempo, antes mesmo do anúncio do apocalipse corona. 

Acho que ir ao show do Dance, sempre com a Pri, é um ritual importante. Toda vez que eu ouço o Nenê Altro cantando coisas como "onde Marte ama Marte e Vênus pode passear de mãos dadas com Vênus sem se preocupar" é como se abrisse um rasgo do tecido no espaço-tempo, eu encontrasse meu eu de 15 anos e dissesse: "CALMA! Eu sei que você tá achando que é viado, e você é viado mesmo. Mas ser viado é legal pra caralho, e quem tá errado não é você". 

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O Dance também ajudou a aumentar meu repertório de nomes estranhos de filósofos e anarquistas, como Kierkegaard e Emma Goldman, e entupiu minha mente com conceitos que eu só entenderia anos depois de ouvir. Tipo o "eterno retorno" do Nietzsche, que o Nenê canta em Buck Rogers e o Eterno Retorno

Só fui entender melhor essa ideia depois que vi uma cena do filme Quando Nietzsche Chorou, em que o filósofo oferece um pensamento como presente ao Dr. Breuer. Ele pede para o doutor imaginar um demônio que aparece para dizer que ele terá que viver sua vida novamente repetindo todos os detalhes. Por toda a eternidade. Se isso acontecesse, você seria feliz? Ele pergunta. Se a reposta for não, talvez seja melhor começar a fazer alguns ajustes. 

E aí o Nenê simplesmente joga os conceitos ali e você que se foda pra entender. Conceitos aos rebeldes que falharam. A questão é que soa tão legal que você quer ir atrás e aprender. E aí, no meio das buscas, você descobre que uma banda de hard core pode fazer mais pelo ensino do Brasil do que o Ministério da Educação. 

Talvez, se eu não tivesse ouvido Os Funerais do Coelho Branco II (Em Linha Reta), por exemplo, eu jamais iria conhecer os versos do Poema em Linha Reta, do Fernando Pessoa, que começa com essa lâmina no olho: "Nunca conheci quem tivesse levado porrada/ Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo". É o que me acolhe quando eu caio nas ideia de me comparar com algum marombado fitness do instagram.

(Aliás, pra quem gosta de drama, aqui tem o Antonio Abujanra narrando esse poema.

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Enfim, tô falando tudo isso só pra explicar que eu me sinto suficientemente bem e seguro pra tomar LSD no show de uma banda que me agrega tanto, a qual, como falei, tem uma pegada ritualística pra mim. Não julgo o uso recreativo, muito pelo contrário, mas gosto de ter um propósito. É um cuidado mínimo que eu tenho, já que estudo psicodélicos.

A questão é que eu acho que subestimei o efeito que cem pessoas bêbadas confinadas dentro de um inferninho poderiam ter sobre a minha mente. Sob efeito do ácido, era como se eu quase pudesse ver um monte de energia se trombando & se misturando & se fundindo de forma caótica. Eu tava dentro de um liquidificador no nível 3.

Comecei a hiperventilar. Tava sentindo muito calor, e sentei um pouco pra me abanar. Até aí tudo bem. Eu sei que, para lidar com isso, eu preciso basicamente respirar com calma e mudar o foco de atenção.

Mas aí o calor começou a ficar insuportável, e eu percebi que ninguém mais tava sentindo isso. Só eu. 

— Ney, você tá passando bem? — A Pri me perguntou. 

— Sim, sim, tá tranquilo. — Eu afirmei, mas querendo dizer: "Tá tranquilo?"

Será que eu realmente sei lidar com tanto estímulo? Será que eu vou conseguir respirar esse ar de cerveja misturado com suor? Será que eu realmente tenho tanto controle da minha mente assim? Como eu posso realmente saber disso? De onde eu tiro essas ideia?

Sem dúvidas era um ótimo LSD. Mas eu tava afundando em mim mesmo. 

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E aí, DO NADA, começo a escutar uns versos em iorubá. Em pouquíssimo tempo ficou muito claro que era um ponto pra Exu. UM PONTO PRA EXU NO MEIO DE UM SHOW DE HARD CORE. Senti como se tivessem chegado de helicóptero pra me resgatar. E eu submergi nos meus pensamentos. 

Só aí que me toquei de que realmente o Nenê tinha lançado uma música que tinha passado completamente batida por mim. Era a primeira vez que eu escutava ela. No meio, o som das guitarras se misturam com os atabaques e surge a cantiga: "Èsú wa jú wo mòn mòn ki wo Odára...". Não à toa a música se chama Encruzilhada

Faz parte dos novos trabalhos que o Nenê começou a fazer depois que se iniciou no candomblé e se fardou no Daime, movimentos que eu acompanho com interesse, uma vez que eu já tô há quase três anos nos estudos universalistas de ayahuasca. 

De repente, eu tava em pé, querendo abraçar o mundo. O calor passou e eu comecei a me sentir tão bem que fui pro pogo na frete do palco pra cantar Correção — afinal, que outra música eu poderia rodar a camisa no ar e cantar versos como: "Em dialética materialista, erguemos estátuas faraônicas que representam arquétipos da satisfação em versões que não rodam em Linux"?

Saí da casa de show como eu saio de todo show do Dance: ensopado de suor e soltando faísca pela ponta dos dedos, tipo o Raiden do Mortal Kombat. Desta vez, eu tava um pouquinho mais eufórico. 

Depois disso, a Pri me ajudou a chegar em casa e eu agradeci demais, porque, provavelmente, eu demoraria cinco dias pra fazer o trajeto (a importância dos amigos de confiança, não é mesmo?). O Felipe, meu amor, já tava dormindo e a primeira coisa que eu fiz ao chegar em casa foi escutarEncruzilhadade novo. Só então ouvi com clareza a letra e me deparei com:

Me dá pés pra caminhar, me dá pernas pra correr. Que o jardim que hei de cuidar não deixarei perecer. Me dá fé para cruzar a jornada do meu ser. A que eu tenha Força Sempre e sempre siga pra vencer.

Senti um tornado se formando dentro de mim. E por uns minutos eu fiquei contemplando esse vendaval. 

Mas a ventania interior foi interrompida por uma gritaria no prédio da frente. Fui pra sacada e fiquei olhando aquilo meio sem entender se era uma briga. As pessoas estava se abraçando e pulando, na verdade. Então, lembrei que era noite de Oscar e que aquela felicidade toda só podia querer dizer uma coisa: Democracia em Vertigem, o doc brasileiro da Netflix, tinha ganhado o prêmio.

Caralho, pensei, a exposição da maior tramoia política do Brasil tinha sido coroada com uma estatueta de ouro. Será que agora ficaria evidente para o mundo todo que a gente tava sendo governado por porcos que andam em duas patas? 

Com a mente ainda expandida, me lembrei da consciência política que adquiri escutando os berros do Nenê na adolescência. Não tenho dúvidas de que eles foram meus antídotos contra a busca falida pelo nirvana patriarcal, o que me ajudou a me entender como gay, como pessoa e como parte de uma sociedade absolutamente desigual.

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Resolvi voltar para a Encruzilhada e, imbuído por uma espetacular raiva antissistema, lembrei que tenho um livro do Alexandre Cumino chamado Exu Não é Diabo. Resolvi ver algumas marcações que tinha feito nele e caí nessa:

Eu sou orixá Exu. (...) Sou eterno, estive e estou presente em todas as encruzilhadas da vida, do espaço e do tempo, assistindo à morte de valores antigos em detrimento de novos valores considerados humanamente melhores ou superiores. Tenho assistido ao homem, geração após geração, substituir velhas ilusões por novas ilusões. Tenho visto, vejo e continuarei a ver o homem colocar a mentira em seu altar, afirmar como verdade absoluta suas pequenas verdades. Civilização após civilização, eu vejo um povo subjugando o outro. É sempre a lei do mais forte e essa tem sido a regra. 

Olhei pro infinito e pensei: "Eita porra". E retomei:

Novos mundos, realidades e culturas se criam e se reciclam em cima de morte, barbárie e destruição. O culto, o nobre, o civilizado sempre matando cruelmente todos aqueles que considera bárbaros e inferiores. Nada muda debaixo do sol ou da lua; impermanência é uma constante, mudança é constante, nenhuma mudança humana traz mudança real à condição humana, apenas se julgam melhores por ter mais brinquedos ou por explorar o que outros ainda não exploraram. Ainda assim este é o mundo de que vocês necessitam, é neste mundo que está a oportunidade de ir além, além de tudo isso.

E ele encerrava esse capítulo sobre o medo, dizendo:

Esse mundo não vai mudar, o que deve mudar é você, você é que deve compreender que você é o seu mundo. Eu sou orixá Exu e tudo isso eu tenho visto

Essa mensagem embrulhou minha mente até a manhã seguinte, quando o efeito do ácido se dissolveu e eu descobri que Democracia em Vertigem não tinha ganhado o Oscar coisa nenhuma. As pessoas tavam comemorando o prêmio de Parasita(o que não deixa de ser legal). 

Mas o que eu senti quando li a passagem era uma mistura inédita de impotência conformada com disposição esperançosa. Entender que somos o nosso próprio mundo pressupõe que a gente tenha que aprender a harmonizar esse mundo individual com o coletivo. Somos os coreógrafos de uma dança cósmica entre o micro e o macro. E é dessa sarrada intergaláctica que nasce a nossa realidade. 

Logo, ao me transformar por dentro há mais de quinze anos, percebi que o Dance ajudou a moldar a minha forma de perceber o mundo, a minha realidade. Foi a banda que me guardou mensagens preciosas e me abriu caminhos que eu nunca pensei que existissem.

Todo esse tempo, desde antes de Encruzilhada, sem eu perceber, o Dance of Days era o meu próprio Exu, me orientando e me ensinando que, caso apareça um demônio perguntando se eu ficaria feliz em ter que reviver essa mesma vida por toda a eternidade, eu devo responder, com volume no talo e coração na garganta: "Pecado é não viver a vida".

 Laroyê! 


O que eu tô ouvindo:

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Além de chamar atenção para as causas LGBT+ e indígena, a Katú Mirimlançou um EP chamado Nós, que tem versos tipo "maraca, cocares, tambores, turbantes e a terra tremerá como nunca tremeu antes" e "racismo velado é bandeirante sendo exaltado". Entrevistei ela pra uma matéria que vai sair logo, na qual ela lamentou pelo preconceito que ainda persiste com a arte indígena e lembrou que recebeu algumas críticas pelo verso: "Jesus é um índio, negro, viado, trans e sapatão". Daí fiquei pensando que se a pessoa acha que ser índio, negro, viado, trans ou sapatão é uma ofensa, então ela merece chafurdar na lama do próprio preconceito mesmo.  


Top 5 passos para viajar no tempo:

  1. Entender que fomos enganados a pensar que só existe uma única forma de conceber o tempo. 
  2. Entender que o presente é o único tempo sobre o qual temos controle de fato. 
  3. Pensar fora da lógica eurocêntrica que entende o tempo como uma linha reta que segue do passado para o futuro. E estudar outras culturas. 
  4. Seguir o Gustavo Nogueira e a Morena Mariah
  5. Meditar.

O que eu tô lendo/ ouvindo/ vendo:


Preciso ser bem sincero aqui.

Tô entre anunciar uma pausa da newsletter ou produzir cada vez mais coisas pra ela. Acho que isso tem a ver com essa bipolaridade causada pela pandemia. Numa hora eu quero cantar com as maritacas na varanda, na outra eu quero afundar dentro do meu travesseiro. 

Seja como for, tô testando coisa nova aqui, né. Viu que eu coloquei uma lista lá em cima, inspirado pelo Alta Fidelidade? Vamo ver no que dá, afinal, mês que vem a news faz um ano — e eu ainda fico em choque toda vez que lembro disso. 

O mais provável é que eu encontre uma forma mais confortável de continuar produzindo pra cá. Não sei, vou lá fora cantar com as maritacas...

Se quiser trocar uma ideia é só responder esse e-mail ou me achar lá no insta ou no twitter.

Vai pela sombra e fica na paz de Bowie.

Com amor y anarquia,

Nathan

Se você chegou aqui através de um link, deve tá pensando: "Como eu assino essa newsletter maneira?". Ora, é só deixar seu e-mail aqui. E dá pra ler as edições anteriores aqui também. Se não curtiu e tá aqui lendo esta última linha, admiro sua capacidade de autoflagelação.