PunkYoga #44: Neuropolítica & o amor anárquico
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PunkYoga #44: Neuropolítica & o amor anárquico

Sabe aquela sensação de "fodeu" que a gente sente depois de terminar de assistir a um episódio de Black Mirror? ("Fodeu" aqui traduzido pra "isso é uma ficção científica, mas é tão real que eu consigo ver o Elon Musk colocando em prática daqu...

Nathan Fernandes
12 min
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Sabe aquela sensação de "fodeu" que a gente sente depois de terminar de assistir a um episódio de Black Mirror? ("Fodeu" aqui traduzido pra "isso é uma ficção científica, mas é tão real que eu consigo ver o Elon Musk colocando em prática daqui cinco anos".) Então, eu tive essa sensação lendo uma reportagem da MIT Tech Review esses dias. 

O texto falava de neuropolítica e como os especialistas de hoje podem "descobrir a intenção dos eleitores através de sinais que eles não sabem que estão produzindo". A ideia é conseguir influenciar as pessoas a votar em quem tem mais dinheiro. Só que diferente de apenas roubar seus dados e direcionar fake news pelo Facebook, eles entram no seu cérebro, como uma Taenia solium causando neurocisticercose. 


O amor como sistema

Achei particularmente interessante quando a autora Elizabeth Svoboda cita o psicólogo Daniel Kahnneman, vencedor do prêmio Nobel de Economia, que distingue o pensamento entre o "Sistema 1" e o "Sistema 2". O primeiro opera de forma automática e rápida, com pouco ou nenhum esforço e nenhum senso de controle voluntário. O segundo demora mais tempo pra agir, porque a pessoa precisa pensar mais. 

No geral, o marketing político é focado no Sistema 2, ou seja, no convencimento das pessoas pelas propostas, pelo histórico do candidato, essas coisas... Mas de uns tempos pra cá, eles têm focado no Sistema 1, que opera no modo automático. Tipo, a pessoa lê no WhatsApp que o PT quer distribuir mamadeiras de piroca nas escolas, acha aquilo um absurdo e decide que o certo é votar na mistura do mal com o atraso. Adeus, pensamento crítico. 

Lá pro meio da reportagem tem uma fala interessante de um professor da Universidade de Exeter, Darren Schreiber:

"Somos suscetíveis de várias maneiras e não temos consciência da nossa suscetibilidade. O fato de que as atitudes podem ser manipuladas de maneiras que não conhecemos tem muitas implicações para o discurso político." 

E não é só o tiozão bolsonarista do zap que é suscetível, não. Você e eu também somos — quer dizer, considerando que todo mundo que assina uma newsletter nonsense como essa prefira sofrer uma overdose de novela bíblica da Record a votar no Bonoro, né. 


O amor como mamadeira de piroca

É evidente que essa suscetibilidade pode ser aproveitada pelo marketing político até o osso. Mas, ao ler isso, fiquei pensando também em quanto somos suscetíveis a outros tipos de discursos, a coisas que nos ensinam na vida e a gente reproduz sem questionar. Tipo a monogamia. Cada vez mais, penso na monogamia como uma grande mamadeira de piroca. 

Isso porque, assim como a mamadeira de piroca, a ideia surgiu e muitas pessoas simplesmente aceitaram como se fosse uma verdade incontestável. Se vender como "a única possibilidade", aliás, é típico do pensamento ocidental, que passa como um rolo compressor em cima de qualquer outra forma de pensar e de viver diferente da dele — os povos nativos do Brasil sabem disso desde 1500. A monogamia, talvez, seja um dos melhores exemplos de como isso funciona.  


O amor romântico

Assim como somos bombardeados pelas campanhas de políticos, também somos bombardeados a vida inteira com a ideia de que precisamos encontrar alguém que nos complete, e que supra todas as nossas necessidades, sem poder nos interessar por mais ninguém pelo resto da vida. Isso tá em praticamente todos os filmes da Disney, novelas, séries, livros e músicas do Belo.

Mas se fosse uma campanha política, a campanha da monogamia seria como a dos sujeitos que prometem o que não cumprem. Isso porque a monogamia nos promete a felicidade eterna e o fim daquela busca incessante por amor. Mas todo mundo que assistiu Casamento às Cegas sabe que não é bem assim. E, mesmo que um casal respeite o acordo de não ficar com mais ninguém, ainda assim há o desejo por outras pessoas, o qual, num relacionamento monogâmico, precisa ser trancafiado numa cela para depois, lá na frente, se transformar num monstro que não se contém na jaula. Isso quando não tem a traição, né. 

A questão é que a monogamia é, sim, uma questão política. 


O amor é político

Esses dias o Rafa me indicou um podcast muito bom chamado Imposturas Filosóficas. A discussão do podcast usa como base esse texto do Rafael Lauro. No artigo, ele diz que, ao fugirmos do modelo padrão de relacionamentos, "estamos inventando um modo micropolítico de nos relacionar". E ele usa o termo "anarquia relacional", como uma das alternativas à não-monogamia. 

Anarquia relacional é a tentativa de relacionar-se sem a mediação de um princípio exterior à própria relação. Isso traduz-se no cuidado em se colocar sempre lado a lado àqueles com quem nos relacionamos, isto é, reivindicar a autonomia dos envolvidos, deixando o governo para os que desejam ser governados. Estamos falando de amor. Se parece política, é porque é.

Se existem formas diferentes de amar e formas diferente de amor, por que precisamos enquadrar os relacionamentos românticos sempre na mesma fôrma, quando é evidente que muitas pessoas não se encaixam nela? (Me lembra aquele macaco tentando enfiar raivosamente um cubo num buraco circular.)

É óbvio que eu não tô fazendo uma campanha contra pessoas que só querem ter um parceiro pelo resto da vida. É ótimo que existam pessoas assim. O problema é colocar isso como a única opção possível para TODO UNIVERSO, demonizando as outras formas de se relacionar. 

Meu lado punk balança os cotovelo e poga em sinal de aprovação quando leio sobre "uma forma de amar que recusa ser mediada por formas pré-estabelecidas socialmente". Eu adoro recusar ser medido por formas pré-estabelecidas socialmente — mas não muito, porque ainda tenho boletos pra pagar. Como homem LGBT+, isso basicamente faz parte da minha história de formação, mas não precisa ser viado pra refletir sobre isso. 


O amor como falta

Uma das bandeiras da campanha política da monogamia é a ideia do amor como falta. Sobre isso, o Rafael Lauro escreveu:

Quando pensamos que o amor se apresenta como a falta de alguém, somos levados a buscar no outro um preenchimento, que, convenhamos, é impossível, e não deveríamos nos entristecer com essa constatação. Ninguém pode ser totalmente responsável por nossa alegria. A alegria eterna não existe, a tristeza faz parte de qualquer relação. Assim, o mito do par perfeito só serve para maldizer o amor que existe.

E eu não poderia concordar mais quando ele diz que "estamos buscando a tampa de nossa panela, mas isso provavelmente só servirá para cozinhar algo em alta pressão".

De um problema ruim surge uma solução pior: se somos faltosos por excelência esperamos que o outro nos complete. (...) De uma péssima solução surge um modo de vida bastante limitado: se o outro nos completa então não é possível amar mais ninguém. Se acontecer de amarmos mais alguém, isto é visto como falta de amor ao primeiro, que provavelmente não era o definitivo, o melhor, o que se esperava. Vejam como um problema mal colocado nos coloca em um caminho ruim. Não é difícil perceber quanto o amor exclusivo é uma demanda difícil de atender.

E essa demanda, como lembra o Rafael, gera um ciclo de bosta, composto por: "falta, pretensa satisfação total, clara insatisfação conjugal, separação, volta ao começo". É o Mito de Sísifo escrito pela Shonda Rhimes. 


O amor como abundância

Em vez da falta, o autor do texto sugere pensarmos no amor como abundância, porque a própria vida é resultado do excesso. E a capacidade de sentir amor, afinal, é inesgotável.

"Fazer do amor uma experiência mais cotidiana não significa diminuí-lo, significa desplatonizá-lo. Amamos um gesto, uma ideia, uma poesia, uma paisagem e, claro, uma pessoa – mas que erro ter dito 'uma'", escreveu o Rafael, lembrando que o que muda é a intensidade com a qual amamos as coisas e as pessoas:

Vejam, não se trata de fazer um elogio tolo à poligamia. Já dissemos, é uma possibilidade, mas apenas uma delas. No entanto, para que nossos amores sejam mais leves, precisamos aprender a nos relacionar a partir da diversidade que há em nós e nos outros.

Cada relação é um micro-universo, seja ela romântica ou não. 


O amor nos tempos do capital

Vale lembrar que a não-monogamia não é uma grande suruba — a menos que você queira, claro, mas não é essa a questão. Primeiro porque repensar a monogamia não é necessariamente transar com mais pessoas, e, sim, se entender como um ser autônomo e completo em si. Segundo, escapar do amor-carência para virar uma máquina de pegar gente é que nem trocar tequila por vodca para amenizar o porre. 

Por isso a proposição de uma anarquia relacional, essencialmente anti-capitalista, é importante. Sem ela, pensaremos que estamos nos relacionando a partir da abundância, mas na realidade estaremos apenas tratando pessoas como produtos, dispensando-as à esquerda de nossas telas. Se não questionarmos o capital, jamais encontraremos no amor um valor não monetário.

Porque, de fato, no capitalismo, absolutamente TUDO vira produto. 

Costumamos pensar que os relacionamentos monetários são apenas aqueles que envolvem moeda, mas na verdade o capital não se resume a isso, ele é o valor em torno do qual tudo gira, inclusive nossas relações.

E não tá mentindo. 

Para escapar do capital, precisamos insistir no amor como produção de uma intensidade real, que vá além da lógica do consumo. O amor não é um serviço, uma pessoa não é um produto, uma relação intensa não se traduz em números, quantidades e comparações. Abundância não significa múltiplas unidades todas iguais, mas múltiplas singularidades. Uma relação amorosa é a ocasião única, onde vivemos uma alegria irreprodutível, irreplicável, incomunicável.

A monogamia é essencialmente capitalista.


O amor machista

Sim, a monogamia é essencialmente capitalista. Foi uma invenção criada para controlar heranças e hereditariedade. Afinal, só controlando com quem as mulheres transavam é que os homens podiam garantir que o filho fosse seu, e que seus bens pudessem ser repassados para alguém do seu sangue. Juntando isso com ao ideal do amor romântico propagado por indústrias como a de Hollywood, por exemplo, temos uma bomba atômica.

"O capital nos organizou nesse sentido monogâmico", pontuou o psicanalista Lucas Liedke, nesse outro podcast sensacional, que o Felipe, meu amor, indicou. 

Por isso, além de capitalista, a monogamia também é essencialmente machista, uma vez que, em muitos casais heterossexuais, a monogamia só existe da parte da mulher (enquanto o marido a trai com a torcida jovem do Santos inteira). Um homem que trai ainda é visto como um pegador, o que é considerado uma qualidade masculina "natural". Já a mulher é puta. Trata-se claramente de uma generalização, mas quantas histórias dessas você já escutou?


O amor "evoluído"

É importante também ter cuidado com a falsa ideia de que pessoas não-monogâmicas são mais "evoluídas", um ser de luz que transcendeu a posse e o ciúme e é tão seguro das suas qualidades superiores que não liga caso seu parceiro ou parceira se envolva com qualquer um. "Alguém que consegue performar um tipo de desapego muito radical", como lembrou o Lucas, no podcast. 

Isso é ilusão, óbvio, porque os sentimentos de posse e o ciúme continuam existindo. A questão é como eles são trabalhados. E o que podemos aprender sobre nós mesmos quando dissecamos esses sentimentos e encontramos ali pedaços nossos que não aparecem à luz do dia. É um processo que pode ser, inclusive, doloroso.

Por isso, repito: não tô fazendo uma apologia à não-monogamia (ou um "elogio tolo à poligamia"), isso seria ridículo. A ideia não é que você abandone seu relacionamento e saia por aí transando com todo mundo na rua, porque esse é o novo modelo da juventude nova era. O que eu tô questionando é a imposição da monogamia como única forma de relação existente. É possível pensar em maneiras mais criativas de se relacionar quando não estamos felizes com a forma com a qual nos relacionamos? Sim. É difícil? Também. Mas elas existem. 

E se a gente quiser ser sincero é preciso refletir sobre o que é jogado no nosso colo como se fosse uma verdade absoluta. Não podemos aceitar qualquer mamadeira de piroca. E precisamos lembrar sempre que, assim como escreveu a Svoboda, na matéria da MIT Tech  ao falar sobre um programa de computador que acertadamente conseguiu adivinhar que ela estava triste, mesmo dizendo que não estava , "as maiores mentiras da vida são aquelas que contamos a nós mesmos". 

Fim.


Se gostou do que leu, eu recomendo fortemente que você considere ouvir o Imposturas Filosóficas (parte 1 e parte 2) e o Vibes em Análise.


Eu falhei miseravelmente em tentar manter uma periodicidade no envio desta newsletter. Era pra ser mensal, mas não tá sendo. Peço até desculpa pras pessoas novas que assinaram achando que teriam entretenimento de qualidade e se depararam com o triste vazio. Mas eu andei bloqueado e não achei que seria producente parir um texto a fórceps. 

Um texto desse tipo não surge em cinco minutos. Dá trabalho, envolve pesquisa e algumas madrugadas insones. Eu poderia estar vendo Verdades Secretas. Mas o lado bom é que escrever e terminar uma edição da PunkYoga me dá um prazer comparável a um orgasmo. Receber os comentários de quem lê (como as palavras carinhosas da Jordana), também. 

Então, só queria dizer que, apesar da demora, eu faço isso com muito amor (não romântico). 

A boa notícia é que parece que eu achei um caminho para escrever o livro que tô planejando há mais de dois anos. É um ficção científica sobre o tempo com questões gays e vários pontos apresentados nessa edição. Orem por mim. Além disso, já tenho tema pras próximas edições da newsletter que devem tratar de música, extraterrestres e o Egito. Sem contar que preciso ainda dizer como foi minha passagem pelo retiro de formação de facilitadores da Lei do Tempo. Quem viver, verá. 

De resto, só tenho a agradecer a você que leu as 2.316 palavras desta edição e ainda continua aqui. Obrigado por me acompanhar. E, se curtiu, encaminha pra algum amigo bitolado, posta nas redes ou me segue lá no perfil do @punkyoga_. Bora fortalecer os trampos independentes. 

Se quiser trocar uma ideia, me encontra lá no meu insta pessoal, ou só responde esse e-mail.

Vai pela sombra e fica na paz de Bowie.

Com amor y anarquia,

Nathan

Se você chegou aqui através de um link, deve tá pensando: "Como eu assino essa newsletter maneira?". Ora, é só deixar seu e-mail aqui (e fazer a confirmação). E dá pra ler as edições anteriores aqui também. Se não curtiu e tá aqui lendo esta última linha, admiro sua capacidade de autoflagelação.