PunkYoga #48: Celeste
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PunkYoga #48: Celeste

Tava rolando o feed do Twitter e me deparei com essa foto do Nilson Xavier mostrando o céu escarlate da cozinha dele. A foto não tem nada demais. Provavelmente, ele tava passando pela cozinha, viu o céu bonito do fim de tarde e bateu a foto.

Nathan Fernandes
8 min
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Tava rolando o feed do Twitter e me deparei com essa foto do Nilson Xavier mostrando o céu escarlate da cozinha dele. A foto não tem nada demais. Provavelmente, ele tava passando pela cozinha, viu o céu bonito do fim de tarde e bateu a foto.

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Mas eu fiquei absolutamente encantado. 

Não pela foto em si, mas pela ideia de uma fenda do inferno rasgando o céu. Me lembrei dos céus bonitos que eu já vi na vida. Durante um ano morando em Ubatuba, por exemplo, fui presenteado com céus que parecem ter sido pintados à mão com a precisão de um virginiano. 

No outono e no inverno, quem acorda às 5 da manhã, junto com o Sol, pra fazer canoa havaiana, vê o céu ganhando uma tonalidade violeta e sensual quase indecente. É o fim do mistério da noite, e o início da clareza do dia: a hora da manhã que recebe o nome de aurora. 

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Não sei, posso estar falando merda, mas acho que essa é a única faixa de horário celeste que tem um nome próprio. O nome de uma deusa. Aurora. A deusa romana do amanhecer.  


Na mitologia hindu, Aurora recebe o nome de Ushas. No livro Hindu Goddess, o professor de religião David Kinsley escreve que essa deusa é "consistentemente identificada com o amanhecer, revelando-se com a vinda diária da luz ao mundo, afastando as trevas opressivas, afugentando demônios malignos, despertando toda a vida, colocando todas as coisas em movimento, enviando todos para cumprir seus deveres."

Em outras palavras, é a Ana Maria Braga berrando "acooorda, meniiiina!". 

No Handbook of Hindu Mythology, o professor George M. Williams também destaca que Ushas é venerada nos dias de hoje através do mantra Gayatri, que é o mantra mais bonito (dos três) que eu conheço. 

Ouvi ele pela primeira vez nesse reggae. Quando escutei, fiquei encantado com aquelas palavras ensolaradas & impronunciáveis. Como meu sânscrito antigo é meio enferrujado, eu não sabia nem como procurar no Google pra saber mais sobre o mantra. 

Um dia, em uma aula de yoga do som, descobri. Nosso grupo se reunia online toda segunda-feira, na aurora — "quando a energia caótica da cidade ainda está dormindo" —, para entoar o Gayatri. E assim eu aprendi a pronunciar aquelas palavras bonitas, que também são uma senha para acender o Sol dentro da gente. 

Acho tão bonita essa ideia que outro dia até tive a pachorra de e escrever um poema, inspirado numa cena do filme Baraka, falado no ritmo do reggae:

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Seus cabelos são raízes fincados na terra, ao vento felizes mas sempre, sempre a entoar:oṃ bhūr bhuvaḥ svaḥ tat savitur vareṇyaṃ bhargo devasya dhīmahi dhiyo yo naḥ pracodayāt


Amo o céu de Ubatuba, porque ele é emoldurado por uma natureza selvagem e absurda, mas, obviamente, ninguém precisa estar no meio de um paraíso atlântico, nem acordar às 5 da manhã, nem fazer canoa havaiana, para ser contemplado com um céu bonito. 

Quando eu morava no Largo do Arouche, no centro de SP, tive o privilégio de ter uma varanda consideravelmente grande pros padrões de SP. Assim, aprendi a apreciar, todo dia no fim de tarde, aquele céu rosa simpático se misturando com o azul cabalístico, de uma forma que não se sabe onde acaba um e começa o outro.

Como diz o Zé Ramalho, é a hora em que a noite surge como um oceano para banhar de sombras um mundo de Sol. 

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Ao postar uma foto desse céu no instagram, um amigo do candomblé me disse que existe uma orixá que representa ele. É Ewá, irmã de Oxumaré (que é representado pelo arco-íris). Ewá também é a senhora das vidências. E tem até uma oração que é tão bonita quanto ela própria:

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 Escrevo essas linhas enquanto afundo numa areia movediça de notícias escabrosas: o estupro de uma mulher anestesiada durante o parto e a morte de um militante do PT por um bolsonarista aos gritos de "Aqui é Bolsonaro!". A gente não tem nem tempo de absorver a ideia de que o presidente é um sociopata disposto a vender a mãe para se livrar da cadeia (que virá) quando vem outro absurdo maior ainda para nos afundar mais.

O Brasil de 2022 é Mirella Santos tentando se reeguer consecutivamente depois de quebrar o salto. 

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É impossível alguém estar mentalmente saudável quando estamos atolados até o pescoço, sabendo que tudo ao nosso redor nos diz que o mundo é uma merda e que as pessoas são horríveis. Mas anos de desenho animado me ensinaram que a única forma de não afundar em areia movediça é parando de se debater. 

Brigar com maluco e ter que defender o óbvio até ficar fora de si é profundamento desgastante. No fim, quem se fortalece com a nossa debilidade é justamente quem a gente tenta enfraquecer. É inevitável que queiramos berrar, esbravejar e sair por aí mordendo a porta de raiva, mas uma hora a gente precisa parar. E é nessa hora que é possível lembrar do céu. 

O céu não é azul. Ele pode estar azul, mas isso muda ao longo do dia. O céu tem várias cores. Pensando no céu, fica fácil perceber que nada no mundo é estático. Tudo tá em movimento. Então, por mais que a gente se sinta atolado em merda, essa condição não se sustenta a longo prazo. Porque nada se sustenta a longo prazo. Nem o céu, nem o sociopata do Planalto, nem nossa vontade de cavar um buraco na terra e se enfiar nele. 

Assim como o céu, nós também temos várias cores. Por mais que a gente esteja nublado, o Sol inevitavemente acende uma hora. Os indianos nos deram o Gayatri de presente para lembrar disso, mas mesmo que a gente não lembre, o Sol aparece. Renato Russo prometeu. 


A primeira temporada de True Detectivetem um dos finais mais bonitos já feitos na história do audiovisual. 

É um diálogo entre os personagens do Matthew McConaughey e do Woody Harrelson. Na cena, é noite estrelada, Matthew tá só o pó da rabiola, em uma cadeira de rodas na frente de um hospital. Woody tenta animar ele, lembrando das histórias sobre o céu que o amigo inventava quando era jovem no Alaska. 

Matthew pó-de-rabiola olha para o céu noturno, cheio de estrelas, e diz que tinha uma história sobre a luta da luz contra a escuridão. Woody olha para o céu e constata: "É, me parece que a escuridão tem muito mais terreno do que a luz". Matthew desconversa e pede para o amigo carregá-lo para fora daquele lugar. Os dois caminham. 

"Você está olhando da forma errada para o céu", retoma Matthew pó-de-rabiola. 

"Como assim?", questiona Woody. 

"Se antes só havia escuridão, então acho que a luz está ganhando."

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                                                                                         O fim 


A PunkYoga já tem longos dois anos de idade. Eu sei, parece que foi ontem... Revisitando algumas edições antigas, fiquei surpreso com o tanto que a newsletter mudou. O que é ótimo. Tudo muda etc... Uma das seções que eu costumava fazer no começo eram as indicações de coisas que eu andava lendo, assistindo e ouvindo.

Sempre tive sentimentos misturados em relação a fazer essas listas, porque não sei o quanto isso seria interessante pra alguém. Tipo, de que importa saber o que eu andei lendo, vendo e ouvindo. Acho que foi por isso que parei de indicar.   

Mas, ao ver alguns dos links que eu tinha sugerido, lembrei de tanta coisa boa, tantas ideias que eu tinha e se perderam. Foi uma viagem no tempo. Entendi que essas indicações são uma ótima forma de documentação, um jeito de guardar as coisas que passam por mim. Então, decidi retomar. Mas, em vez de colocar a lista de indicações na edição regular (que eu sempre tento fazer com que seja curta, mas olha eu aqui escrevendo um texto longuíssimo de novo), eu decidi criar uma edição extra — como se eu já não tivesse tocando sete projetos ao mesmo tempo. 

Enfim, chamei essa edição extra de Microdose de PunkYoga, porque ela é mais curta e direta, mas tão alucinógena quanto. Se você é assinante, deve ter recebido a primeira edição.

Confesso, estou fazendo isso para mim mesmo. Do mesmo jeito que a Simaria compôs suas canções para ela mesma no futuro, tô fazendo essas listas para que lá na frente eu receba uma mensagem que ainda não sei qual é. 

Se você tem alguma indicação legal de reportagens, podcasts, vídeos, livros, séries, filmes, livros, discos & essas coisas que ajudam a manter a nossa sanidade mental no meio do caos, me manda. Eu vou adorar saber. A ideia é postar sempre na segunda semana do mês, vamos ver. 

Depois de seis meses, também voltei a postar no instagram do PunkYoga. Nos últimos posts, trouxe as ilustrações místico-subversivas do John Biggs, que eu conheci exatamente em uma dessas leituras que eu indiquei. Vai lá ver como é bonito. 

Tô querendo MUITO fazer lá no instagram uma galeria de céus radicais. Mas preciso da sua ajuda pra isso. Se você tiver uma foto de céu perdida no rolo de câmera do seu celular e quiser me mandar, eu prometo que vou cuidar bem dela. Você pode estar inserido na foto também (como a minha cara amassada lá em cima). Se juntar uma quantidade boa de auroras e crepúsculos, eu posto. Se flopar, nunca existiu. 

Para quem chegou até aqui, desejo céus limpos e caminhos abertos. Obrigado pela companhia. 

Até a última sexta-feira do mês que vem (acho que finalmente encontrei minha periodicidade ideal). Vai pela sombra e fica na paz de Bowie. 

Com amor & anarquia,

Nathan

Se você chegou aqui através de um link, deve tá pensando: "Como eu assino essa newsletter maneira?". Ora, é só deixar seu e-mail aqui(e fazer a confirmação). E dá pra ler as edições anteriores aqui também. Se não curtiu e tá aqui lendo esta última linha, admiro sua capacidade de autoflagelação.