Esses dias, eu postei no insta o seguinte trecho de um texto escrito pelo Gust:
Esses dias, eu postei no insta o seguinte trecho de um texto escrito pelo Gust: | ||
É muito difícil conceber a ideia de que existe outra forma de pensar o tempo simplesmente porque fomos educados a vida inteira a pensar de um único jeito. Sofremos uma lavagem cerebral para achar que o tempo é uma linha reta que vai do passado em direção ao futuro. | ||
O conceito de progresso mora nessa ideia, fazendo com que a gente sempre busque o que tá lá na frente, sem prestar atenção no que já tem agora. É justamente isso que nos faz ter a sensação de estarmos sempre atrasados, sempre ansiosos, sempre com os nervos contraídos à espera de alguma coisa. | ||
Essa ideia nervosa de tempo não vale para todo o Universo, aliás, essa ideia nervosa de tempo não vale sequer para todo o planeta Terra. Algumas filosofias indígenas, orientais e africanas, por exemplo, têm outras concepções. E quem me acompanha aqui sabe que eu gosto de ir em busca delas, assim como você que tá lendo, provavelmente... | ||
Pois bem, um amigo viu o post lá em cima e veio trocar ideia, comentando que, beleza, eu até entendo que exista outra forma de pensar no tempo, mas como é possível viver essa outra forma de tempo sendo que a gente tá tão inserido no tempo do calendário e do relógio? | ||
De fato, né, se a gente organiza a nossa existência em torno de ferramentas como relógios & calendários, pensar na vida fora disso só pode ser coisa de gente muito fã de Planet Hemp. Sim! Mas como as pessoas faziam antes de 24 de fevereiro de 1582, quando o Papa Gregório 13 instituiu esse caléndário que a gente usa? Como fazem HOJE os povos isolados lá do Amazonas que não possuem uma traquitana com ponteiros pra medir o dia? | ||
O tempo é uma invenção. | ||
E, se ele é uma invenção, então nós podemos inventar outras formas de pensá-lo. Formas, talvez, que nos deixem menos ansiosos e que não associem uma ideia tão subjetiva como o tempo ao dinheiro. Porque como dizia o Antônio Cândido, "tempo não é dinheiro, tempo é o tecido das nossas vidas". | ||
É preciso estar mais sensível às ironias da vida para perceber que, apesar de nos deixar doentes, essa ideia de tempo ocidental também é boa, porque nos organiza. Então, nós não precisamos abandoná-la. Nós precisamos conciliá-la. | ||
Estilhaçado & caleidoscópico | ||
Deu pra ver essa ideia de conciliação ganhando corpo (e brilho e luzes e plumas) no desfile da Acadêmicos da Grande Rio desse ano, que homenageou Exu, e venceu o carnaval do Rio. O carro “Chão de Terreiro, Axé no Mercado”, um dos mais bonitos do desfile, mostrou que a entidade borra a linha que separa o espaço do sagrado (terreiro) e o do profano (mercado), assim como o do claro e escuro, do bem e o mal... | ||
Isso porque, como dizem, pra Exu, não existe uma coisa OU outra, é uma coisa E outra. As contradições e os paradoxos dançam tão colados que não dá mais pra diferenciar nada. Tudo se torna um só. No mesmo tempo. Não existe uma linearidade, mas, sim, uma encruzilhada. | ||
Ou como escreveu Marina Basso Lacerda, nessa análise ótima do desfile: "Exu, associado a uma noção não linear de tempo e sua figura caleidoscópica, nas palavras dos carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad, serve de 'espelho (estilhaçado) para que pensemos o próprio Brasil – país que se faz terreiro, num desfile de Escola de Samba". | ||
Favela venceu | ||
Outro dia tava ovindo o podcast do Mano Brown. Em uma conversa com o Kondzilla, ele perguntou sobre o lema "favela venceu", que é usado por muitos artistas, e que foi inventado pelo próprio Kond. | ||
Achei interessante descobrir que o Kond criou a frase bem antes de ser famoso, não depois. Tipo ele já dizia ter vencido, antes disso acontecer. Na conversa, ele explicou que viu um documentário do Snoop Dogg com o Diplo na Jamaica, onde o Snoop soltou uma frase tipo "existem muito mais pessoas que lutam do que pessoas que vencem". Aquilo marcou. | ||
"Pensando naquele papo de projetar o futuro, de física quântica – ou qualquer nome que inventem pra isso –, eu pensei: 'Favela venceu', meu mantra de vida. Depois de um tempo, as coisas começaram a ficar confortáveis para mim", explicou o Kond. | ||
A ideia original de "favela venceu", então, não é ostentar uma vitória que aconteceu passado, mas dar um direcionamento para a vitória que virá no futuro. A frase subverte a ideia lógica do tempo linear, como se o futuro já tivesse acontecendo no presente. Lei da atração? Pode ser... Mas também me parece uma boa técnica pra pensar no tempo de uma forma mais circular, rompendo com a ideia de passado, presente e futuro como se fossem coisas separadas. Não são. Até porque o passado e o futuro sequer existem. | ||
Simaria no multiverso da loucura | ||
A cantora Simaria também é uma viajante do tempo. E ela deixou isso bem claro numa entrevista estranha que deu ao Leo Dias outro dia. | ||
Sentada incrivelmente perto do jornalista e tocando na cara dele toda hora, a Simaria chorou pelo pai, mandou indiretas pra Simone, exibiu a afinação, balbuciou coisas desconexas e deu várias alfinetadas no Leo Dias, que ficou visivelmente desconfortável em vários momentos. Não dá pra entender se ela quer ser amável com ele ou se ela quer enforcá-lo com uma meia. | ||
No meio dessa balbúrdia, ela me solta isso aqui: | ||
Eu tava fazendo uma leitura da mina vida, nos ultimos meses, e percebi que tudo que eu escrevi foi pra mim mesmo. Descobri agora, com 40 anos, que as letras que eu mesma escrevi eram para mim. Hoje, com 40 anos, madura, entendi que as letras foram todas para mim. | ||
Sim, ela tá dizendo com todas as letras que uma Simaria do passado literalmente está se comunicando com a Simaria do presente através de suas músicas – eu até separei o trecho certinho aqui pra você assistir. | ||
É como se as canções fossem uma máquina do tempo, o Delorean do De Volta Para o Futuro, um buraco de minhoca que distorce o espaço-tempo e faz com que a quarta dimensão se dobre para que as Simarias do multiverso da loucura se comuiquem entre si. | ||
Desculpa, tô ouvindo muito Planet Hemp...Mas, se a gente prestar atenção, o que a Simaria tá dizendo é o seguinte: todas as respostas que ela precisa para a vida dela sempre estiveram dentro dela mesma. E ela consegue acessar isso independente de que lugar ela esteja no tempo. | ||
Tempo-travesti | ||
Tem uma ideia que eu gosto muito que é o conceito de queer time, do Jack Halberstam. Basicamente, ele diz que as pessoas LGBTQIA+ têm uma percepção diferente do tempo, porque, no geral, elas não respeitam o "tempo hétero". | ||
Sério, pensa bem: uma pessoa heterossexual cresce, casa, se reproduz e morre. Eu seeeeei que não é só isso, calma... mas o caminho que uma pessoa heterosseuxal é ensinada a seguir na vida, geralmente, tem essa lógica. Se você é um homem ou uma mulher que segue o padrão hétero e não casou, não tem um emprego e não teve filhos aos 30 anos, as pessoas começam a te cobrar, você sabe... Começa a pegar meio mal nas reuniões da família. | ||
Lésbiscas, gays, transexuais e pessoas não-binárias não seguem essa lógica, seja porque são forçadas a viver de outra forma, ou porque encontram outras formas de vida que fazem mais sentido para elas, e que não passam nem por matrimônio, nem por reprodução. | ||
Além disso, por ser gay, eu, por exemplo, me sentia tão errado, confuso e sem referências quando era mais novo, que só pude explorar minha sexualidade de forma mais livre (gay!) depois dos 24 anos. A adolescência de um jovem LGBTQIA+ não é igual à adolescência de uma pessoa hétero. | ||
Agora imagina uma pessoa transexual... | ||
Como disse o Jonas Maria, nesse vídeo sensacional, em um país no qual a perspectiva de vida de uma travesti é de 35 anos, como as travestis percebem o tempo? O que é velhice para uma travesti? | ||
O que é adolescência para uma travesti? O João Nery, que foi o primeiro homem trans a fazer a cirurgia de redesignação sexual no Brasil (que eu tive a honra de entrevistar) costumava dizer que nasceu "quase aos 30 anos, sem nunca ter morrido". | ||
Tudo em todo lugar ao mesmo tempo | ||
O que o Kondzilla, a Simaria e o João Nery mostram é que é possível ter uma outra percepção sobre o tempo. É aquilo que o Einstein tá falando aí há mais de cem anos: o tempo é relativo. Isso quer dizer que o tempo não é igual pra todo mundo. Ele depende de um referencial. | ||
Acho que só de aceitar essa ideia, de que existem outras formas de perceber o tempo, já faz com que a nossa consciência se expanda um pouquinho, cedendo espaço para novas ideias. | ||
E, quando a gente coloca uma ideia nova no cérebro, as ideias antigas que já tavam lá continuam existindo. As novas ideias convivem com as velhas. Todo mundo junto num grande carnaval encefálico. Um carnaval na encruzilhada de Exu, aquele que mostra ser possível que duas ideias paradoxais coexistam. | ||
O que eu queria ter dito ao meu amigo e talvez não tenha conseguido em 140 caracteres é que, para pensar o tempo de uma forma circular (ou espiralar), ou seja, pra fugir do tempo nervoso, não acho que precisamos abandonar o que foi aprendido a vida inteira. Nós precisamos conciliar. Somos seres complexos e multidimensionais, e podemos nos comportar como tal. | ||
O fim | ||
O título desta edição da PunkYoga é uma homenagem ao Zé Ramalho. Ando envolvido demais com as músicas dele porque inventei de fazer um podcast psicodélico sobre Avôhai. Em breve falo mais... | ||
Eu estou há uns dois meses elaborando essa edição sobre o tempo. É incrível porque metade das edições da PunkYoga são sobre o tempo, mas mesmo assim o assunto não se esgota. Quando escrevi a primeira parte dessa edição, sobre o carnaval de Exu, não tinha ideia do que viria a seguir, e nem sabia que seria sobre o tempo. | ||
Coisas como a entrevista da Simaria e do Kondzilla foram aparecendo, e eu tava aberto pra elas. | ||
Antes, eu ficava muito preso à ideia inicial de um texto, mas, com o tempo, fui aprendendo que o texto vai ganhando vida própria na medida em que a gente vai fazendo ele, como essa viagem que eu tô fazendo aqui na Argentina, como a vida no geral... | ||
Essa newsletter é um exercício de me livrar de todas as travas que o jornalismo me coloca. Por isso, ela parece meio zureta das ideias, às vezes, mas eu gosto assim. | ||
E, se você também curte, manda pra um a amigo que também seja zureta das ideias. Ou me responde esse e-mail com um emoji de joinha. Ou me coloca nas orações da sua avó. Dá uma moral pros projetos independentes (se puder), não só o meu. | ||
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie. | ||
Com amor y anarquia, | ||
Nathan | ||
Se você chegou aqui através de um link, deve tá pensando: "Como eu assino essa newsletter maneira?". Ora, é só deixar seu e-mail aqui (e fazer a confirmação). E dá pra ler as edições anteriores aqui também. Se não curtiu e tá aqui lendo esta última linha, admiro sua capacidade de autoflagelação. |