A provável ascensão de Giorgia Meloni ao cargo de primeira-ministra da Itália é um alerta importante sobre a nova ordem internacional que está em curso por meio da expansão de regimes de extrema direita em todo o mundo. A onda trumpista nos E...
A provável ascensão de Giorgia Meloni ao cargo de primeira-ministra da Itália é um alerta importante sobre a nova ordem internacional que está em curso por meio da expansão de regimes de extrema direita em todo o mundo. A onda trumpista nos EUA não parece ter se encerrado com a derrota de Donald Trump nas eleições de 2020, assim como os regimes e partidos de extrema direita continuam a mostrar força em países importantes como França, Hungria, Polônia e Brasil, por exemplo. | ||
É possível identificar em Meloni boa parte da agenda já conhecida da extrema direita. E ela representa bem a face desta repaginação do fascismo que nasceu na própria Itália e hoje renasce por meio de um discurso velho, mas envernizado. Para entender a dimensão deste momento, é importante lembrar que sob a provável liderança de Giorgia Meloni a Itália terá o primeiro governo de extrema direita na Europa Ocidental desde o fim da ditadura de Francisco Franco, na Espanha, em 1975. | ||
Em 2019, ela fez um discurso que resume bem suas bandeiras durante o Congresso Mundial das Famílias (!), evento realizado em Verona, no norte da Itália. Reproduzo abaixo o discurso. | ||
"Por que a família é um inimigo? Por que a família é tão assustadora? Há uma única resposta a todas essas perguntas: porque ela nos define. Porque ela é nossa identidade. Porque tudo aquilo que nos define é agora um inimigo para aqueles que gostariam que nós não tivéssemos uma identidade e que fôssemos perfeitos escravos consumidores. | ||
E agora eles atacam a identidade nacional, eles atacam a identidade religiosa, eles atacam a identidade de gênero, eles atacam a identidade familiar. Eu não posso definir a mim mesma como italiana, cristã, mulher, mãe. Não. Eu devo ser 'cidadão x', 'gênero x', 'genitor 1', 'genitor 2'. Eu devo ser um número. Porque quando eu sou apenas um número, quando eu não possuo mais uma identidade, uma origem, então eu serei uma perfeita escrava a mercê dos especuladores financeiros. O consumidor perfeito. | ||
E esta é a razão pela qual nós insipiramos tanto temor. Porque nós não queremos ser números. Nós vamos defender o valor do ser humano. Todo ser humano. Porque cada um de nós possui um código genético único que não se repete. E queiram ou não, isso é sagrado. Vamos defender isso. Vamos defender Deus, pátria e família. Essas coisas que tanto enojam as pessoas. E vamos fazer isso para defender nossa liberdade porque nós não seremos escravos e simples consumidores a mercê dos especuladores financeiros. Essa é a nossa missão. | ||
E esta é a razão pela qual eu vim hoje aqui. Chesterston escreveu há mais de um século: 'fogos serão acesos para testemunhar que dois mais dois são quatro. Espadas serão desembainhadas para provar que as folhas são verdes no verão. Esta hora chegou. Estamos prontos. Obrigado". | ||
Não é preciso dizer que Meloni foi ovacionada por este discurso. Um discurso repleto de lugares-comuns presentes na argumentação de grupos de extrema direita - um conteúdo que hoje é para lá de popular em grupos de Whatsapp e afins. Um discurso que repagina os velhos argumentos do fascismo. É preciso criar uma luta ideológica grandiosa e grandiloquente, é preciso inventar inimigos, é preciso mexer com os medos da sociedade. A família está sob ameaça. "Eles" querem nos transformar em números. "Eles" nos impedem de nos definir de forma tradicional. "Eles" querem nos "impôr" a ideologia de gênero. Medo. Palavras-chave. Argumentação superficial. Simples e direto, sem grandes teorias, reafirmando o que o público já pensa. | ||
Esta é a estratégia do neofascismo e que conversa de forma muito simplória e "aconchegante" com certo público. E há de fato um público, um grande eleitorado que se seduz por essa argumentação. Mas é importante fazer perguntas claras: quem são esses "eles" do discurso de Meloni? A família está mesmo ameaçada? Quem impede mesmo que Georgia Meloni - ou qualquer pessoa, seja ela italiana, brasileira, húngara, norte-americana ou polonesa - se defina como mulher, mãe e cristã? Há de fato alguém impedindo isso? | ||
Os neofascistas respondem de forma meio lateral, saindo pela tangente, em forma de códigos - o que o professor Michel Gherman chama de "apito de cachorro". Quando citam o financista húngaro George Soros, por exemplo (sujeito central e permanente das narrativas da extrema direita), querem remeter ao imaginário sobre os judeus reforçado pelo panfleto mentiroso e antissemita "Os Protocolos dos Sábios de Sião". | ||
Quando fazem menção à "identidade de gênero", "apitam" e apelam para um senso homofóbico cujo alvo é justamente a luta dos homossexuais por seus direitos. Quando usam o termo família, entendem como tal apenas o conceito tradicional de família como união afetiva heterossexual. E, para finalizar, o mais óbvio: Deus, Pátria e Família - slogan que emerge dos discursos de Meloni, Trump, Orban, Bolsonaro etc. Exatamente o mesmo slogan de Mussolini, Franco e Salazar. Mas, claro, é tudo uma grande coincidência. |