#9 - o caso flávio de 61
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#9 - o caso flávio de 61

“É a escolha divina. Ele fez você do jeito que você é. Eu sou do jeito que ele me quer.”

Fred Fagundes
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<i>&nbsp;Foto: Francine Orr / Los Angeles Times</i>
 Foto: Francine Orr / Los Angeles Times

#9 - o caso flávio de 61

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Transcrição do episódio:       

Há poucos dias uma visita de um agente da CIA ao Brasil causou breve alvoroço entre políticos e imprensa. Eu digo breve alvoroço porque a repercussão foi bem menor do que deveria. A visita de um representante do país que mais influencia eleições no mundo aconteceu de modo nada transparente. Apenas o bom congressista Glauber Braga, do Psol RJ, cobrou uma explicação. E ainda não teve respostas. 

E por que é tão importante assim entender o que um agente da CIA faz no Brasil. Bom, as intervenções desestabilizadoras no Brasil por parte dos Estados Unidos são de amplo conhecimento. Não só no Brasil, mas em toda a América Latina e há décadas. 

Influência americana em eleições locais, controle da imprensa e outras estratégias até menos discretas, como o financiamento de grupos paramilitares são atos que se repetem no nosso continente. Atos esses, inclusive, que têm grande papel na obscura construção da história da política moderna do Brasil. E uma das ferramentas mais utilizadas foi algo que eles dominam como poucos: o cinema e a publicidade. 

O grande símbolo midiático desse interesse se chama Zé Carioca. Ele foi criado pelo Wall Disney em 1942 basicamente sob encomenda do governo americano, que buscava uma aproximação do mercado e cultura latino americana durante a segunda guerra. Tanto que o Gauchinho Voador, um personagem argentino mas menos popular, foi criado no mesmo período. E Disney não foi o único. Orson Welles foi também convocado, no mesmo ano, para fazer um filme sobre o Rio de Janeiro, numa maneira de criar laços políticos entre as nações. Acontece que Wells veio bem no meio do carnaval, ficou chapado de lança perfume, o longa estourou o orçamento e produção foi cancelada. 

A partir daqui, fazemos uma viagem no tempo do fim da segunda guerra para o início dos anos 60. Ah, os anos 60. O Brasil ia nada, nada mal. A euforia do título mundial de 58 ainda era vibrante. Havia uma cultura lírica de otimismo pelas ruas. Na política, João Goulart, o primeiro presidente trabalhista da nossa história prometia um plano ousado que envolvia as reformas fiscal, urbana e agrária. Essa última, com a meta de promover a democratização da terra, paralelamente à promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural, estendendo ao campo os principais direitos dos trabalhadores urbanos. Bom, né? Bom pra vocês, brasileiros, que pros Estados Unidos isso tinha nome: coisa de comunista. 

Os Estados Unidos haviam recém cortado relações com Cuba. A Crise dos Mísseis, em 62, relacionado com a implantação de mísseis soviéticos em Cuba, estremeceu ainda mais a relação dos imperialistas com a ilha. O presidente americano John Kennedy  enviou uma carta à Goulart propondo a participação dos militares brasileiros na possível invasão à Cuba. Em resposta, Jango demonstrou-se contrário, afirmando que o país se opunha a este plano e era a favor da autodeterminação dos povos. "nunca reconheceremos a guerra como instrumento capaz de resolver conflitos entre nações", disse. E ainda enviou uma carta à Fidel Castro com as mesmas preocupações do governo estadunidense, mas se colocando contra a invasão. Com essa posição, Kennedy passou a desenvolver uma hostilidade pessoal contra Goulart e passou a acreditar que o presidente brasileiro era uma ameaça contra a segurança dos Estados Unidos. O que resultou, vocês sabem, no apoio americano ao golpe de 64.

É tênue essa linha entre inimizade e preocupação. No que envolve geopolítica, mais ainda. As proporções continentais e as ações consideradas populistas de João Goulart sempre mantiveram o Brasil em alerta por parte da Casa Branca. E se durante a segunda guerra o simpático Zé Carioca foi o símbolo da tentativa de aproximação, em 61 a alternativa foi bem menos divertida. Também com o Rio de Janeiro como plano de fundo, mas mostrando o oposto da alegria. No caso, a miséria.

Eu vou falar pra você sobre o "Caso Flávio", que protagonizou um embate enorme entre as principais revistas do Brasil naquele tempo. Uma reportagem publicada na “Life” em 61, assinada pelo fotógrafo norte-americano Gordon Parks (1912–2006), registrou as dificuldades enfrentadas por uma família de migrantes nordestinos na favela da Catacumba. O destaque foi para o filho mais velho, Flávio da Silva, que sofria de uma asma severa.

<i>Foto: J. Paul Getty Museum / Gordon Parks Foundation</i>
Foto: J. Paul Getty Museum / Gordon Parks Foundation

O título era o seguinte: “O terrível inimigo da liberdade: a pobreza”. E as fotos eram de partir o coração. A reportagem foi impulsionada nos Estados Unidos e causou grande comoção. Gerou, inclusive, uma campanha de doações entre os leitores da revista, que possibilitou à família a compra de uma casa e o tratamento do menino no exterior.

No Brasil, isso pegou muito, mas muito mal. Gerou uma enorme revolta não exatamente política, mas nacionalista. Rapidamente, a revista Cruzeiro se movimentou para dar o troco. E ele veio no melhor estilo. Um funcionário da revista foi até Nova York e fez a seguinte foto reportagem: "O repórter Henri Ballot descobre em Nova York um novo recorde americano: miséria". A reportagem traz o precário cotidiano dos oito integrantes da família Gonzalez, de origem porto-riquenha, que viviam num pequeno apartamento de uma área degradada de Manhattan.

<i>Foto: Henri Ballot / Instituto Moreira Salles Collections</i>
Foto: Henri Ballot / Instituto Moreira Salles Collections

Esta maravilhosa disputa de narrativas contextualiza muito bem essa ferramenta de comunicação dos americanos. A Life, inclusive, sempre foi Kennedista, se é que existe esse termo. Dois anos antes eles chegaram a publicar uma reportagem sobre os riscos da ascensão socialista em Cuba com relatos das Ligas Camponesas do Brasil, que teve papel fundamental na luta pela reforma agrária já na década de 50.

E o Flávio da Silva, um dos personagens mais importantes desse embate? Ele tem 71 anos e há 2 anos concedeu uma entrevista ao Los Angeles Time. Disse que foi feliz no tempo que morou nos Estados Unidos e fez o tratamento. Quando voltou, 15 anos depois, trabalhou em restaurantes, limpeza, construção, um bico como segurança, funções clássicas do trabalho informal. 

Perguntado pela jornalista americana como ele se sente sobre tratar continuamente esse momento de sua vida, Flávio não deu muita atenção para a pergunta. E respondeu: 

“É a escolha divina. Ele fez você do jeito que você é. Eu sou do jeito que ele me quer.”

A real é que Flávio foi só uma ferramenta de exploração e propaganda política imperialista. Mas não por acaso. Assim como tantas outros. Inclusive o desgraçado do Zé Carioca.

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Sobre o autor: Fred Fagundes é jornalista, produtor de podcasts e dono das melhores vagas em estacionamentos. Em caso dúvidas ou sugestões, entre em contato via redes sociais ou pelo e-mail: qmat.podcast@gmail.com.