Nada se compara ao fascínio que eu tenho quando entro numa papelaria — ou bazar, que é um nome mais vintage. Ok, talvez aquelas bancas de jornal que parecem um transformer também me fascinem, mas as papelarias sempre foram muito mais acessíve...
Nada se compara ao fascínio que eu tenho quando entro numa papelaria — ou bazar, que é um nome mais vintage. Ok, talvez aquelas bancas de jornal que parecem um transformer também me fascinem, mas as papelarias sempre foram muito mais acessíveis. Não tinham muitas bancas fabulosas onde eu morava, zona sul profunda de SP, mas bazar tinha aos montes. E todos eram incríveis & cheios de canetas de gel & cartolinas com cores escandalosas. | ||
Comprar material escolar era uma alegria imensa, porque era o momento de escolher a personalidade que eu assumiria ao longo do ano. Teve o ano dos cadernos "No Vaca, Yes Drop" ou "No Stress", quando decidi que performaria um surfista. Teve também o ano dos cadernos "Star Wars" com folhas pretas. Era a fase nerd misterioso. O problema era que pra escrever nesses cadernos tinha que ter caneta de gel prateada, e elas eram caríssimas. Além disso, eu não queria gastar as folhas especiais com qualquer coisa. Então eu só podia ser um pouco nerd misterioso. | ||
Talvez o item de papelaria que eu mais goste seja o papel contact. Quando minha mãe me disse que tinha como encapar os cadernos com um plástico transparente que não escondia a capa e ainda protegia, eu achei aquilo o ápice da inteligência humana. | ||
Passei então a encapar TUDO com papel contact. Ou melhor, minha mãe passou a fazer isso, porque ela sabia dar um acabamento que ficava perfeito, quase nem parecia que o bagulho tava encapado de tão perfeito. Diferente de mim, que sempre deixava uma bolha gigante no meio, ou uma dobra irritante até pra quem não tem TOC. O bom é que isso é uma arte que não se perdeu, porque as pessoas que eram extremamente habilidosas na arte de encapar coisas com papel contact devem ser as mesmas que hoje colocam películas no celular no maestria. | ||
Eu fico besta. Você vai na lojinha de celular trocar aquela película toda esbagaçada e o vendedor sempre para tudo que tá fazendo, higieniza o local e, como um cirurgião, se dedica com extrema atenção a colocar uma película novinha, que simboliza a esperança de recomeçar uma nova vida com o celular intacto. | ||
Tudo que eu amava eu encapava com contact. Até que um dia, em 2001, minha mãe falou: "Por que você não encapa esse livro do Harry Potter?", que ela também gostava de ler. Encapamos a Pedra Filosofal e o livro ganhou um brilho que não tinha antes, literalmente, porque o contact tem esse poder de tornar luminoso o que antes era fosco. Superalinhado com a moda dos Vengaboys. | ||
Um dia, a gente foi num shopping perto de casa. O estacionamento era aberto, tava sol ardendo e eu deixei o livro no para-brisas do carro... Adivinha? | ||
Quando voltamos o livro parecia o sobrevivente de uma erupção vulcânica. As páginas estavam todas lá, mas a capa tava retorcida pelo calor, completamente destruída, toda cagada. O papel contact podia ser um ótimo protetor, mas ele era completamente insignificante perto da grandeza do Sol. Eu fiquei triste. | ||
Mas isso me mostrou que a ideia de controle que a gente tem sobre as coisas é ilusão. Às vezes, nem o contact salva. E, se alguém ainda tinha dúvida em relação a isso, taí a pandemia que não me deixa mentir. | ||
Nos últimos meses, eu tirei o papel contact de todas as coisas que protegem minha vida. Entreguei o apartamento que morava em SP, me desfiz dos móveis, passei um ano me embasbacando com a beleza de Ubatuba e agora estou, desde março, rodando pela Argentina só com uma mochila, meu amor e minha cafeteirinha rosa detonada. | ||
Que nem uma ilustração que uma amiga postou, no mesmo dia que eu finalizo esse texto, dizendo que "a ausência do controle é o início da aprendizagem". Acho que eu eu não tinha essa ideia quando resolvi mochilar por aí, mas é isso que fica cada vez mais evidente pra mim, vivendo com tão pouca coisa, tão longe de casa. | ||
O volume da Pedra Filosofal que virou churrasco em 2001 é hoje o livro da minha estante que eu mais gosto. Porque ele tem uma história que não tá contada naquelas páginas. E é esse tipo de históra que eu quero contar aqui nas próximas edições da PunkYoga. | ||
Até o mês que vem. | ||
Com amor y anarquia, | ||
Nathan |