A primeira vez que ouvi a Rita Oliva tocando com a Papisa, seu projeto, foi em um festival de música em Taubaté. A voz tranquila e o som onírico faziam parecer que eu tava dentro de um templo. Percebi que o Felipe, meu amor, que tava do meu l...
"A realidade não existe, só existe linguagem" | ||
A primeira vez que ouvi a Rita Oliva tocando com a Papisa, seu projeto, foi em um festival de música em Taubaté. A voz tranquila e o som onírico faziam parecer que eu tava dentro de um templo. Percebi que o Felipe, meu amor, que tava do meu lado, não piscava. E aí eu vi uma lagriminha escorrer do rosto dele. | ||
Ele disse que começou a lembrar das mulheres da família dele, e os sentimentos vieram como um tsunami. A emoção saiu pra fora em forma de choro, e as manas da banda continuavam lá dedicadas àquele ritual sonoro, como se a gente tivesse numa cena final de Twin Peaks. | ||
Passei a acompanhar a Rita no instagram (@papisabrisa) e uns meses depois soube que a Papisa ia lançar o primeiro disco de estúdio, o Fenda. Quem tava cuidando da divulgação era a Iza, minha amiga (libriana do mesmo dia que eu e Avril Lavigne). Óbvio que eu pedi pra fazer uma entrevista, e é por isso que a carta de hoje vai ser dedicada a tentar entender que força é essa que a Papisa consegue chamar pra cima do palco quando tá tocando. | ||
O que guarda a mente de alguém que compõe letras que falam "Toda semente guarda/ um universo inteiro na potência"? A Rita responde: | ||
Acho importante que a gente crie nossos próprios símbolos e acesse a espiritualidade de forma íntima, pessoal e com autonomia, porque isso significa reivindicar e retomar o que é nosso, percebendo nossos corpos como templos e deixando de dividir as coisas entre mundano e sagrado, já que tudo deve ser tratado com igual respeito. | ||
Eu sabia que o trabalho da Rita trazia essa tentativa de compreender as coisas desconhecidas do Universo, porque as referências ao tarô são bem evidentes. Mas meu radar de bruxa apitou mesmo quando vi que ela escolheu lançar o disco no Imbolc. É o ponto da Roda do Ano que celebra o ápice do inverno no hemisfério sul. | ||
A Rita diz que conheceu a roda quando ainda tinha uns 9 ou 10 anos e eu fiquei pensando como deve ser bom você ser educado a entender o fluxo da natureza desde pequeno. | ||
Quando possível, busco chamar a atenção para estas datas, também como uma forma de resgatar nossa conexão com a Terra e perceber que somos parte dela, algo que precisamos urgentemente para quem sabe começar a agir de forma menos predatória e mais integrada com o ambiente que nos acolhe, nos alimenta e nos mantém vivos. | ||
O disco traz músicas que remetem a ancestralidade e ao feminino, como em Velha, em que ela canta "Eu sou uma lembrança de outra estrada/ criança você vai me ouvir/ eu sou uma lembrança/ ando sob sua cabeça mesmo que se esqueça/ cê precisa de mim". | ||
Mas é sobre a morte que ela dedicou suas investigações pro disco, como ela canta na música Terra: "Quando a terra chama/ quando a terra chama/ nada te pertence/ nada te acompanha/ quando a terra chama/ quando a terra chama/ quem tava presente/ desce se esparrama". | ||
Agora percebo que tratar a morte com respeito e reverência e entrar em contato com o assunto ao invés de negá-lo me ajudou a lidar melhor com as perdas, além de me lembrar do quão precioso é estar viva. | ||
Se olharmos para a simbologia dos ciclos, vamos perceber que passamos por nascimentos, mortes e renascimentos todos os dias. (...) Quis falar sobre isso porque acredito que se estivermos dispostos a aprender de alguma forma com essas experiências, desmistificar o tabu e perceber a impermanência de tudo, talvez a gente consiga enfrentar o momento da nossa própria morte física e dos nossos próximos de forma mais compassiva e menos aterrorizante. | ||
O que a Rita passa na música dela é justamente o que ela acredita e o que ela vive. E isso ficou evidente quando ela falou sobre as práticas que faz, como a formação com a Cecilia Valentim, A Arte do Ser Cantante, "que explora dimensões do canto além da música, passando por espiritualidade, cognição, emoção, e isso abriu muitos horizontes para mim". | ||
A Rita também participa de um grupo de estudo e prática de Astrologia com o Sérgio Frug, há cerca de quatro anos, e, além disso, ela lê mapa astral. | ||
Apesar de valorizar a autonomia na espiritualidade, minhas práticas cotidianas são orientadas por vivências e filosofias como o budismo tibetano, a cultura celta, a umbanda e a sabedoria dos povos nativos. Sempre que posso faço retiros, vou a templos, ouço os ensinamentos do Lama Padma Samten, Lama Tsering, Pema Chödron, Thich Nhat. É uma grande e eterna pesquisa, e de forma geral, gosto de ouvir professores, mestres e mestras e incorporar o que faz sentido no meu cotidiano. | ||
Me identifiquei bastante com isso. Gosto dessa liberdade de poder estudar o que quiser e absorver só o que faz sentido pra mim. Às vezes, esses estudos nem tem relação com nada espiritual. A Rita resume seus pequenos rituais em três pilares: meditação, alimentação e exercício físico. | ||
Pratico meditação regularmente e isso me ajuda muito em vários sentidos, como lidar com a ansiedade, por exemplo. Para quem nunca meditou, recomendo o vídeo do Lama Padma Samten chamado 'Para começar a meditar', no Youtube, em que ele esclarece o assunto de forma simples e desvinculada de religião. Alguns minutos por dia já ajudam a conectar com o momento presente e lidar melhor com o fluxo de pensamentos. | ||
A Rita também fez retiros com a inglesa Jill Purce, onde entrou em contato com o canto dos harmônicos, e eu fiquei impressionado em como, de fato, a voz é um instrumento poderoso para transcender. | ||
Me fez lembrar da ideia de três corpos do povo Tupi, que eu vinessa entrevista com o Kaká Werá. | ||
Ele diz que, para os Tupi, nós temos um corpo físico, um espiritual e um sonoro. Esse último é quem faz a ligação entre os três. Pude sentir isso uma vez, durante um rito de ayahuasca, em que eu tava passando por um momento difícil e chorava demais. Aos poucos, percebi que o meu choro tava mais pra um lamento, e quanto mais eu ouvia ele, mais eu me acalmava, formando um ciclo estranhíssimo em que a minha calma dependia do meu desespero (do som do meu choro). Até que tudo se equilibrou. Senti mesmo que meu corpo físico acessava o espiritual através da vibração da minha voz. | ||
Acho que é parecido com o que os mantras fazem. Não é difícil eu sair meio tonto depois de mantrar um japamala inteiro, que é aquele terço de 108 contas. | ||
Acho que ouvir a Papisa é justamente fazer essa conexão entre todos os nossos corpos. | ||
O oráculo do Bowie, um conselho pra semana: | ||
Um dia, durante uma roda de estudos, o pessoal abriu uma roda de rapé, uma medicina indígena que é assoprada no nariz. A medicina é forte, pode causar mal estar. Naquele momento, senti que aquele seria um sopro difícil pra mim, mas quis tentar mesmo assim. | ||
Respirei fundo e fiquei me preparando pro pior. Aí me veio essa ideia de que aquele não precisava ser um sopro difícil. Se eu ficasse mais tranquilo pra receber o sopro sem projetar como ele seria, o processo seria mais fácil. Me toquei de que eu tinha esse mesmo comportamento em várias situações da vida: ficava esperando pelo pior. Mas e se eu aceitasse isso como uma simples etapa? Não como um desafio duro, mas como algo que eu poderia passar tranquilamente. | ||
O Quatro de Copas doStarman Tarot, que traz uma figura atormentada pelos pensamentos, é exatamente sobre isso. O Angelis cita um exemplo de que quando a gente entende e aceita que a vida é uma parada difícil pra porra, essa dificuldade toda se dissolve. "Através do processo de ver claramente e aceitar, nós transcendemos isso, e a dificuldade deixa de importar." E ele segue: | ||
Frequentemente, nós agimos como se a vida nos atormentasse de propósito, trabalhando contra a gente, nos incitando e nos fazendo culpar os outros pelas circunstâncias em que a gente se encontra. Ao nos sentirmos vitimizados, nós nos punimos por não sermos bons o suficiente. | ||
Os cálices que despejam um "miséria sombria" na cabeça da figura da carta são os mesmos que podem despejar o "elixir dourado da vida". Como diz o Angelis, citando Sócrates, "se o que você experimenta como 'você' não é satisfatório, isso claramente não é 'você'". | ||
Essa semana o Felipe Almeida me mandou uma dica de série, One Strange Rock, que eu tô doido pra ver, e também deixou uma mensagem que me deixou bem feliz: | ||
Tô curtindo bastante a PunkYoga! Acho massa essa pegada “intimista”. Tanto que às vezes leio e “ouço” você falando (como num dos teus stories do insta). | ||
Engraçado que é isso mesmo que eu tento. Acho que essas newsletters me permitem escrever de uma forma que eu não escreveria em outros lugares, e isso me traz uma ideia de liberdade muito grande. | ||
Mais uma vez, muito obrigado aos guerreiros e guerreiras que chegaram ao rodapé de mais uma carta. Eu sinto que esses estudos fazem mais sentido quando eu compartilho eles de alguma forma. | ||
Se quiser continuar o papo ou só dar um "oi", é só responder esse e-mail, ou me encontrar lá no Insta ou no Twitter. | ||
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie. | ||
Com amor, | ||
Nathan | ||
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