Neg-ócio
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Neg-ócio

O Covid me deixou trancada dentro de casa por duas semanas. Daqueles dias estranhos talvez nasça algo, mas hoje quero falar do dia seguinte ao Covid, e da curiosa sensação de voltar às ruas.

Gisele Lance
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As pessoas numa avenida são tão urgentes.

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Estão indo pegar o filho na escola ou quem sabe, um "lugar no futuro". Estão em busca do boleto quitado, de um "sono tranquilo"...

Os passos não vacilam, têm rumo certo e um horário já excedido pela falta de pontualidade comum a quem nasce por essas bandas.

Olhos olham, mas não observam. Não há contemplação numa avenida. Numa avenida há negócios. Lembrei-me da etimologia de neg-ócio...

Lembrei-me de Paulinho da Viola. A estrutura deste texto surgiu e desapareceu "na poeira das ruas", eu tinha tanto a dizer, mas "me foge à lembrança" ...

O Covid me deixou trancada dentro de casa por duas semanas. Daqueles dias estranhos talvez nasça algo, mas hoje quero falar do dia seguinte ao Covid, e da curiosa sensação de voltar às ruas.

Os primeiros passos me causam um sentimento de ilegalidade, eu chego a questionar: "Posso mesmo fazer isso? Posso andar pelas ruas, ir às compras?"

No minuto seguinte vejo que meus pés estão pavorosamente brancos. Concluo numa fração de segundo que a ausência do sol não faz bem nem a mim, nem a Londres. Penso isso sem nunca ter ido à Londres.

Brasil 2021, há 10 dias do quinto dia útil do mês. Moro sozinha num apartamento alugado, sabe como é, as compras foram modestas.

Mas depois de um certo tempo caminhando, as sacolas ainda que escassas, ficam pesadas. As palmas das mãos estão marcadas e vermelhas.

Nessa manhã, não porto beleza alguma. Meu andar não emite graça qualquer, e o que sobra do meu rosto escondido pela máscara, traz um traço sôfrego.

Anseio chegar logo, livrar-me desse peso, mas o apartamento a cada dois passos que dou, recua uma quadra...

Um homem passa por mim e fita-me descaradamente.

Percebo aquele olhar fixo em minha direção, então olho em revide na tentativa de provocar algum constrangimento. Em vão.

Abaixo a cabeça, volto a tomar consciência da dor nas mãos. Continuo andando e saio do campo de visão do homem, o que o faz girar a cabeça pra continuar me observando.

Olho novamente pra ele, dessa vez com indignação. Meu olhar de censura de nada adianta. O homem é persistente.

Ao menos pude notar alguns detalhes no semblante dele. Não há indecência naquele olhar. O homem está intrigado, sobrancelhas tensionadas. Sua fisionomia transmite quase uma preocupação.

O vento levanta ocasionalmente minha camiseta deixando uma larga faixa de barriga à mostra. As mãos, ocupadas em carregar as sacolas nada podem fazer. Toda aquela pele branca vai permanecer exposta.

Vejo que minhas canelas e pés estão igualmente brancos, ou pior, estão numa palidez cadavérica. Nesse momento um sentimento de vergonha me invade.

O sonho da noite anterior me vem à mente:

Estou numa festa de gala rodeada de pessoas, cabelo penteado, vestido de seda, tudo parece irretocável até que vejo que estou descalça!

Aperto o passo, é urgente chegar em casa. Não é só o peso das sacolas que me aflige, sinto-me demasiadamente pública. Anseio por muros, grades, portas portões, cortinas.

Éh, a rua não é pra qualquer um.

Penso que a rua exige coragem.

Eu disse "rua"? A VIDA não é pra qualquer um. A vida exige coragem. 

Às vezes temo não estar "no ponto" pra ela, talvez ainda esteja branca demais.

Gisele Lance, em Crônicas de Segunda.