Parte II:
... (talvez mais de duas, tantas quantas desejar o escritor, visto que é senhor de suas linhas, mas se há de ser uma teoria que se preze, precisa ser sintetizada, uma espécie de tese e antítese, portanto, resumo em duas, as finalidades de um diário) contendo ambas, um elemento em comum; a efusão de sentimentos. | ||
O que difere as intenções, no entanto, é possibilidade de haver leitores. | ||
No primeiro caso, o escritor de um diário o faz para extravasar sentimentos, alinhar pensamentos, ser compreendido por si mesmo. Não se preocupa com a caligrafia, gramática; escreve, fecha a caderneta e se por algum motivo, tempos depois recorre ao velho diário e lê tais garranchos inflamados, desarrazoados, se envergonha e se desfaz do registro. | ||
No segundo caso, também o faz para aliviar sentimentos, porém, nota-se esmero na caligrafia, há também desvelo na construção das frases e cuidado com a gramática. Todavia, o que mais o denuncia, é o "tom". Ele escreve para um leitor. | ||
Ao reler o cuidadoso registro, se envaidece, e anseia o dia em que alguém poderá ler, chega a passar por sua mente que havendo qualquer importância histórica ou qualidade literária, poderia ser publicado, ainda que póstumo. | ||
"Os clássicos" | ||
Basta de teorias e vamos a como cheguei a amar "os clássicos". | ||
Meados de 1986, tinha acabado de completar cinco anos de idade. Os tempos eram difíceis, tínhamos uma televisão velha doada pelo chefe de meu pai que do nada apagava e do nada voltava a funcionar. Um dia apagou, e nem com reza brava tornou a ligar. Desde o ocorrido, não passei um dia sem importunar o velho: | ||
_ Já consertou a televisão, meu pai? | ||
_ Pra semana, filho, pra semana... | ||
Ao cabo de alguns meses, perdi as esperanças e já não o indagava a respeito da televisão, porém, a ausência das perguntas e a profunda tristeza que trazia nos olhos, fizeram meu pai tomar ação. | ||
Permanecemos sem televisão, mas chegou em casa uma pequena caixa de papelão. O que estava dentro daquela caixa traria bem mais que a distração imediata que eu tanto desejava. | ||
Dentro da caixa, alguns livros velhos doados por Sr. Edgar Macedo, um amigo da família, proprietário de um Sebo no Pelourinho. Para mim, na época, eram "os livros que painho trouxe". | ||
Nem sempre os lia, muitas vezes apenas olhava as figuras, as letras, alisava a capa, contornava com o dedo o título do livro, ou simplesmente carregava-os debaixo do braço; como um escravo carrega sua carta de alforria. Para onde quer que fosse, dentro ou fora da casa, lá estava eu, com um dos livros nas mãos. | ||
O tempo corria e os livros não eram mais uma extensão do meu corpo, agora se espalhavam pelo banheiro, entre as cobertas, em cima da geladeira... | ||
Reli aqueles livros tantas vezes que perdi a conta. Num dado momento, eles deixaram de ser "os livros que painho trouxe" para serem o que de fato eram: "O corcunda de Notre-Dame", "Os trabalhadores do mar", "Os três Mosqueteiros", "O máscara de ferro", "A ilha misteriosa", "Sonhos de uma noite de verão"... | ||
Sr. Edgar ficara contentíssimo com minha devoção aos livros e de tempos em tempos mandava uma nova caixa, com livros escolhidos a dedo. Depois da caixa que continha "Dom Casmurro", "Mensagem" e "Hamlet", "eis que os céus se abriram"; tinha diante de mim um ministério a cumprir dentro dos três gêneros da literatura, entretanto, levaria bem mais que três anos e meio para completá-lo, e certamente não teria via crúcis. | ||
Depois de um tempo Sr. Edgar não mais enviava as caixas. Toda segunda-feira, eu é que ia até o Sebo. A visita nunca era breve, não raro, passava a tarde toda na velha livraria conversando sobre os clássicos. Em nome do afeto cada vez mais crescente, até tentávamos falar de assuntos pessoais ou corriqueiros, mas sem sucesso. | ||
Alguns livros sugeridos por mim eram prontamente negados. Aos dezessete anos sugeri "Crime e Castigo"... | ||
_ Você não está preparado para os Russos. | ||
Disse Sr. Edgar com sorriso de canto e um brilho nos olhos. | ||
_ Mas li Shakespeare, aos seis anos de idade... Retruquei sem pensar | ||
_ Você leu "Sonho de uma noite de verão", não entendeu quase nada e antes que pergunte por que o coloquei na caixa, digo logo que foi por astúcia. Enquanto as fadas e elfos te entretinham, as palavras do dramaturgo faziam um exímio trabalho nos bastidores e entravam bem aqui. | ||
Disse ele apontando para meu o peito. | ||
_Digo com toda sinceridade, meu filho, a tática deu certo, a ponto de você, hoje, em vez de estar "atrás de bola" ou "rabo de saia", vir até um velho pedir "Crime e Castigo". | ||
Concluiu meu querido tutor. | ||
Alguns anos depois, tive enfim "permissão" para ler Dostoievski, primeiro, sonhando e me apaixonando por Nástienka, depois me viciando e tornando a me apaixonar, dessa vez, por Paulina Alexandrovna. | ||
Já dizia "o bruxo do Cosme Velho" que "livros relidos são livros eternos", pois bem, lia o livro, acabava a leitura e voltava a lê-lo, o único detalhe curioso é que o fazia em seguida. Essa prática, somada às obrigações da vida adulta que me eram cada vez mais presentes, tardaram minha chegada às aflições de consciência de Raskólnikov. | ||
Lembro-me com frescor do dia que Sr. Edgar entregou-me o livro solicitado dez anos antes, e recusado por falta de madureza etária e literária. | ||
O livro não era do Sebo, era novo e de uma edição especial, muito bonito por sinal. Estava embrulhado num papel de seda turquesa e amarrado com duas fitas azuis mais claras. Sr. Edgar olhou-me com ainda mais ternura que de costume e disse: | ||
_ Espero estar vivo quando você acabar de ler. | ||
No momento achei graça, Sr. Edgar sempre fora muito espirituoso e pensei que fizera troça do meu hábito de ler pausadamente e reler em seguida, ainda mais se tratando de um calhamaço. | ||
Antes de concluir a leitura do livro, voltei ao Sebo muitas segundas-feiras, as conversas eram tão alegres e eruptivas que nada notei na saúde de Sr. Edgar. | ||
Continua... |