O revés de um parto
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O revés de um parto

Não posso ser injusta com meu terapeuta, horas e horas de conversa me ajudaram a entender várias coisas, mas me pego pensando como uma expressão presente numa música de MPB elucidou um episódio da minha vida.

Gisele Lance
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Num ato intrinsecamente violento, o bebê é devolvido ao útero. A cabeça é empurrada, o pequeno não consegue respirar, as paredes da vagina pressionam seu minúsculo nariz interrompendo a passagem de ar. Os ombros são pressionados cavidade a dentro ...

Ou será que entraria primeiros pés e perninhas, quadril ...? Com braços, pulmões e garganta pra fora o bebê resistiria, o que implicaria a necessidade de mais força ...

Já chega. Pressiono os olhos e interrompo o devaneio macabro.

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Chico Buarque tem mesmo essa incrível capacidade de com uma letra de música, projetar um filme na mente de quem o ouve. “Bato o portão sem fazer alarde”. Portão baixo antigo que tem uma espécie de lança em cada grade.

“Tem um japonês atrás de mim”. Pólo azul desgastada de tanto usar e lavar, e uns óculos que ele ajeita com o indicador de quando em quando...

Não posso ser injusta com meu terapeuta, horas e horas de conversa me ajudaram a entender várias coisas, mas me pego pensando como uma expressão presente numa música de MPB elucidou um episódio da minha vida.

'' O revés de um parto ''

Por mais que o útero seja um lugar quentinho, protegido; chega um momento em que o bebê precisa partir, não lhe cabe mais ali. Permanecer resultaria em tragédia. É sair ou sair.

A impossibilidade de outra opção não torna a situação mais tranquila. As dores do parto são agudas. Há sangue, fluidos, gritos, gemidos, choro e um rompimento literal de um vínculo. Mas é assim que tem que ser, é o curso da vida. E uma vez que saiu, não há como voltar. O revés de um parto é uma hipótese tão absurda, que só cabe na arte, como poderosa metáfora.

Era isso. Tudo estava claro e deveria seguir o curso natural, naturalmente com dores atreladas, mas só havia uma ação a ser tomada.

A ausência de dúvidas, a certeza gritante, produziu alguma reação química no meu organismo que me encheu de coragem pra fazer e pra sustentar a decisão. Se em algum momento passou pela minha mente voltar atrás, no momento seguinte eu pensava: “É o revés de um parto”. Então a tranquilidade de ter feito o que era necessário, me acalmava.

Se essa história ao invés de ser comparada a um parto, fosse comparada à uma tempestade, e se ao invés de Chico Buarque, fosse Almir Guineto?

Abro as janelas e vejo um pássaro cantando, riscando o horizonte. Observo que as casas com boa estrutura permaneceram praticamente intactas, as árvores com raízes mais fortes ou as que são mais flexíveis resistiram. Há também bastante lama nas ruas.

 A lama nas ruas indica que apesar da sujeira e desordem, o mal tempo passou.

Agora é hora de limpar, reconstruir e embelezar tudo outra vez, enquanto sigo encontrando explicação pra minha vida em letra de música. 

Gisele Lance em Crônicas de Segunda.