De vez em quando precisamos ser abraçados pelo absurdo, pela ausência de lógica da imaginação, como quando ainda erramos crianças.
"Em todas as casas eles escreveram chaves para memorizar os objetos e sentimentos. Mas o sistema exigia tanta vigilância e força moral, que muitos sucumbiram ao feitiço de uma realidade imaginária …" - Cem anos de solidão - Gabriel Garcia Márquez. | ||
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De vez em quando precisamos ser abraçados pelo absurdo, pela ausência de lógica da imaginação, como quando ainda éramos crianças. | ||
Crianças escutam o contar das histórias e não questionam o limite da realidade. Pra elas não importa o que é possível ou não acontecer! | ||
Os contos maravilhosos me prendiam como prendem a qualquer criança, mas quanto esbarrei nos textos fantásticos. Eu entrei numa dança de aproximar e afastar. | ||
Tratei a literatura fantástica, a maior parte do tempo, com distância, estranhamento e incomodo. Porque tudo isso, de certa forma, está contido ali. | ||
Mas aí a gente vai encontrando os livros, ou melhor os livros vão nos encontrando. | ||
Definitivamente, livros se apresentam no momento exato em que devem ser lidos. Comigo pelo menos é sempre assim. Eu sempre adiei ler Gabriel Garcia Márquez. | ||
Por nenhum motivo especial, só ia ficando pra depois e outro dia sem mais fugir, chegou a hora embarquei em 'Cem anos de solidão'. | ||
E fiquei dominada na dança entre o que poderia ser possível acontecer ou não. Até que como criança me entreguei a história, sem questionar a realidade cruel e dura, que ia se desnudando a cada página. | ||
E fui me prendendo na teia narrativa dos absurdos que atravessa a história dos Buendía. | ||
Desde a estranha natureza da Amaranta, que instantaneamente se torna gélida, insensível e impenetrável. | ||
O medo de Úrsula de que os filhos nascessem com rabinho de porco. | ||
Passando pelo cigano Melquíades que "havia estado na morte, era verdade, mas tinha regressado porque não conseguiu aguentar a solidão". | ||
Da estranha amizade solitária entre José Acárdio Buendía e o fantasma do homem que ele havia assassinado, antes de fundar Macondo, num ímpeto de fúria. | ||
Ou a chuva de pequenas pétalas amarelas que cobriu a cidade, inundando as ruas, emperrando as portas das casas e impedindo a passagem do talvez mais importante cortejo fúnebre. | ||
Ou ainda a ausência presente dos homens Buendía. O ensimesmamento louco que acompanhava os que permaneciam vivos na velhice. | ||
Ou com assunção, em vida, aos céus de Remédios, a Bela. | ||
Nesta minha leitura, tudo que é real e possível ficou em segundo plano. As guerras, os assassinatos, a brutalidade crua das ações humanas. | ||
Afinal, a vida é tão cheia de realidade, e anda tão dura e brutal a luz do dia, ou ainda pior sob a sombra da noite, que por vezes queremos só mergulhar no irreal. | ||
Nesta narrativa o real só atravessa o irreal. | ||
A guerra se apresenta como uma sombra da realidade, já que tudo, inevitavelmente, mergulha sem urgência no absurdo. | ||
E se por acaso você me perguntar: por que ler Cem anos de solidão? | ||
Eu, provavelmente, responderia - pra ver a vida, aquela que está no noticiário de guerra ou policial. Misturada, com uma coisa de cidade pequena, memórias sobre o circo, sobre caravanas de ciganos chegando na cidade. | ||
Para conhecer a história de Úrsula, e se você tiver crescido em uma família com muitas mulheres fortes, reconhecer nela a determinação incansável da sua vó, a teimosia da sua bisavó, a força para o trabalho das suas tias avós. | ||
Alguém pode ter falado que era história sobre a fundação de uma cidade, por uma família governada por muitos José Arcadios e Arelianos... Mas na ausência presente dos homens Buendía, os mais de cem anos de solidão de Úrsula Iguarán gritam e nos faz pensar. | ||
Pra ler uma vez na vida: Cem anos de solidão - Gabriel Garcia Márquez. |