Resíduos sólidos pt. 1
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Resíduos sólidos pt. 1

O resultado é que quem gera pouco lixo subsidia quem gera muito. Quem procura ter atitudes de não geração, procura destinar os recicláveis de outros jeitos, etc, financeiramente é punido. Aí você dirá: ah, mas o valor é pequeno.

Felipe Maia
8 min
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A primeira "especialidade" que proponho para ser analisada sob uma visão das políticas são os resíduos sólidos domésticos, mais popularmente conhecido como lixo. Para começar, vamos de contexto?

1981 - Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA; nº 6938): influenciada por eventos marcantes da área ambiental da década de 70, como as reuniões internacionais e publicações científicas.

1988 - Constituição Federal: os resíduos começaram a ser tratados de forma especial. A partir daqui os municípios passaram a ser os detentores da titularidade dos serviços de limpeza urbana e, consequentemente, a gestão dos resíduos sólidos passou a ser de sua responsabilidade

1998 - Lei de Crimes Ambientais (nº 9605): começou a ser discutida a partir do PL 203, que, por sua vez, foi influenciado pelo acidente ocorrido em Goiás em 1987, onde dois catadores abriram um aparelho de radioterapia e foram contaminados pelo elemento radioativo Cédio-137. Essa lei dispõe sobre sanções penais e administrativas em relação a condutas lesivas ao meio ambiente. Os artigos 54 e 56 decretam que é crime causar poluição através do lançamento inadequado de resíduos.

2007 - Política Nacional de Saneamento Básico (nº 11445): tendo em vista que gestão de resíduos é um dos quatro pilares do saneamento, essa lei também entra na nossa listinha de leis.

2010 - Política Nacional dos Resíduos Sólidos (nº 12305): depois de mais de 20 anos de espera, a nossa última lei da lista foi sancionada. A discussão começou em 1989, com o PLS 354. Aqui tem uma matéria de 2014 do Senado falando um pouquinho sobre ela. Vou destacar um parágrafo para resumir a parte que trata das novidades da lei:

"A política traz conceitos inovadores, como a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos entre fabricantes, importadores, distribuidores, comerciantes, consumidores e poder público."

Essa parte eu acho legal demais: "responsabilidade compartilhada". Muito chique.

2020 - Marco legal do saneamento básico (nº 14026): na verdade é a atualização do antigo marco. Deu bastante polêmica esse marco legal, foi no ano passado! Bem recente.

A que mais nos interessa é a PNRS, então aqui vai um resuminho, presente nesse artigo:

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Muito legal, né? E isso são só as federais, ainda tem as estaduais e municipais. Tem lei pra todo mundo. Agora vamos ver como acontece a gestão dos resíduos de uma das partes da responsabilidade compartilhada, que é você, consumidor. Nesse momento o texto faz uma pausa para você refletir.


Voltamos. Não me considero uma pessoa especial, que mora num lugar especial e consome produtos especiais, então acredito que o que acontece comigo deve acontecer com mais gente. Vamos lá: compro, consumo, coloco numa lixeirinha com uma sacola e no dia/hora certo tiro o lixo da minha casa e coloco na lixeira. Depois repito isso. Resíduos especiais, como pilhas, baterias e eletrônicos ficam perdidos em alguma gaveta esperando alguém perder a paciência (o que demora muito) e levar em algum lugar que receba. Eu já tive composteira em casa, era bacana porque meu resíduo doméstico é quase todo orgânico, eu consumo muito pouca embalagem. Mas acabou que ela encheu, as minhocas morreram e acabei perdendo a atitude de compostar em casa aos pouquinhos. Falhei na missão.

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Como eu disse no texto passado, realmente acredito que, assim como eu, você também tenha boas noções de gestão e problemas do lixo. Apesar disso, me responda aqui, com sinceridade: como é sua gestão do seu lixo?

Vou te perguntar outra coisa, e seja sincero também, por favor. Pode parar para pensar se quiser. Quais consequências você já sentiu na prática decorrente de poluição, pragas, doenças, etc por conta de resíduos? O que, na sua vida, já mudou de verdade por causa da imensa quantidade de lixo que produzimos? O que você já deixou de fazer, ou passou a fazer?

É estranho porque nossas atitudes entram em conflito com nossos pensamentos, em geral. Geramos uma sensação de cinismo e culpa. Cinismo porque aceitamos uma "convenção social" do que é preciso ser feito, mas não a vivemos de fato e inclusive esbanjamos alguns excessos; e culpa porque sabemos que o que nós fazemos, prejudica mais o ambiente do que precisaria. Assim acabamos entrando num ciclo que não é questionado a fundo para ser quebrado.

Eu acredito que boa parte da causa do problema tenha a ver com os incentivos que as políticas de gestão geram. Como diz Thomas Sowell (adaptado):

Políticas *ambientais* devem ser analisadas em função dos estímulos que elas criam, e não das esperanças que as inspiraram.

No caso, ele falava de políticas econômicas, mas eu dei um jeitinho rsrs. Ele não vai se importar se eu avisar.

Na prática, acontece assim: a prefeitura abre uma licitação para contratar uma empresa de coleta de resíduos sólidos. Geralmente, o valor desse contrato é função do quanto de resíduo a empresa ganhadora coleta. Ou seja, quanto mais resíduo ela coleta, melhor (problema 1). E quem paga por isso? Nós mesmos... sem problema nisso, afinal é um serviço, né? Você é cobrado de forma indireta (problema 2) - via IPTU na esmagadora maioria dos casos - e fixa (problema 3). O valor que você paga varia apenas em função do lugar que você mora. Vamos analisar isso em termos dos incentivos que isso gera.

Problema 1:

A empresa de coleta é parte essencial no processo de gestão, obviamente. Eu tive a oportunidade de estar conversando com alguns gestores dessas empresas, e me falaram que o principal custo deles é diesel e pneu - ou seja, só melhorias no caminhão interessam a princípio. Ok. Se o contrato fala pra eles que, quanto mais coletarem mais eles recebem, qual é a maior preocupação deles? Apenas coletar! Quanto mais, melhor. Isso funciona bem.

Abrelpe 2019<br>
Abrelpe 2019

Segundo panorama da Abrelpe, o Brasil tem uma cobertura de coleta de 92%, sendo que o sudeste tem 98% e norte e nordeste acabam puxando a média nacional para baixo (isso é sinal de um outro fator, que pode ser analisado separadamente em outro texto*). Se o objetivo é coletar resíduo, está indo bem. Agora, se o objetivo for redução de resíduos ou melhoria na destinação, não acredito que seja assim a melhor maneira de se contratar uma empresa de coleta por X anos.

Qual o incentivo que isso gera nas empresas para querer melhorar a gestão? Ou, por que elas deveriam se preocupar com, por exemplo, apoiar uma associação de catadores - que estariam tirando o resíduo delas? Sem contar com o fato de que a contratação via prefeitura tem potencial de ser bastante questionável, afinal aqui é Brasil, né não?

Problema 2:

Suponha que você que está lendo esse texto seja quem pague as contas da sua casa. Se for, melhor ainda. Imagino que você tenha alguma ideia, pelo menos da ordem de grandeza, do valor das contas de outros serviços que você contrata. Internet, energia ou água, por exemplo. Agora, se eu te perguntar quanto custa a taxa de limpeza que você paga, você saberia dizer?

As consequência de se cobrar por algo indiretamente não são levianas. Gera esquecimento, despreocupação. Se você pretende cobrar "meio escondidinho", para ninguém questionar, como algumas empresas fazem nas entrelinhas, a estratégia é ótima - a pessoa paga e nem vê. Agora, se o objetivo é levar a sério, buscando a participação das pessoas, colocando a prestação do serviço à exposição para julgamento de custo/benefício, a cobrança tem que ser visível para as pessoas. Tem que ser presente, precisamos pensar nisso pelo menos de vez em quando.

Problema 3:

O problema da taxa fixa é o pior deles. Gera distorções que prejudicam o incentivo individual de mudar comportamentos. Olha só, vou dar meu exemplo. Aqui em casa somos 3 e comemos muita coisa orgânica. Geramos muito lixo, mais que a média eu acho, afinal o lixo orgânico é pesado e volumoso. No andar de cima, tem alguém que mora sozinho. Ele não gasta gás, para se ter uma ideia. A geração de resíduos é muito, mas muito menor. Sabe quem paga mais? Ele, porque mora na cobertura.

O resultado é que quem gera pouco lixo subsidia quem gera muito. Quem procura ter atitudes de não geração, procura destinar os recicláveis de outros jeitos, etc, financeiramente é punido. Aí você dirá: ah, mas o valor é pequeno. Não é do valor que se trata, se trata dos estímulos para as pessoas, é uma coisa sutil. Pense na energia elétrica, só de exemplo. Quem nunca ouviu falar: apaga essa luz, você não é filho da Cemig (aqui em Minas Gerais é esse o nome). O valor é tão baixo quanto, se não menor, mas existe uma preocupação.

Numa situação em que independente do que você faça, você pagará a mesma coisa, qual incentivo que se cria? Por que se esperaria que muitas pessoas se disponham a separar o lixo, levar o plástico na associação do Fulano, o eletrônico na empresa do Ciclano, o orgânico na empresa do Zé que faz compostagem e retorna verdurinhas produzidas com o composto? Geralmente as atitudes nesse sentido são efêmeras, nascem influenciadas por algum evento ou notícia mas logo vão perdendo força. É disso que se trata quando se fala de incentivos criados por políticas.


Bom, existem outros problemas como esses decorrentes das políticas ambientais. Esse texto está ficando grande demais, vou parar por aqui e no próximo analisamos o que aconteceu com os indicadores de lixo depois de 2010, ano da promulgação da PNRS.

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