Parte I:
Salvador, vinte e oito de abril de 2015 | ||
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Encostei suavemente os dedos na lateral do seu rosto, contornei o maxilar, desci pelo pescoço centímetro por centímetro, cheguei ao colo; ah o colo... | ||
Aos poucos o toque perdeu suavidade e ganhou força, no âmbito dos seus seios, minhas mãos passearam intensamente. Coração acelerado, rosto febril, pupilas dilatadas. Cada célula, tecido, órgão, fluido; alarmava, pulsava vida. Estava ali diante daquela mulher, inteiro, indiviso. Finalmente meus lábios tocariam os dela... | ||
O sol tocou meu rosto. Com apenas um olho aberto, constatei que estava atrasadíssimo! | ||
Do Curuzu até Itapuã e um dia todo sem o sorriso dela, horas e horas devolutas. De Itapuã até o Curuzu e só então poderia sentar-me de frente para a janela e esperá-la descer a velha ladeirinha... | ||
Há dois anos "herdei" este emprego de porteiro do meu primo mais velho Aloysio Viana. Loy, como a família o chamava desde garoto, veio a falecer num acidente de moto na Boca do Rio. Ainda no velório, tia Margarida olhou-me com urgência e fez um gesto com as mãos indicando que queria falar comigo. | ||
Eu que passara os primeiros vinte minutos esquivando-me de oferecer à titia minhas condolências, agora fora intimado, e a menos que sofresse um piripaque até cruzar a sala fúnebre, não poderia mais escapar. | ||
Quando me aproximei, tia Margarida, colocou suas mãos em meus braços com certa força. Cravou seus olhos negros em mim e antes que pudesse lhe dizer algo, ela o fez: | ||
_ Filho, pela manhã falei com o síndico do prédio pra botar você no lugar de Loy... | ||
Tia Margarida é uma mulher de espírito prático, capaz de num momento de padecimento resolver pendências. Há cinco anos, por ocasião da morte do marido, Tia Margarida vendeu a casa em Lauro de Freitas, tendo inclusive lavrado escritura no sétimo dia como viúva. Tanto pragmatismo causa-me ao mesmo tempo, susto e inveja. | ||
Uns choram, outros se enraivecem, ainda outros indagam aos céus... Tia Margarida trata de negócios! | ||
Devo admitir que aceitei o emprego pela necessidade financeira. Porém, o gesto de titia no velório, me pareceu uma missão. Intuí pretensiosamente, que ao aceitar tal incumbência, estaria abrandando sua dor. | ||
Pois bem, cá estou. Aqui na portaria, costumo dizer que sou um "esticador de tempo". Quem diz que o tempo passa rápido, certamente nunca foi porteiro. | ||
Sou também um "imaginador compulsivo". A matéria de meus ensaios mentais, não é outra senão a moça que desce apressada a ladeirinha. | ||
É aqui também que, com um esmero vaidoso, preencho as linhas deste diário, ainda me sobrando algum tempo, leio; quase sempre os clássicos. | ||
A respeito destes dois últimos fatos, sinto-me compelido a acrescentar algumas informações... | ||
Esmero Vaidoso | ||
Tenho cá comigo uma teoria: diários existem para duas finalidades | ||
Continua... |