O domingo do ano passado
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O domingo do ano passado

Amanda Zaccaro
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O dia de hoje no ano passado era um domingo. Um domingo qualquer como o dessa semana ou o da semana passada. Fazia frio, como faz hoje e eu não me lembro bem se o dia estava ensolarado ou não… Na verdade, a minha sensação é que aquele domingo só começou quando já era à noite. Naquela noite, Rafael e eu saímos para um passeio. Os passeios mais divertidos que fazíamos naqueles dias naquelas semanas eram as espiadas que dávamos na bebezinha que estava dentro da minha barriga. 

Duzentos e quarenta dias tinha se passado do dia que o Dr. Sorriso nos dera a melhor notícia das nossas vidas. Duzentos e quarenta dias até aquele domingo em específico, que um bate e volta no hospital virou uma internação. Sabe, eu perdi a conta de quantas vezes ouvimos o som do trenzinho ritmado que o tumtumtum dela criar a cada ultrassom, mas naquele domingo, o trenzinho descompassou e soubemos que ela teria que sair e encarar esse mundão, e eu teria que encarar ela, e todos os meus medos, que não eram poucos, tampouco pequenos. 

Ligamos para a nossa família e meus pais chegaram no hospital em dez minutos. Em mais dez, meu médico chegou, explicou quais eram os próximos passos e como tudo aconteceria. Minha mãe queria passar a noite no hospital, mesmo sem ter onde dormir, eu achei loucura e não deixei - hoje eu entendo como motivações dela, aliás hoje eu entendo muita coisa que eu não entendia, mas isso é assunto pra outra hora. Nós combinamos que ela voltaria de manhã e com isso eles foram embora. 

Então ficamos eu e Rafael ... no meio de conversas fiadas jogadas para, ficamos os dois guardando a ansiedade nos bolsos e trocando sorrisos escancarados. Eu não estava nervosa. Estava feliz, calma e confiante. Luísa chegaria em algumas horas. 

O parto é uma transição, eu sempre acreditei nisso. É o portal que você cruza para deixar de ser quem você era e se tornar uma nova mulher. E como toda perda, existe dor, mas para mim, todo a beleza desse evento está em saber que talvez seja o único momento da nossa pequena existência em que dor se diferente de sofrimento. Não existe sofrimento. Existe vida, transformação e força, muita força, diga-se de passagem.

A minha transição aconteceu enquanto aquele domingo virava um segunda-feira. As contrações vieram durante a madrugada e pela manhã eu já estava imersa num mundo só meu. Eu não vi minha mãe chegar no hospital pela manhã, também não vi a chegada do meu médico na sala de parto, não me lembro de ouvir as músicas que o Rafael tão pacientemente escolheu para tocarem em nossa playlist. Me lembro com clareza do trajeto entre o quarto e a sala de parto pela manhã, pensar na minha mãe e saber que a próxima vez que nos víssemos eu seria a mãe da neta dela. Me lembro de todo o apoio do Rafael durante as contrações, do afago na cabeça e das colheradas de sorvete de creme que eu não queria comer, mas ele me lembrava que era importante. Lembro do “oi” do meu querido médico e ele me dizendo algumas palavras de força que eu não sei exatamente quais foram, mas que surtiram efeito e me trouxeram alguma paz. Me lembro de mim, tão imersa numa banheira cheia de água quanto dentro de mim mesma. Me lembro de ouvir minha respiração e pensar que cada contração era uma a menos. Me lembro de avisar que eu queria fazer força e em alguns instantes ouvir a voz da pediatra na sala. Luísa estava chegando, eu sabia.

Eu tinha de cada lado meu um homem para me dar apoio, mas acolhimento mesmo eu enxerguei nos olhos da minha enfermeira, que sentou na minha frente e me deu as mãos. Eu estava muito cansada, enquanto eu chorava de exaustão, de medo e também de expectativa e ansiedade, eles me diziam “só mais um empurrão”. Eu achei que não fosse aguentar, a força que faltava veio em dois momentos: quando eu abri os olhos e vi nos braços daquela mulher que me suportava uma tatuagem linda, que dizia “feminismo” no meio de um útero e flores e, na sequência, quando eu ouvi o Rafael dizer “Ela tá nascendo” e o médico me dizendo pra sentir ela. Foi aí que eu encostei na minha filha pela primeira vez, ela ainda estava dentro de mim e eu senti o topo da cabeça cabeluda dela. Chorei mais um pouco e fiz a força que faltava para trazer ela ao mundo. 

No dia 05/08/2019 eu trouxe a Luísa ao mundo. Amanhã faz um ano que cruzamos esse portal.