PunkYoga #45: O deslize de Linn da Quebrada
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PunkYoga #45: O deslize de Linn da Quebrada

O deslize. Outro dia eu sonhei com ele. Era uma energia. Do tipo viscosa, como se qualquer coisa que o tocasse corresse o risco de escorregar. Tinha a forma de uma salamandra. Mas não tinha forma nenhuma. Era liso, esguio & lúbrico. E também ...

Nathan Fernandes
9 min
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O deslize. Outro dia eu sonhei com ele. Era uma energia. Do tipo viscosa, como se qualquer coisa que o tocasse corresse o risco de escorregar. Tinha a forma de uma salamandra. Mas não tinha forma nenhuma. Era liso, esguio & lúbrico. E também não era nada.

No sonho, eu dançava com o deslize. Nós nos enrolávamos, como duas fitas de DNA, numa lambada cósmica. 

Na época, eu ainda não fazia terapia, então não pude compartilhar a cena com meu terapeuta — que claramente se empolga mais com meus sonhos do que com meus dramas gays. Como não tinha orientação, supus que aquele sonho era um prenúncio para a entrevista que eu faria, dias depois, com a Linn da Quebrada (graças à ajuda da Iza, amiga querida e assessora que é uma flor de lótus no cenário da música).

A entrevista foi publicada no Yahoo!, em um texto que eu adorei escrever. Mas a conversa não se limitou ao que saiu, então quis publicar uma extensão do papo aqui na PunkYoga. E é isso que estou fazendo agora. O que você vai ver, além das ilustrações belíssimas, inspiradíssimas e exclusivíssimas feitas pelo maravilhoso Basq, é a conversa que eu tive com a Linn, que inspirou essas ilustras hiperbólicas.

A conversa girou, basicamente, em torno de um assunto. Ele mesmo. O deslize. Que eu tinha sonhado dias antes.

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Pra chegar a essa ideia, primeiro a Linn me explicou que seu primeiro disco, oPajubá, de 2017, é uma “fissura na própria fissura do mercado”, e eu só consegui imaginar uma rachadura gigante que ameaça demolir uma parede de concreto.

“Acho que construí com Pajubáessa fissura dentro do mercado colonial, para que tanto eu quanto outras que têm produzido sobre o seu tempo conseguíssemos nos inserir nesse mercado, conseguindo deslocar essa suposta força e supremacia branca, da masculinidade, da cisgeneridade... A gente coloca essa pauta em xeque”, disse.

E ela se inseriu tão bem nessa rachadura que um documentário sobre sua trajetória, o Bixa Travesty, foi premiado no Festival de Berlim; ela também levou discussões sobre gênero para a Globo, na série “Segunda Chamada”; além disso, ao lado de Jup do Bairro, ganhou um programa de entrevistas no Canal Brasil; e ainda foi enaltecida pelo "The Guardian".

A sociedade parece ter aceito bem a “bixa travesty”. “O mercado se adapta”, constatou ela, “esse mercado elástico se adapta para nos fazer caber porque percebe que ali, de alguma forma, tem algo que pode ser rentabilizado, se tornar lucro. Então, sinto que dentro do mercado o que acontece é uma inclusão pela exclusão. Dentro de todo o círculo mercatorial há uma inserção para os grupos de representatividade. Dentro do círculo, eles fazem um cercadinho para que os movimentos de representatividade lutem para entrar.”

Segundo Linn, Trava línguas, seu álbum de 2021, surgiu depois que ela percebeu ter caído dentro da boca grande do mercado e ter se perguntado: “Quem sou eu, afinal?”. Assim, voltando alguns passos, antes de ser triturada, ela preferiu tomar distância para poder ver melhor quais são os movimentos que ela representa dentro dessa grande besta faminta chamada neoliberalismo.

“Entendo que a grande questão da pergunta ‘Quem sou eu?’ nesse momento tem sido: ‘Quem eu estou sendo dentro desse mercado que faz uma hipermarcação do nosso corpo como pessoas negras, periféricas, marginais, trans, travestis, LGBT+. É uma hipermarcação sobre o meu corpo, não sobre o meu trabalho. Nessa elaboração, entendo que estou num lugar totalmente oposto ao de quando lancei Pajubá. Houve um movimento decomodificação. Aprendi essa palavra há pouco tempo, tenho até a definição dela aqui: ‘A comodificação refere-se ao fenômeno contemporâneo que muitos bens e serviços e ideias que não eram consideradas comerciais passam a ser transformados em mercadorias vendáveis'. Percebo muito isso. Todas as nossas ideias que não eram comerciais, que não interessavam, passam a oferecer a oportunidade de lucro. E a gente passa a ser, de uma certa forma, capturada. Trava Línguassurge como um movimento de desvio, uma esquiva, como um deslize para fugir a essa captura.”

Enfim, o deslize.

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Mas diferente da salamandra dançarina do meu sonho, o deslize da Linn tem som, forma e até uma epistemologia. É a linguagem. Como uma serpente, a artista escorrega pelo sistema através das palavras e tenta “te convencer ao que não te convém”. Foi por isso que, em vez de repetir a rajada sexual de Pajubá, em seu segundo trabalho, ela preferiu depositar essa intensidade no que chama de “elaboração sobre a linguagem”, as quais, ao mesmo tempo que confundem, também revelam a beleza de quem sabe dançar com as palavras.

Algo que até pode ser entendido como suavidade. Isso porque, em vez do lirismo anal de versos como “dedo no cu é tão bom”, ela preferiu dar destaque a jogos linguísticos como “entre o fundo do poço, e a profundidade do posso, é no silêncio do passo que eu ouço”. Mas se você olhar de perto não tem nada de suave nisso.

“Acho que traduzir esse trabalho de uma forma branda é superficial. Estou falando de coisas muito profundas, densas. E é justamente isso que eu busquei na linguagem, que você me ouça novamente, que você me ouça e veja que eu estou em outro lugar. Eu não estou onde as pessoas esperavam que eu estivesse. Isso é fuga. Esse é o desvio”, diz.

“Eu estou elaborando o mistério, e o mistério não é para todas. Para você entender o que realmente estou falando é preciso que você entre em contato e se relacione com aquelas linguagens para entender as coisas que estão nas entrelinhas. Quando falo ‘divagar mais, divulgar menos’, estou falando desse lugar do mercado que corta, que sangra. Mas canto isso de uma forma supostamente mais doce, mais sutil, que engana. E enganar por si só — forjar na força da farsa — já é uma elaboração estratégica. É justamente aí que eu tenho trabalhado, construindo outras estratégias para encontrar formas de entrar na casa de pessoas com as quais eu não tinha falado, pra estimular um pensamento que me interessa. Busco uma palavra que subverte, que escorrega que seja difícil de ser dita enquanto enunciação, porque isso é um trava-línguas, aquilo que é difícil de ser anunciado, difícil de ser dito. É o mistério.”

Sabendo que palavra é fogo — uma coisa que pode tanto aquecer quanto queimar — Linn não se propõe a cantar, mas a proferir feitiços.

“Me proponho a estabelecer uma disputa na e pela linguagem. Porque se é a linguagem do colonizador que me diz quem sou eu, que elabora uma razão negra, que reduz, limita, compacta, dilui todas as nossas múltiplas existências, então eu vou tentar fazer o que eu posso com aquilo que fizeram de mim. Se fazem de mim um transtorno de identidade de gênero, então eu vou ser um transtorno muito pior para as suas identidades. É entender o que essas palavras que nos prendem fazem com a gente. E como elaborar outras palavras que já existem na linguagem colonial. Isso é feitiço.”

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E é por seu corpo ter uma relação tão íntima com a magia da linguagem que sua fé pode ser tocada com as mãos.

“Tenho me aproximado dessa possibilidade de cultivar o meu espírito de diversas formas. Mas tenho uma forma muito particular de entender o espírito como sendo de carne e osso, e assim entendo como cultivar naturalmente o meu corpo. Dentro disso, tenho me aproximado do candomblé, mas eu sinto que as minhas conexões espirituais vão para além do terreiro. Tenho feito uma aproximação cuidadosa, justamente porque na infância e adolescência a espiritualidade era uma coisa que se afastava do meu corpo, das minhas orientações, um lugar onde meu corpo foi proibido para mim mesma. Na verdade, não acho nem que eu tenha me afastado, mas desloquei a minha espiritualidade a um lugar de egrégora, de encontro com as minhas. Por isso, para mim, a música ‘Oração’ não é uma aproximação com a espiritualidade, mas uma celebração da egrégora que eu vinha construindo há muitos anos. [...] Para onde orientamos o nosso pensamento, onde posicionamos o nosso ori, que tipo de pensamento cultivamos? Isso para mim é material.”

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Ao tornar o subjetivo em algo objetivo, Linn profana a maior das divindades: o amor. O que não é exatamente um pecado quando você já foi condenada ao inferno. Assim, Linn transcende e dissolve a ideia de profanação. E sugere a morte desse sentimento.

“O amor é uma das principais falácias e ferramentas de manutenção desse sistema. Dizem que devemos amar ao próximo, mas e quando a gente percebe quem não é o próximo? Que são justamente aquelas que não são humanas, que não são humanizáveis. Estejam essas pessoas em situação de vulnerabilidade, de rua, travestis, pessoas pretas. Por que o genocídio da população negra não causa uma crise ética global? Por que toda a morte da população de travestis não nos move, não nos comove? Porque essas não são pessoas a quem destinamos o nosso amor, não são pessoas passíveis e merecedoras de serem amadas. Por isso, o amor é uma das principais ferramentas de manutenção desse sistema, ele mantém as coisas como estão. Existe esse discurso de um território sagrado, de onde Deus é amor. Se Deus é amor — e ele representa essa instituição que sustenta esses pilares [do sistema] —, então acho que há algo aí que precisa ser destruído.”

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Eu não tinha entendido muito bem o que era aquela energia deslizante com a qual eu tinha sonhado até ter essa conversa com a Linn. Porque depois que agradeci a ela e a Iza e desliguei a chamada do zoom, fiquei pensando no sentido disso que a gente chama de amor. No amor como ferramenta de ódio.

Se a palavra foi cooptada por um bando de escroto que se beneficia com a desgraça, o problema é da palavra, não do sentido. Quer dizer, a palavra pode ter se perdido, mas o sentido continua existindo. Agora no limbo das coisas que ainda não têm nome.

Então, se for assim, a gente tem mesmo que matar esse amor que condena um monte de gente à desumanização e inventar um novo termo pra definir a força eletromagnética que nos mantém orbitando as relações de afeto profundo. Essa força que escorrega entre as palavras como uma salamandra sinuosa. Essa força que é o deslize.