PunkYoga #41: Matrix Munduruku
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PunkYoga #41: Matrix Munduruku

Eu sou muito fã de Matrix. Tanto que, na faculdade, fiz um projeto de iniciação científica pra pesquisar como as revistas Super e Galileu retratavam o filme — isso muito tempo antes de saber que eu trabalharia como editor da Galileu.

Nathan Fernandes
11 min
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Eu sou muito fã de Matrix. Tanto que, na faculdade, fiz um projeto de iniciação científica pra pesquisar como as revistas Super e Galileu retratavam o filme — isso muito tempo antes de saber que eu trabalharia como editor da Galileu.

Mas, apesar de ser completamente maluco pelo primeiro filme, dei pouquíssima atenção aos outros dois. Recentemente, então, resolvi ajustar essa falha e revi a trilogia. Fiquei surpreso ao perceber que o segundo, Matrix Reloaded, é muito mais legal do que o primeiro.

Além dos efeitos serem muito mais foda, também fui fisgado pelo roteiro. Conceito, aclamação e coerência. É nesse filme que tem uma cena em que o Merovíngio diz: "Só existe uma constante. Uma regra universal. É a única verdade real: causalidade. Ação e reação. Causa e efeito".

Isso É EXATAMENTE o que eu falo nesse vídeo que fiz pro Instagram, dizendo que a ideia de pecado, ou de certo e errado, é cristã. Portanto, a culpa não é vista da mesma forma em culturas não ocidentais. Na real, a culpa sequer existe.

Quando eliminamos o peso do pecado e da culpa, só existe ação e reação, que nem o Merovíngio diz. Sem moralismo. Ou seja, se não existe bom e mau, certo e errado, somos livres para fazer o que quisermos. 

Mas falta de moralismo não é bagunça. Na ausência de uma "bússola moral", nos resta arcar com a responsabilidade por cada ato cometido.

Eu posso atropelar filhotes de golden na rua? Posso. É de bom tom? Não, não é de bom tom. 

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Indecente, imoral e sem vergonha

E por que, afinal, é importante tentar pensar o mundo fora dessa concepção de moral (de certo e errado)? Porque isso mata.

Se você é uma pessoa LGBTQIA+, aliada ou atenta às notícias, nem precisa explicar muito... Esses dias, conversando com a Symmy Larrat, transativista e presidente da ABGLT, pra uma entrevista que ainda vai sair, ela acabou passando uma visão sobre isso:

A gente, do campo progressista, não está entendendo que a narrativa moral é o centro do debate atual. Se a gente não vencer a moralidade, a gente não vai vencer as outras coisas. Não vamos conseguir promover direitos, porque o que está arraigado na população é o debate moral. E a pauta moral coloca tudo isso em questão, coloca as questões de gênero, sobretudo. Tem uma questão moralizante, inclusive, em cima da pauta indígena também, que diz que eles são preguiçosos, sujos... 

Lutar contra o moralismo não significa ser indecente, imoral e sem vergonha, simplesmente porque os conceitos de decência, moralidade e sem vergonhice só fazem sentido em uma percepção de mundo binária e da ala aloprada do cristianismo, uma percepção de mundo que separa o certo do errado, o claro do escuro, o bom do mau, e não considera o que tem no meio ou além disso. 

E isso não afeta só as pessoas que "subvertem" o sexo e o gênero, mas qualquer um que queira fazer aquilo que esteja fora dos padrões. Ou seja, todo mundo, porque até se consultar com um doutor é considerado "coisa de viado", se for um exame de toque, por exemplo. 

O nível do absurdo em que cuidar da saúde é uma ameaça à norma hétero. 


Miolos verdes fritos

Enfim... Foi muito bom fazer essa maratona de Matrix, porque também revi uma das minhas cenas preferidas. É uma do primeiro filme em que o Neo vai visitar a Oráculo, uma grande sábia representada por uma senhorinha que faz biscoitos. 

Na cena, do nada, a Oráculo diz para o Neo não se preocupar com o vazo. Ao questionar sobre qual vazo ela fala, ele se vira e derruba um jarro de flores. 

— Como você sabia?, ele quer entender. 

— O que vai fazer seus miolos queimarem mesmo é se questionar: você o teria quebrado se eu não tivesse dito nada?

Essa pergunta me marcou muito e me acompanha desde a primeira vez que vi o filme. Isso porque ela diz muito sobre destino e livre-arbítrio. Será que somos livres ou tudo já estava escrito? Será que existe mesmo livre-arbítrio em uma sociedade soterrada por regras que não foram escolhidas por nós? Será que o nosso destino já foi determinado por alguém? Ou melhor, existe destino?


3 categorias de determinismo

São as mesmas perguntas que rondam essa série nova sobre o Loki, na Disney+. Já no primeiro episódio, o anti herói dos Vingadores é preso por uma associação de burocratas, a TVA, que controla a "linha sagrada do tempo".

Qualquer passo fora dessa linha, deve ser punido por esses agentes que parecem funcionários públicos galácticos.

 Nesse texto do Inverse sobre a série, Dais Johnston explica que os conceitos de "livre-arbítrio" e "determinismo" remontam à Grécia Antiga, e, desde então, os filósofos ocidentais vem debatendo quão controláveis são as nossas vontades e ações. Ela disseca o determinismo em três:

  • Determinismo Casual: "Esta teoria afirma que, como resultado do que aconteceu antes, o que acontece a seguir é inevitável (bem como Thanos)." 
  • Fatalismo: "De acordo com o fatalismo, o que quer que aconteça é o que está fadado a acontecer, então não há sentido em tentar mudá-lo." 
  • Determinismo teológico: "É mais ou menos o que a TVA acredita, que existe um poder superior infalível que discerne o que vai ou não acontecer no futuro."
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O futuro é uma ficção

Voltei a pensar em Matrix por esses tempos, quando escrevi sobre a situação dos Yanomami e dos Munduruku — povos indígenas que estão sendo dizimados por conta da política ambiental daquele cupim que ocupa e corrói o Palácio do Planalto. 

Era uma entrevista pro programa Nosso Mundo da CNN, que eu usei como base pra matéria, o escritor Daniel Munduruku fala sobre como os Munduruku percebem o tempo de forma circular e como isso muda a forma como eles interpretam a realidade:

Diferente do ocidental, que pensa o tempo de uma forma linear (passado, presente e futuro), os povos indígenas costumam pensar o tempo como um passado e um presente. Os velhos, os avós, eles fazem essa conexão entre o que somos hoje e o que fomos ontem, trazendo para nós todas as possibilidades de interagir com o hoje. Essa é a base da nossa pedagogia. Isso nos faz compreender que somente o agora nos compromete com a mudança, com a renovação, a transformação. (...) O futuro é uma ficção.


O canto da sereia e o cringe

Também achei legal quando o escritor falou sobre a ilusão da ideia de mérito: 

Como eu venho de uma tradição de circularidade, venho aprendendo que, cada passo que dou para frente, eu tenho que me voltar pra trás, reverenciar o processo de todos os antepassados que me permitem estar aqui e agora. E isso faz com que eu não caia no canto da sereia, que é justamente o da arrogância ou de achar que eu estou aqui porque mereço. Não é assim. O mérito não é meu, mas de uma tradição, uma cultura que vai me empurrando, me dando oportunidades de olhar o mundo a partir dessa perspectiva. E eu vou absorvendo isso para mostrar que o Brasil deve olhar para si mesmo e fazer esse movimento de retorno às origens. 

De novo, a ideia do tempo em círculo. Ou o círculo como fator fundamental da vida.

Isso me lembrou de toda essa discussão sobre o cringe geracional (leia esse post da maravilhosa Clau Fusco), dos xóvens achando cafona coisas que pessoas de 30 e poucos, como eu, fazem.

Nem quero me estender, mas logicamente esse tipo de zoação só faz sentido em uma cultura que, em vez de ver o tempo como um círculo, o vê como uma linha reta para frente, na qual o mais novo ultrapassa e desbanca o mais velho, só para ser ultrapassado e desbancado mais a frente. 

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Altruísmo à fórceps

Curiosamente, o Daniel Munduruku também falou sobre a ideia de coletividade nesse momento de pandemônio: "Viver coletivamente pode ser muito importante para a gente alimentar nosso espirito e seguir adiante". E no mesmo dia eu tinha escutado um podcast da Folha falando exatamente a mesma coisa, mas em relação a desigualdade na distribuição das vacinas.

A repórter Flávia Mantovani falou:

O que os países ricos estão fazendo é um tiro no pé [acumular doses excedentes de vacina], porque a Covid é uma doença transmissível e quanto mais o vírus circula maior a chance de se criarem variantes mais transmissíveis. E a gente tá num mundo com altíssima circulação de pessoas, então, por mais que você feche suas fronteiras e tente se blindar, existe a entrada irregular de pessoas, então é impossível barrar. Um dos argumentos para convencer os países ricos a doarem as doses excedentes [de vacinas aos países pobres] é que eles deveriam fazer isso não por altruísmo, mas em causa própria também. 

É a natureza tirando o altruísmo à fórceps do bucho do sistema capitalista. Ou seja, nos obrigando a olhar com mais atenção para as filosofias indígenas. Um retorno às nossas origens.  


Os tempos africanos

Essa circularidade também é comum nas filosofias africanas. Na real, quanto mais a gente estuda, mais a gente percebe que a única cultura que não percebe o tempo de forma circular é a ocidental mesmo — com certeza, devem existir outras, mas nenhuma que colonizou, dizimou, estuprou e que continua dominando. 

Enfim, toda essa questão circular e do futuro como ilusão me lembrou do trecho de uma reportagem sobre o tempo da pandemia, que escrevi pra Elástica, em que a fenomenal Aza Njeri, que é pós-doutora em Filosofias Africanas, diz o seguinte: 

Essa ideia de progresso atrelada ao futuro, que é focada no amanhã, na inovação, é uma característica do tempo ocidental. O tempo africano não é o tempo da pressa. (...) E como eu me relaciono com esse tempo, sendo que estou inserida numa sociedade que preza pela correria? Sempre tento pensar que as coisas acontecem no tempo que elas têm que acontecer. Isso me deixa menos ansiosa. 


O Grande Mistério das Coisas

Não sei vocês, mas, ao ler isso, sinto um conforto no coração, porque é quase como se a Aza tivesse oferecendo a resposta que o Neo não conseguiu dar à Oráculo, quando ela perguntou se ele teria quebrado o vaso caso ela não tivesse dito nada.

Livre-arbítrio ou determinismo? A gente é livre para tomar o nosso caminho ou o destino já tá pré-determinado?

Se, como disse o Daniel Munduruku, o presente é o agente da mudança, então essa discussão não faz sentido nenhum. Não faz sentido porque tanto o determinismo quanto o livre-arbítrio pressupõem uma ideia de futuro e passado. E a única coisa que existe é o momento presente. 

Se você tiver caindo em queda-livre com um paraquedas, você provavelmente vai preferir puxar a corda do que ficar refletindo se suas escolhas te levaram até ali ou se isso já estava pré-determinado. O que importa é o presente. 

E se você for parar pra pensar a vida é uma queda livre em direção ao Grande Mistério das Coisas. 

Talvez, quebrar o vaso não estivesse escrito no destino do Neo, tampouco ele teria sido influenciado pelo aviso da Oráculo. Isso não importa. O que importa é limpar os cacos e abrir os caminhos. 


Minha ideia é enviar a newsletter a cada 15 dias, né? Mas todos os meus frilas resolveram se acumular na mesma data e aí ficou difícil. No fim, dei conta de tudo. Termino esta newsletter com a mesma paz de quem vê uma pia limpa com a louça lavada.

Tô meio descabelado? Tô. Mas também tenho a certeza de que, se o tempo é circular, eu preciso me organizar melhor, inclusive mentalmente, se eu quiser que a próxima onda de trabalhos seja mais gentil. 

Entramos no inverno, as noites mais longas do ano. No paganismo, comemora-se Yule, quando o Sol retorna lentamente, trazendo esperança de luz enquanto ainda é escuro

Desejo que você receba toda a fúria e toda a beleza desse Sol que retorna.

Se quiser trocar uma ideia, sobre determinismo, circularidade do tempo ou pornô gay, é só me responder aqui ou me achar lá no instagram

Te vejo daqui 15 dias.

Vai pela sombra e fica na paz de Bowie. 

Com amor y anarquia,

Nathan

Se você chegou aqui através de um link, deve tá pensando: "Como eu assino essa newsletter maneira?". Ora, é só deixar seu e-mail aqui. Se não curtiu e tá aqui lendo esta última linha, admiro sua capacidade de autoflagelação.