Quando da morte de Olavo
de Carvalho, Victor Bruno – cujo nome eu conhecia por ter lido um artigo seu
sobre a filosofia política de Olavo – realizou uma live na qual faz referência
a mim. Pelo que entendi, em outras oportunidades teria feito críticas às
edições de cursos de Olavo cujos textos foram preparados por mim e editados
pela Vide. Não sei quais foram as críticas, mas sei o que eu mesmo considero
problemático em pelo menos um desses livros. Como Victor parecia alguém de fato interessado
na edição da obra de Olavo, e falava por interesse sincero, e como o assunto
interessará a bem mais gente, resolvi fazer este relato.
Em 2019, recebi um e-mail
de Mariana Reis, que à época assessorava Olavo. Este, dizia ela, me pedia que
preparasse o texto do curso Edmund
Husserl contra o Psicologismo: preleções informais em torno de uma leitura da
Introdução às Investigações Lógicas. A sugestão de meu nome teria por
motivo talvez nem tanto o meu livro Conhecimento
por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho, que, então
inédito, eu havia remetido a Olavo, e mais o fato de que em 2012 eu preparara o
texto do curso “Filosofia da Ciência I” e das aulas 6 a 10 do Curso On-line de
Filosofia. Esse material nunca foi publicado, mas Olavo à época pediu a Silvio
Grimaldo que me passasse “seus cumprimentos pela edição”; faltaria ajeitar
alguma coisa, mas ele estava muito feliz porque “finalmente alguém compreendeu
o que é para fazer com as suas aulas” (teriam sido palavras do próprio Olavo).
A razão de todo esse material ter permanecido inédito, parece, é que o autor
considerava necessário fazer o óbvio: lhes dar o acabamento que considerasse
mais desejável. Porém, disperso por outras ocupações, acabou nunca o fazendo.
Embora ciente dos riscos
que comportava, aceitei o trabalho com o Edmund
Husserl, porém logo avisando que não poderia se tratar de simples “revisão”
de um caótico arquivo Word de 800 páginas: disse à Mariana que “o trabalho de
que as Preleções precisam não é apenas de revisão, e sim de ‘preparação de
original’ (copidesque, como se chamava antigamente). Em incontáveis passagens o
texto precisa ser inteiramente refundido”. Recebi sinal verde de Olavo. Aliás,
vale dizer que o serviço foi contratado por Olavo, não pela Vide.
Em janeiro de 2020, após
entregar a última leva de textos do livro, escrevi em novo e-mail à Mariana: “Por
favor, transmita ao Olavo a seguinte mensagem: eu, bem como todos os seus
alunos e leitores, nos beneficiaríamos muito da dedicação dele a esse escrito,
que, se trabalhado só mais um pouquinho, seria por si só suficiente para fazer
a glória de um filósofo. Tenho grande esperança de que ele se lance de imediato
à sua leitura e faça as correções e desenvolvimentos que achar necessários.”
Mais uma vez, não foi o
que aconteceu.
Uma semana antes de o
livro ir para a gráfica, quando eu já nem me preocupava mais com o assunto, sou
informado de que Olavo não só não havia trabalhado sobre o meu texto, como não o havia sequer lido. Isso mesmo: mandara publicar um texto com o seu nome que ele
próprio não havia lido. Comuniquei isso à equipe de edição da Vide, a qual também não estava ciente do fato.
Pedi mais uma semana para fazer pelo menos uma última e apressada leitura do
livro, a fim de sanar quaisquer defeitos mais graves. Tranquilizaram-me,
disseram-me que o texto estava aceitável. Deixei pra lá.
O livro impresso chegou
às minhas mãos como um infarto que chegasse ao meu peito. Havia problemas de
variada ordem com o texto, ainda que se tratasse de obra perfeitamente legível.
Não entrarei em detalhes. Basta dizer que, ainda em 2020 (ano do lançamento), fiz algo em torno de 300 a 400
emendas no miolo, passando-as em seguida a um arquivo PDF entregue ao editor
Thomaz Perroni. Essas alterações serão incorporadas a uma reimpressão do
livro programada para breve. Tenho certeza de que, se eu mesmo o relesse neste instante, ainda
acharia muita coisa a melhorar.
Em alguma medida, a lição
foi aprendida. Os textos de Mário
Ferreira dos Santos: guia para o estudo de sua obra (2020), Introdução à filosofia de Louis Lavelle (2021), A consciência de imortalidade (2021) e O
saber e o enigma: introdução ao estudo dos esoterismos (2022) saíram bem mais a
contento pelo fato de Mariana Reis ter conseguido lê-los em voz alta para
Olavo, fazendo as correções e melhorias que ele ditasse no momento. Nunca tive
coragem de reler nenhum desses títulos na íntegra; contudo, arrisco dizer que o
melhor preparado seja o Louis Lavelle,
que gozou, acredito, de maior simpatia de Olavo, a ponto de ele ter escrito uma
“Nota prévia e agradecimentos do autor”. Para nenhum outro desses volumes escreveu
texto de natureza similar.
Não reivindico maiores méritos; mas afirmo que quem se der ao trabalho de ouvir um desses cursos por inteiro, ao mesmo tempo o comparando com o registro escrito que lhe dei, terá uma ideia de quanto trabalho houve na reordenação e síntese de centenas de páginas, na estruturação de argumentos eivados de coloquialismo e na divisão didática em seções e subseções. Olavo foi um expositor luminoso, mas raramente a ordem expositiva de sua fala – repleta de excursos, os quais muitas vezes
rivalizavam em extensão com os argumentos principais – se prestava a ser
reproduzida ipsis litteris no papel sem maior dano, fosse à qualidade da prosa, fosse à qualidade
da filosofia.
A moral da história, em resumo, é
esta: os livros que preparei a
partir de cursos de Olavo não foram pensados como textos finais; seriam, na
verdade, apenas textos-base sobre os quais Olavo trabalharia, poupando-lhe a
empreitada desgraçadamente desprazerosa de debruçar-se sobre transcrições de
cursos demasiado brutas (muita coisa não estava sequer transcrita, o que me
forçou a ir direto aos áudios e vídeos muitas vezes). O trabalho que a Vide Editorial realizou
não foi o de publicar de qualquer jeito a obra de um autor, como Victor Bruno
insinua ao fazer uma comparação absurda com alguns livros de Mário Ferreira dos
Santos editados pela É Realizações. Mário Ferreira morreu há muitas décadas e
nada poderia fazer pelos seus livros hoje. Ao contrário, até outro dia Olavo
estava vivo e havia indicado gente para auxiliá-lo no preparo de suas obras. Em
seguida, cedeu os direitos destas a uma editora, a Vide. A Vide publicou o que
o autor Olavo de Carvalho considerava que deveria ser publicado (ainda que certamente tenha havido falhas no caso de Edmund Husserl). Na "Nota prévia" já mencionada, Olavo externa sua opção de publicar uma "série de aulas transcritas" com "intuito documental e nenhuma pretensão literária". Era, equivocada ou não, a vontade dele. Ponto. Seria de se esperar coisa
bem distinta se uma equipe estivesse estabelecendo, inteiramente por sua
conta, o texto da obra de um autor – que é o que provavelmente passará a
acontecer daqui para a frente.
Esta é a história da
edição de alguns livros de Olavo de Carvalho, pelo menos no que me diz
respeito. Espero que seja de utilidade àqueles que futuramente se dedicarão ao
estabelecimento de uma coleção de obras desse autor fundamental que não pôde – ou não quis
– estabelecer ele próprio uma parte significativa delas. Ajudo no que mais puder.