O ano é 2005. Você liga a TV, tem um jogo passando: Milan x Inter. "Esse vai ser dos bons", você pensa. De um lado, Adriano e Figo tentando passar de Maldini e Nesta. Do outro, Kaká e Shevchenko tentam superar Materazzi e Córdoba. No meio cam...
O ano é 2005. Você liga a TV, tem um jogo passando: Milan x Inter. "Esse vai ser dos bons", você pensa. De um lado, Adriano e Figo tentando passar de Maldini e Nesta. Do outro, Kaká e Shevchenko tentam superar Materazzi e Córdoba. No meio campo Pirlo, Cambiasso, Verón, Seedorf e Gattuso brigavam pelo controle do jogo. No gol, duelo brasileiro: Dida x Júlio César. Um dia, esse jogo aconteceu. Basta ler os nomes e parece que foi um jogão, né? | ||
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Se achou pouco, só na Itália ainda tinha a Roma com o eterno Totti e a Juventus com Ibrahimovic, Buffon, Cannavaro e Nedved. Na Espanha, os Galáticos do Real Madrid duelavam com Ronaldinho, Deco, Xavi e Eto'o em El Clasicos memoráveis. Enquanto isso, na Inglaterra, o Arsenal de Thierry Henry brigava com o Chelsea de Lampard pelo domínio de Londres e os jovens Cristiano Ronaldo e Wayne Rooney começavam a aparecer pro mundo no Manchester United. Vou parar por aqui, mas poderia falar de vários outros times. | ||
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Há 16 anos, esse era o cenário do futebol europeu. Todos os times grandes tinham pelo menos um craque, pelo menos um cara que valia a pena parar pra assistir. Era muito talento. A expectativa de testemunhar algo incrível era constante. No Brasil, o campeonato já não era tão recheado de estrelas como nos anos 90 mas ainda era uma constelação e tanto. Tínhamos Romário, Tévez, Petkovic, Nilmar, Alex e ainda o time do São Paulo que seria campeão mundial no fim do ano. | ||
O futebol pelo qual nos apaixonamos não existe mais. O esporte que nos viciou pela emoção, pelos lances maravilhosos, pela festa única da torcida e pela diversão, acabou. Há quem enxergue tal fato como algo positivo: "o futebol evoluiu", bradam alguns, creio eu sem pensar na diferença entre evolução e as inevitáveis mudanças que o futebol sofreria devido a evoluções do mundo como um todo. | ||
A evolução da tecnologia e da ciência nas mais diversas áreas iria chegar ao futebol uma hora ou outra, e isso obviamente mudaria a dinâmica do jogo. Na década de 70, um jogador profissional de futebol corria, em média, entre 4 e 7 km em uma partida. Hoje, com a evolução da preparação física, da medicina, da fisiologia etc., um jogador percorre, em média, 9 a 11 km por jogo. Lesões que demoravam para serem tratadas hoje são curadas em pouquíssimo tempo. Os uniformes - das meias às camisas -, as bolas e o gramado são minunciosamente projetados para o melhor desempenho. | ||
"Você está dizendo que isso é ruim?" Não, isso é ótimo! Isso permite que possamos desfrutar dos jogadores que gostamos por mais tempo. Hoje, com dedicação, qualquer jogador consegue jogar até perto dos 40 anos de idade. Imagine se Pelé tivesse toda essa tecnologia ao seu lado, quantos gols mais será que ele faria? Com a medicina e a tecnologia de hoje, talvez ele não perdesse duas Copas por lesão, inclusive. Talvez Zico e Van Basten pudessem jogar em alto nível por mais tempo e Ronaldo Fenômeno não tivesse perdido três anos de carreira por conta de problemas no joelho. Enfim, é ótimo. | ||
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O problema é o que essa evolução desencadeou. Com o passar dos anos, o jogo foi ficando mais rápido, mais físico e mais compacto. Os campos foram reduzidos e ao mesmo tempo a distância que um jogador percorre em uma partida foi só aumentando. Ou seja, passaram a correr mais em um espaço menor. Contraditório, não? | ||
Como resultado, a técnica foi saindo de cena dando lugar ao físico. Jogadores tecnicamente limitados passaram a ser mais valorizados pois corriam mais que os outros ou eram mais fortes. Contudo, faz sentido. Hoje, com a febre da compactação, seis, sete jogadores brigam pela posse da bola em um espaço de vinte, trinta metros, e nesse cenário é natural que a força e a velocidade se sobreponham à técnica. Pensar com a bola no pé se tornou quase impossível. | ||
E se não dá pra pensar, qual a solução? Automatizar, mecanizar. A tática passou a ter uma importância maior e todos os movimentos no campo passaram a ser treinados para que não se precise mais pensar com a bola. Recebe na posição X e toca pra posição Y, alguém tem que estar lá. A liberdade dos jogadores foi sendo tirada num ritmo impressionante. | ||
Algo que claramente reforça essa situação é a escassez do famoso "camisa 10 clássico". É raríssimo, hoje em dia, achar times que joguem com esse tipo de jogador, o cérebro do time, o jogador mais técnico do elenco, capaz de tirar um coelho da cartola a qualquer momento. Um passe genial, um drible desconcertante, um chute inesperado do meio da rua. Esses caras não existem mais, foram engolidos pelos "motorzinhos", jogadores que são quase onipresentes, capazes de cobrir o campo todo, mas que com a bola no pé não se comparam ao 10 - ou ao 8 - clássico. | ||
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Procure na internet um vídeo dos dribles do Garrincha e veja os comentários. Vai ter muita gente elogiando, mas é incrível a quantidade de gente falando coisas tipo "também, olha o espaço que ele tinha" ou "queria ver fazer isso hoje em dia". Se ele faria ou não, jamais saberemos - eu acredito que sim pois gênios são gênios, são atemporais -, mas a questão não é essa. A questão é: era melhor assistir Garrincha constrangendo seus marcadores ou um "ponta moderno" de hoje, que só sabe marcar o lateral adversário e cruzar da linha de fundo? | ||
Futebol não é só drible, claro, mas é essa parte lúdica do jogo que cativa e apaixona. Dribles, arrancadas, golaços, passes geniais. Esse é o tipo de coisa que marca as pessoas. Ninguém se apaixona por um time por que ele joga no 4-3-3 e não no 3-5-2 e ninguém vira fã de um jogador baseado em quantos quilômetros ele percorre por jogo. Porém só podemos imaginar quantas pessoas viraram flamenguistas após assistirem Zico fazer mágica no Maracanã, ou quantos passaram a torcer para o Barcelona após verem Ronaldo Fenômeno pulverizar seus marcadores com arrancadas impressionantes. | ||
Um exemplo perfeito disso é Ronaldinho Gaúcho, que provavelmente é o jogador mais amado da história. Não há um fã de futebol que não o reverencie. Seu período no Barcelona fez muita, muita, muita gente se apaixonar não só por ele ou pelo time catalão, mas pelo jogo em si. Dirigentes antigos já declararam que foi o Bruxo que mudou o patamar do clube, mesmo tendo vencido "só" uma Champions League e duas edições da La Liga. Fica evidente que, por mais que sejam importantes, troféus não são tudo. Há coisas que marcam mais. | ||
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Hoje, a técnica deu lugar ao físico, o improviso deu lugar a táticas rígidas e robotizadas. Com isso, o futebol vai ficando cada vez mais chato de assistir. Até jogos entre os maiores clubes europeus são chatos, em sua maioria. Me lembro de uma vez que jogaram Juventus e Inter pela Copa da Itália e o resultado foi um horroroso 0 a 0. Entro em um site de esportes e eis a manchete: "Em grande duelo tático, Juventus e Inter empatam em 0 a 0". Quem assiste um jogo de mata-mata entre dois gigantes pra ver duelo tático? Me poupe, só jornalista mesmo. Mas é compreensível, precisam falar de tática já que na parte técnica não há nada. | ||
"Ah, mas é preciso falar de tática, o futebol evoluiu!". Por favor, colega, eu só quero sentar no meu sofá, abrir uma cerveja e me divertir(!). Sou um mero fã querendo me entreter às 21h de uma quarta-feira. | ||
E se a diversão assistindo pela TV é rara, a diversão assistindo no estádio vai diminuindo ano após ano também. Não pode bandeira, não pode papel picado, não pode sinalizador, não pode nada. Até em jogo de Série B os times entram juntos - como se fosse Copa do Mundo -, o que não permite que o torcedor nem ao menos vibre com a entrada do seu time em campo e vaie a entrada do time adversário. A festa que era um jogo de futebol vai sendo minada pouco a pouco. O único motivo plausível para se ir a um estádio é - pasmem - torcer. E não, não foi sempre assim. Ir assistir a um jogo aleatório no estádio sempre foi um programa comum, justamente porque a festa compensava. | ||
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Fato é que o futebol vem perdendo muitos de seus atrativos. Em um mundo com centenas de formas de se entreter na palma da sua mão, o futebol só perde espaço, inclusive entre outros esportes. Convencer uma criança a assistir a um jogo de futebol fica a cada dia mais difícil, afinal, por que assistir a 90 minutos de um jogo chato se ela pode ligar seu computador e ter em instantes os mais variados jogos, filmes, séries e animes para passar o tempo? | ||
Até para nós, adultos, é difícil. Tenho certeza que a maioria assiste aos jogos dividindo a atenção entre TV e celular, inclusive em jogos do time de coração. Muitas vezes acompanhar em tempo real as discussões e os memes no Twitter - sobre o jogo que você está assistindo -, vem se tornando mais legal do que o jogo em si. | ||
O futebol mudou, isso é fato. Mas evoluiu? Melhorou? Creio que não, pelo menos nas áreas mais importantes, as áreas que mantinham o público cativo. Algo precisa ser feito ou, em um futuro não tão distante, um Brasil x Argentina vai ter menos apelo que uma edição do Jornal Nacional. Mas se esse dia chegar, já vai ser tarde demais. |