Por que eu, ex-crítico, decidi votar em Ciro Gomes?
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Por que eu, ex-crítico, decidi votar em Ciro Gomes?

Neste artigo, explico as causas que me fizeram deixar de ser um crítico de Ciro Gomes (tendo votado em Boulos, na última eleição) e passar a ser um entusiasta de suas ideias.

Adelson Paiva
19 min
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Ciro Gomes à esquerda de Lula, 1998.
Ciro Gomes à esquerda de Lula, 1998.

Escrevo à militância.

É possível que haja alguém que me acompanhe há mais tempo, através de outros espaços. Essa pessoa hipotética, se atenta, lembrará que — embora filiado ao PSOL há 7 anos (hoje, isso já não parece mais um contrassenso, mas era) — sempre guardei respeito pelo PT e por Lula. Respeito transformado em voto, todas as vezes em que se fez necessário: nunca votei no PT em um primeiro turno, mas contaram com a minha mais aguerrida militância e, mais que isso, meus votos em 2010 (minha primeira eleição), 2014 e 2018. Esse alguém que eventualmente me acompanhe há mais tempo também se lembrará que nessa última oportunidade, 2018, já havia Ciro Gomes, citado no título deste texto, e que eu fazia questão de espinafrá-lo, com toda a métrica do discurso petista. Talvez, se pergunte, agora: "de onde veio essa mudança?". Passo a explicar a seguir.

Quando Lula estava preso, ali por volta de 2019, nada dava conta de que sua situação fosse mudar. Estávamos — nós, ditos de esquerda —, naquele momento, órfãos do nosso totem. Bolsonaro havia vencido as eleições e o sentimento de antipetismo era agudo. Entre nós, medo (falava-se em golpe, como hoje) e desalento. Até em virtude da idade, não passava pelo meu imaginário que veríamos novamente o líder máximo do PT disputando eleições. Comecei a maturar, então, a partir dali, a ideia de que era necessário que florescessem novas lideranças e que, uma vez que Lula e o PT já haviam dado sua contribuição ao país, era importante que um novo processo em busca de se reconciliar com o povo surgisse, especialmente se vindo de outro partido. 

Como mencionei, sou filiado ao PSOL e, naturalmente, passei a direcionar os olhares para jovens quadros do partido que eu entendia promissores, como Boulos e Freixo, mas também de outros partidos, como Manuela d'Ávila, Flávio Dino e o próprio Haddad. No entanto, por dever de responsabilidade, não me furtei de dar atenção e acompanhar com mais afinco aquele que, excetuados os do PT, era o candidato que melhor aparecia nas pesquisas contra Bolsonaro e a quem eu acusara, em 2018, de ser instrumento da direita para dividir a esquerda: Ciro Gomes. Uma vez que era o nome mais viável fora do PT e já partia de 12,47%, era possível que se tornasse um forte candidato.

Concluí, então, que era preciso dar-lhe uma chance e passei a me permitir ouvi-lo, de boa-fé, despido do preconceito que eu carregava. Foi um caminho sem volta. O primeiro momento de epifania foi uma entrevista à CartaCapital, quando o vi fazer uma análise dura, mas que, pela primeira vez, me pareceu respeitosa, à figura de Lula  o que, à luz daquele instante, parecia ser uma condição sine qua non para que pudesse gozar da cortesia de minha atenção. Nessa oportunidade, colocou Lula como sendo um legítimo filho do ventre do povo brasileiro, mas que, tendo chegado ao poder, conciliou. Disse isso sem açodamento. Num momento mais adiante, alude ao seu livro (na época, recém-lançado) e usa o termo "felicidade", mencionando a busca coletiva dessa como razão primeva da atividade política. Aquilo me soou pouco habitual em relação ao que eu estava acostumado a ouvir no discurso político. Refletiu ainda, nessa mesma conversa, sobre o futuro do capitalismo: como a robotização do trabalho levará a maior parte das pessoas ao desemprego e, em virtude disso, pela necessidade de se gerar consumidores, sobre como chegaremos à única saída possível, a taxação dos super-ricos e a instituição da renda mínima, tão falada por Eduardo Suplicy (e, agora, tornada homenagem, nominalmente, no programa de Governo). Ao final, saí com a impressão de ter assistido a um conteúdo de alto nível. Ciro estava a dizer coisas que, até então, não tinha visto ninguém tratar de forma mais profunda no debate público, que, como hoje, já andava tão vil. Me pareceu original: discutia as causas e as saídas para os problemas a partir de um olhar progressista, mas com outra roupagem. 

Passei a ver com mais frequência suas entrevistas e desenvolver, gradualmente, interesse pelo livro que anunciava a cada encontro. Até o dia em que adquiri, finalmente, o "Projeto Nacional: o dever da esperança". Nele, Ciro analisa, sempre por meio de dados, que o Brasil era, até 1930 — antes de Getúlio Vargas —, uma espécie de grande fazenda. Éramos um país rural, desconexo, sem infraestrutura e que basicamente se sustentava da monocultura de café e da cana-de-açúcar. Porém, entre 1932 e 1980 — durante 48 anos! —, o país sedimentou um modelo de desenvolvimento que o permitiu crescer a 6,75% ao ano em média, chegando a picos de 14%. E nos últimos 40 anos, isto é, de 1981 até 2020, uma queda brutal: média de 2,2% ao ano. Esta queda é decorrente de vários fatores, mas seu início se dá pela alta dos juros, decorrente das crises do petróleo nos anos 70 e 80. O Brasil, que não tinha poupança interna forte, preferiu financiar seu desenvolvimento por meio de empréstimos internacionais, que à época pareciam vantajosos: era possível se tomar dinheiro no estrangeiro a juros de 2,5% ao ano, 15 anos de prazo e 3 anos de carência. Ocorre que, devido às crises do petróleo, como disse, os EUA aumentaram sobremaneira os juros, e o custo da dívida foi para 12% em 1979 e, em seguida, 20% em 1980. Tudo isso consta no livro — fica a sugestão de leitura —, não irei me alongar. O fato é que sempre achei Economia algo de difícil compreensão e o livro de Ciro é extremamente elucidativo neste sentido. Para além do "economês", a compreensão de que se reindustrializar é um imperativo no caso brasileiro: não é sustentável importar iPhones vendendo soja e carne. A indústria de transformação, que já foi responsável por 21,8% do nosso PIB (1985), respondia, em 2018, por apenas 11,3%. O Brasil não produz sequer coisas triviais, chegando ao desatino, durante a pandemia, de ter que importar máscaras. Ao falar em reindustrialização, não se trata, obviamente, de imaginar que produziremos alta tecnologia do dia para a noite, mas de substituição de importações: verificar aquilo que, sendo possível produzir aqui, optamos por comprar no estrangeiro. Como alternativa, Ciro propõe, entre outras coisas, a criação de quatro complexos industriais: 1) Complexo industrial de petróleo, gás e bioenergia, 2) Complexo industrial da Saúde, 3) Complexo industrial do Agronegócio, 4) Complexo industrial da defesa. Voltar a se industrializar significa crescer economicamente e isso é vital para a superação do nosso subdesenvolvimento porque somos um povo que, aspirando a um determinado padrão de consumo, não possui renda para fazê-lo.

Esse conjunto de ideias trata-se de um projeto (com metas, prazos, orçamentação, etc), ao meu ver, muito bem acabado, que, só pela sua propositura, já lançaria Ciro ao panteão de candidato diferente dos outros. Para não precisar constranger ninguém nominalmente, devo dizer apenas que nenhuma dessas questões é tratada por nenhum dos demais candidatos — não que eu tenha tomado conhecimento, pelo menos. Contudo, é preciso dizer também que a leitura do livro me fez abrir os horizontes da minha visão política e, com isso, passar a perceber de forma diversa alguns conceitos. Isso — acrescido de uma vasta pesquisa acerca de sua história e também de algumas horas dedicadas a ver entrevistas antigas (como os Roda Vivas de 1991, 1993, 19941995, 1999, 2002 e, por aí, vai...), entre outros conteúdos aos quais fui exposto e que não serão aqui citados — fez com que eu mudasse de opinião com relação a Ciro Gomes. Passei a verificar que as coisas que afirma hoje já eram por ele ditas desde tempos remotos (a quem possa interessar, estão disponíveis os links), e que a análise que faz do Brasil atual é uma leitura já antiga, inclusive em algumas das críticas relativas a Lula e ao PT. Há muita coerência em seu discurso ao longo do tempo, o que me fez entender que suas migrações partidárias, motivo pelo qual também é alvo de ataques, se deram em razão de manter-se fiel a essa interpretação do país. Portanto, o Projeto Nacional de Desenvolvimento que advoga — referido em figuras importantes da nossa história, como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, João Goulart, Brizola — me parece, sempre esteve em sua cabeça,  apenas não havia sido ainda posto em letras.

A partir de então, fui chegando a uma conclusão que pode parecer polêmica quando ouvida/lida pela primeira vez, mas que, em mim, está há algum tempo cimentada: Ciro Gomes é mais de esquerda do que Lula. A identificação de qual candidato representa melhor esse ideário sempre foi o agente motivador e determinante dos meus votos. Ainda que alguém possa me acusar de ter feito más leituras, sempre foi com esse critério que cheguei aos meus respectivos escrutinados: Marina Silva em 2010 (quando eu era um jovem de apenas 17 anos), Luciana Genro em 2014 e Boulos em 2018. Em todas as ocasiões, conforme dito no inicío, estive com o PT nos segundos turnos. Ocorre, para voltar à sentença em destaque, que minha análise acerca dos dois supramencionados se dá menos por Ciro e mais por Lula.

Antes de chegar àquele que é o ponto central destes balbucios, é importante dizer que a biografia de Lula é indefectível. Nascido no "interior do interior" do Pernambuco, saiu, ainda criança, num pau-de-arara, junto de sua mãe e seus irmãos, em busca daquele que é o sonho de todos nós, como ele, nordestinos: uma vida mais digna. Primeiro em Santos, onde vivia seu pai e onde trabalhou como engraxate, depois em São Bernardo do Campo, onde se tornou torneiro-mecânico e se assentou. Era um operário. Mais que isso: um metalúrgico. Ali, por influência do irmão, entrou para o sindicato, do qual viria a ser presidente, ainda nos anos 70. Comandou greves históricas, chegou a ser preso pela ditadura e, então — aquele que um dia disse não gostar de política e nem de quem gostasse —, resolve, junto com setores importantes da sociedade civil, fundar um partido em 1980. Elege-se Deputado Federal, participa da feitura da atual Constituição e é candidato à Presidência da República em 1989, nas primeiras eleições de participação popular com o voto direto, apresentando-se como um candidato radical, comunista. Derrota Brizola, líder histórico da esquerda, e vai ao segundo turno. Perde para Collor. Perde também mais duas outras eleições para Fernando Henrique Cardoso, até que, depois de adotar um discurso mais moderado e assinar um pacto se comprometendo com as elites de que não as melindraria, é eleito em 2002. O homem que um dia saiu de pau-de-arara para fugir da fome, chegava à Presidência da República. Pularei os escândalos de corrupção dos quais a mídia se fartou de forma até atroz para tentar, sem êxito, derrubar seu Governo. É reeleito e termina o mandato com popularidade de 87%, algo nunca antes visto na história desse país, para ficar numa expressão que é sua. Elege sua sucessora, a primeira mulher a presidir o Brasil, e, em seguida, ela é reeleita. Depois, ela sofre um golpe institucional e, com isso, chega ao fim era de governos do PT. Nesse ínterim, desenrola-se a Lava-jato e Lula é preso, alvo de um processo viciado. 580 dias na cadeia. Até que, solto e tendo reestabelecidos seus direitos políticos, volta à cena para ser, aos 77 anos, mais uma vez candidato a Presidente da República.

Isso é intocável. A biografia de Lula, do ponto de vista simbólico, é irrepreensível. Nenhum país do mundo tem essa beleza de história. E é por isso, ao meu ver, que ele é um arrebatador de corações. Eu mesmo o acho uma figura simpática e também acho bonita toda a simbologia que envolve o partido. É nesse ponto fundamental que quero chegar. Analiso que, no Brasil — não que seja fenômeno exclusivo nosso —, há uma cultura das pessoas se relacionarem com a política por meio da estética. Explico melhor: Lula e o PT, que detêm os símbolos (a cor vermelha que alude às revoluções, a estrela comunista, o homem do povo, operário, barbudo...), são lidos, por causa disso, como de esquerda, enquanto um Ciro Gomes da vida, que guarda outra estética é, por vezes, jogado à direita, inclusive chegando ao ponto de ser acusado de estar mancomunado com Jair Bolsonaro. Mesmo que, na prática, não seja assim, é assim que a leitura política é feita entre os brasileiros. Agrega-se a este jogo a carga simbólica dos movimentos identitários e de maiorias minorizadas. Ao meu ver, confunde-se a defesa dessa agenda — da qual, quero deixar explícito, sou um entusiasta — com ser de esquerda. Combate ao racismo, à intolerância religiosa, a defesa das liberdades sexuais são, no meu entender (reitero), questões que estão para além de esquerda ou direita. São de Direitos Humanos, que, de tão óbvias, deveriam ser abraçadas por todos. Sei que não funciona assim, mas tem gente de direita que tem posicionamentos mais arejados com relação a esses temas. E não deixam de ser de direita por causa disso.

Sem pretender ser dogmático e compreendendo que "esquerda" é um conceito relativo que varia no tempo e no espaço — eu talvez me identificasse mais com a direita, se tivesse nascido na Coreia do Norte atual, por exemplo —, deve-se dizer, entretanto, que ninguém é de esquerda só porque afirma que é. Para mim, o conceito ainda permanece intimamente relacionado, mais ainda no dramático caso brasileiro, à velha e não resolvida luta de classes. É nisso que vejo que Lula nunca ousou — pelo menos, não enquanto esteve no poder — fazer um enfrentamento verdadeiro aos poderosos e às estruturas que mantêm e agravam as desigualdades no país. Não fez antes e não promete fazer agora. Seus governos tiveram, como base, políticas sociais compensatórias, em detrimento de políticas sociais emancipatórias. O Bolsa Família é o que bota a comida no prato de, pelo menos, 14 milhões de brasileiros. É a diferença entre comer ou não comer. Eu compreendo demais sua importância e não estou pregando aqui a sua extinção, mas é um programa que nasceu para ser temporário. O fato de milhões de pessoas precisarem depender dele escancara a face de um país sem projeto. Outro caso de política compensatória, essa sim caricata: o FIES. Que me perdoem as pessoas que se formaram por meio dele, têm meu respeito, mas é um programa de transferência de renda para bilionários, travestido de inclusão social. Sob o pretexto de não haver vagas nas universidades públicas para todos, ao invés de se buscar a ampliação da Educação Pública, optou-se por encher de dinheiro os bolsos dos grandes empresários do ramo ao ponto de se criar aqui o maior conglomerado de educação do mundo: Kroton-Anhaguera. Os bancos, por sua vez, como o próprio Lula diz, nunca lucraram tanto como nos governos do PT, ao ponto de que, hoje, apenas cinco bancos concentrem 85% do mercado nacional  e, mais que isso, que apenas cinco brasileiros concentrem a mesma riqueza que a metade mais pobre do país, fazendo do Brasil um dos países mais desiguais do mundo. Tudo isso, como costuma dizer Ciro, após 13 anos de Governos autorreferidos de esquerda.

Com essas coisas todas, quero dizer que Lula sempre optou pela via da conciliação com as elites e nunca pelo enfrentamento. Ao restringir sua atuação às políticas sociais compensatórias, anestesia as contradições sociais e aniquila a luta de classes. Se tirarmos a estética que o envolve, não sobra nada ali. De maneira que mesmo os movimentos sociais têm sido usados para captar a militância ao redor de um discurso travestido de esquerda, mas que, na verdade, é a face mais bem acabada do neoliberalismo, com práticas aprovadas pelo consenso de Washington, que já previa a adoção de políticas sociais compensatórias como forma de amenizar os efeitos do liberalismo econômico. O que faz de Lula, se formos pensar, um excelente candidato aos olhos dos que mandam, de fato, no sistema: é alguém que, tendo vindo do povo, consegue dialogar magistralmente com as massas e fazê-las enxergá-lo com um deles, quando, na verdade, faz o jogo dos banqueiros. Lula e o PT servem, nesse sentido, de instrumentos da elite para manipulação das massas. Como se dizia antigamente, numa frase que é atribuída a Brizola, mas que não estou certo se é dele: "o PT é uma galinha que cacareja para a esquerda e põe os ovos para a direita". É o golpe perfeito.

Enquanto Ciro Gomes fala em transformar o Brasil numa Espanha em 30 anos, sob o ponto de vista de indicadores socioeconômicos, com uma proposta bem definida e de forma objetiva, o projeto de Lula é o nacional-consumismo, a inclusão pelo consumo. Promete picanha e cerveja, algo que soa como música aos sofridos ouvidos da população. Despolitização pura. Aliás, ele tem apostado nisso de forma despudorada. Junto com Bolsonaro, faz esse jogo de manipulação das emoções das pessoas: para segurar o eleitorado, de um lado, fala-se no fantasma do comunismo, do outro, fala-se em fascismo e golpe. É bom dizer que de parte a parte são falácias. O Governo Bolsonaro, com todas as críticas que se possa ter e eu as tenho, não foi o que prometeu. Na campanha de 2018, ele falava em fuzilar a petralhada e mandar para a "ponta da praia" (um local de tortura e execução na ditadura) todos os "comunistas". A verdade do tempo revelou, porém, que Bolsonaro não passa de um bobo da corte para distrair a plateia, enquanto passa-se a boiada. Depois do orçamento secreto, ele não passa de um presidente decorativo. Seu governo foi um não-governo. Sem construir nada, destruiu muito. Mas qualquer mente mais sã haverá de reconhecer que os delírios fascistas de Bolsonaro nunca passaram de retórica. Nunca encontraram eco nas Instituições, nem se transformaram em política de governo. A democracia segue pujante. A despeito disso, Lula e o PT servem-se desse fantasma. Clamam agora pelo voto útil, que na verdade é reativo: trata-se de um "NÃO" a Bolsonaro. Em cima disso, mantêm o eleitorado coeso, amedrontado com esse terrorismo retórico. Mais que isso: não devem explicação nenhuma à população. Deve-se votar em Lula de todo jeito, apesar de ninguém saber claramente seu plano de governo. Esta eleição, diferente de todas as outras da história (dizem eles), seria uma espécie de plebiscito entre a democracia e a barbárie. Seria, se eu já não estivesse vacinado para esse tipo de discurso, utilizado à exaustão, por exemplo, por Marcelo Freixo, na eleição em que foi ao segundo turno para Prefeito do Rio. É sempre assim, a cada quatro anos, arruma-se um motivo nobre para deixar de votar no seu candidato. Lembro bem que um ano atrás, mais ou menos, já se falava em Lula em primeiro lugar nas pesquisas e muita gente me dizia que iria votar nele apenas para tirar Bolsonaro. E eu me perguntava, ao modo nietzscheano: a quem interessa esse discurso de "topa-se tudo para tirar Bolsonaro"? Ao candidato que estiver em primeiro lugar, claro! 

Quando mencionei que os brasileiros se relacionavam com a política pela estética, mais acima, isso se dá em duas ordens no caso do PT: 1) os artistas e os ditos intelectuais, que compram o discurso de combate ao fascismo; e 2) o povão, a grande massa, que enxerga em Lula o "pai dos pobres" pelos motivos acima já discutidos. E, assim, chegamos a este cenário, com interdições ideológicas à direita e à esquerda. Mas, para mim, não é possível deixar de votar em Ciro para votar em Lula porque, uma vez que não enxergo nenhuma possibilidade de risco à democracia — falemos claramente: de implantação de Ditadura —, as diferenças entre um e outro não são triviais. Ao meu ver, a militância de boa-fé está caindo num grande golpe, onde é obrigada a engolir tudo em nome de um pretenso motivo mais nobre. Estão juntos nessa burla: Alckmin, Boulos, Eunício Oliveira, Renan Calheiros, Marina Silva (que agora voltou a ser do bem), Luciana Genro, Cristovam Buarque (ex-golpista), Meirelles, Temer (?)... alguém está sendo enganado. Em nome de supostamente proteger a democracia, estão passando a boiada. Trata-se de um acordão com o sistema político (a velha política e as raposas de outrora) e o sistema financeiro.

Aos que me alertam que Ciro não tem nenhuma chance e que só Lula e Bolsonaro estão em disputa real — e que não dever-se-ia dar ao último a chance de ter mais tempo para fazer campanha e etc —, devo dizer que meu voto nunca foi movido pelo medo, nem também pelo pragmatismo. Sempre procurei olhar para as eleições do ponto de vista teórico: independente das pesquisas,  analisar e julgar o que entendo ser o melhor projeto ou candidato. Se não fosse assim, não teria votado em Boulos (0,58%), 2018, ou em Luciana Genro (1,55%), 2014. Respeito opiniões diversas, mas, se Bolsonaro for ao segundo turno e, por ventura, for reeleito, a "culpa" não terá sido minha, que ousei votar em outro candidato que não Lula. Terá sido fruto de uma parcela significativa da população que, por algum motivo, ou gosta de Bolsonaro ou, simplesmente, não suporta o PT. Ademais, um eventual segundo turno não seria necessariamente ruim. Lula e o PT devem explicações e, em tese, o aprofundamento do debate (ou, em outras palavras: mais democracia) é sempre positivo. Afinal, se são tão melhores assim, não há o que temer. Pelo contrário, há que se demonstrar isso, de forma que reste aclarado na cabeça das pessoas.

As eleições brasileiras foram pensadas em dois turnos exatamente para isso: que o povo possa votar naquele que considera ser o melhor projeto ou candidato no primeiro turno e, adiante, uma vez que seu candidato não tenha ido ao segundo, escolher entre os dois que sobreviveram a essa filtragem. É assim que concebo as eleições e qualquer coisa diversa disso, ao meu ver, com o devido respeito a quem entende diferente, é narrativa de parte interessada ou pragmatismo barato.

Por tudo isso, sabendo que o PT tenta, historicamente, empurrar para a direita todos aqueles que ousam não serem servis aos seus interesses — foi assim com Brizola, Heloísa Helena, a própria Marina Silva (2014) e agora Ciro Gomes — e, pensando no melhor para o país, votarei "12".