O dia de hoje no ano passado era um domingo. Um domingo qualquer como o dessa semana ou o da semana passada. Fazia frio, como faz hoje e eu não me lembro bem se o dia estava ensolarado ou não… Na verdade, a minha sensação é que aquele domingo só começou quando já era à noite. Naquela noite, Rafael e eu saímos para um passeio. Os passeios mais divertidos que fazíamos naqueles dias naquelas semanas eram as espiadas que dávamos na bebezinha que estava dentro da minha barriga. |
Duzentos e quarenta dias tinha se passado do dia que o Dr. Sorriso nos dera a melhor notícia das nossas vidas. Duzentos e quarenta dias até aquele domingo em específico, que um bate e volta no hospital virou uma internação. Sabe, eu perdi a conta de quantas vezes ouvimos o som do trenzinho ritmado que o tumtumtum dela criar a cada ultrassom, mas naquele domingo, o trenzinho descompassou e soubemos que ela teria que sair e encarar esse mundão, e eu teria que encarar ela, e todos os meus medos, que não eram poucos, tampouco pequenos. |
Ligamos para a nossa família e meus pais chegaram no hospital em dez minutos. Em mais dez, meu médico chegou, explicou quais eram os próximos passos e como tudo aconteceria. Minha mãe queria passar a noite no hospital, mesmo sem ter onde dormir, eu achei loucura e não deixei - hoje eu entendo como motivações dela, aliás hoje eu entendo muita coisa que eu não entendia, mas isso é assunto pra outra hora. Nós combinamos que ela voltaria de manhã e com isso eles foram embora. |
Então ficamos eu e Rafael ... no meio de conversas fiadas jogadas para, ficamos os dois guardando a ansiedade nos bolsos e trocando sorrisos escancarados. Eu não estava nervosa. Estava feliz, calma e confiante. Luísa chegaria em algumas horas. |
O parto é uma transição, eu sempre acreditei nisso. É o portal que você cruza para deixar de ser quem você era e se tornar uma nova mulher. E como toda perda, existe dor, mas para mim, todo a beleza desse evento está em saber que talvez seja o único momento da nossa pequena existência em que dor se diferente de sofrimento. Não existe sofrimento. Existe vida, transformação e força, muita força, diga-se de passagem. |
A minha transição aconteceu enquanto aquele domingo virava um segunda-feira. As contrações vieram durante a madrugada e pela manhã eu já estava imersa num mundo só meu. Eu não vi minha mãe chegar no hospital pela manhã, também não vi a chegada do meu médico na sala de parto, não me lembro de ouvir as músicas que o Rafael tão pacientemente escolheu para tocarem em nossa playlist. Me lembro com clareza do trajeto entre o quarto e a sala de parto pela manhã, pensar na minha mãe e saber que a próxima vez que nos víssemos eu seria a mãe da neta dela. Me lembro de todo o apoio do Rafael durante as contrações, do afago na cabeça e das colheradas de sorvete de creme que eu não queria comer, mas ele me lembrava que era importante. Lembro do “oi” do meu querido médico e ele me dizendo algumas palavras de força que eu não sei exatamente quais foram, mas que surtiram efeito e me trouxeram alguma paz. Me lembro de mim, tão imersa numa banheira cheia de água quanto dentro de mim mesma. Me lembro de ouvir minha respiração e pensar que cada contração era uma a menos. Me lembro de avisar que eu queria fazer força e em alguns instantes ouvir a voz da pediatra na sala. Luísa estava chegando, eu sabia. |
Eu tinha de cada lado meu um homem para me dar apoio, mas acolhimento mesmo eu enxerguei nos olhos da minha enfermeira, que sentou na minha frente e me deu as mãos. Eu estava muito cansada, enquanto eu chorava de exaustão, de medo e também de expectativa e ansiedade, eles me diziam “só mais um empurrão”. Eu achei que não fosse aguentar, a força que faltava veio em dois momentos: quando eu abri os olhos e vi nos braços daquela mulher que me suportava uma tatuagem linda, que dizia “feminismo” no meio de um útero e flores e, na sequência, quando eu ouvi o Rafael dizer “Ela tá nascendo” e o médico me dizendo pra sentir ela. Foi aí que eu encostei na minha filha pela primeira vez, ela ainda estava dentro de mim e eu senti o topo da cabeça cabeluda dela. Chorei mais um pouco e fiz a força que faltava para trazer ela ao mundo. |
No dia 05/08/2019 eu trouxe a Luísa ao mundo. Amanhã faz um ano que cruzamos esse portal. |