Os reis do camarote contra os donos do bar. Até onde o dinheiro leva uma instituição?
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Os reis do camarote contra os donos do bar. Até onde o dinheiro leva uma instituição?

Depois de uma semaninha de descanso para pensar e elaborar novos projetos, estou de volta às crônicas. Dessa vez, um misto de informação, história, curiosidade e reflexão. As táticas, linhas, estratégias, ataques ficarão de lado. Mas não se a...

André Moraes
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Depois de uma semaninha de descanso para pensar e elaborar novos projetos, estou de volta às crônicas. Dessa vez, um misto de informação, história, curiosidade e reflexão. As táticas, linhas, estratégias, ataques ficarão de lado. Mas não se animem, será breve rs. No mundo do futebol exterior ao Brasil, é comum o ato de comprar times. Um homem  forte ou uma marca X resolve comprar um ou mais clubes, normalmente com o objetivo prioritário relacionado ao mundo empresarial. Isso se tornou mais comum com a entrada do século XXI, quando várias instituições foram adquiridas e atingiram "oto patamá" de competitividade. Assim, no cenário atual, clubes com pouca tradição em campeonatos de alto nível, os Reis do Camarote, que entraram no game com uma injeção de investimento, disputam em condições de igualdade com clubes marcados por uma trajetória vitoriosa antiga e por representatividades que extrapolam a área futebolística. Iremos chamá-los de os Donos do Bar. Portanto, duas filosofias ou motivações foram colocadas frente a frente no campo, nos sorteios e nos mercados de transferência. O capital adquire estádios, títulos e jogadores. Porém, como tudo no esporte, essa escalada tem um limite.

Primeiramente, permitam-me descrever brevemente uma história. Um clube fundado em 1900 por 17 membros, dentre os quais dois eram judeus. Um deles, Kurt Landauer, assumiu a presidência rapidamente e, a partir de então, por longas décadas, o time foi visto apenas como um símbolo de sobrevivência, em função de dificuldades financeiras e perseguições políticas. Durante a Segunda Guerra, Landauer foi forçado a deixar o cargo, mas se engana quem pensa que a equipe queria se moldar aos padrões nazistas. Em um período jogando na  Suíça, o ex-mandatário teve a oportunidade de acompanhar um dos jogos em um dos setores do estádio e viu os jogadores o cumprimentando antes da bola rolar, em detrimento da saudação nazista, em tese, obrigatória. Passados tempos turbulentos, a equipe evoluiu e conquistou campeonatos nacionais e continentais na década de 70. Na atualidade, é considerada uma das maiores instituições de esporte do mundo, em seu estádio há uma estátua de Landauer e é guiada por uma filosofia ligada ao seu passado. Estou falando do Bayern de Munique. O primeiro dono do bar dessa saga. 

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Agora, na Península Ibérica, um ano antes da fundação do time de Munique, havia um homem chamado Joan Gamper, que, junto com dez amigos, resolveu fundar um clube na região da Catalunha. Será difícil manter o mistério, é o Barcelona. Gamper foi a figura que construiu o Barcelona vitorioso nos gramados e representativo no plano externo. Acusado de estimular o sentimento patriótico catalão, ele foi forçado a se afastar da liderança da equipe que ele mesmo criou e cometeu suicídio pouco tempo depois, coagido por questões políticas e pela crise econômica que atingiu o mundo todo em 1929. Com o desenrolar das décadas, o Barcelona, aos trancos e barrancos, sobreviveu à ditadura franquista e, honrando o legado do seu principal fundador, tornou-se um símbolo de todos que defendem a independência da região da Catalunha em relação à Espanha. Esportivamente, o clube conquistou títulos continentais na década de 90, formou uma categoria de base sólida - a famosa La Masia - e encheu os olhos do mundo inteiro, até mesmo de alguns merengues, com a arte em campo. Mas, afinal, pra que todo esse chá de história? É necessário ter uma base nisso para entrar no ponto principal desse texto: o conflito entre duas correntes opostas, uma pautada em valores antigos e trabalhos fiéis a uma ideia de jogo e outra fundamentada na tentativa de criação de uma marca, seja ela a partir de um clube já existente mas ainda pouco expressivo ou até mesmo com a criação de uma nova instituição. 

Como exemplo claro de reis do camarote, o Manchester City e o Paris Saint Germain. O primeiro foi comprado em 2008 por um empresário árabe chamado Al Maburak e hoje pertence, junto com outros times do mundo inteiro, ao Grupo City. O segundo foi adquirido por Nasser-Al Khelaifi em 2011. Fato é que ambos, antes de tais eventos, não eram preponderantes em competições de alto nível e tornaram-se representantes da atuação radical do empresariado. Um dos diretores do City, há dois anos, disse que queria transformar o time em um exemplo de jogo vistoso. O dono do Paris, com contratações milionárias como Mbappé e Neymar, buscou expandir a instituição no âmbito competitivo e mercadológico. Apesar de serem bem sucedidos nesses propósitos, os reis do camarote dificilmente exercerão uma influência extracampo, que os faça ser tratados até como uma religião por aqueles mais fanáticos. Além disso, a tradição da construção de jogo do time não pode ser comprada com notas. Uma base moldada durante anos e anos, adequada ao mesmo estilo do profissional, que passou pelo comando de Cruyff e Pep Guardiola e foi palco de inúmeras revoluções - a exemplo do surgimento do "falso 9" - cria uma identidade única com seu torcedor, aliada à significância externa. Isso é exclusivo de clubes como Barcelona, Real Madrid, Bayern de Munique... 

<i>Nasser Al-Kheilafi, CEO do Paris Saint German</i>
Nasser Al-Kheilafi, CEO do Paris Saint German

O surgimento de times como RB Leipzig, a transformação radical do RB Bragantino, a evolução dos dois citados anteriormente e a ascensão de novas ligas como a MLS provam a criação de uma nova era, marcada pela dicotomia entre fazer contratações bombásticas e prezar pela solidez da categoria de base, pela fidelidade aos valores que moldaram a instituição e pela sobreposição da mídia a todos outros fatores que envolvam o clube. Como exemplo claro desse conflito, é possível citar uma declaração dada pelo diretor executivo do Bayern em 2017, na qual ele disse preferir ter um estádio do que gastar mais de 200 milhões de euros em um jogador. Ou a política de contratações do Athletic Bilbao, que não aceita jogadores não-bascos, em repúdio à globalização e em respeito à questão separatista. Enfim, novos tempos. É inevitável a influência do mercado em todos os times, ligas e federações, mas há aqueles que se deixam levar mais que outros. Quem coloca sua rocha apenas no capital nunca provará o que é ser chamado de "mais que um clube". Esse raciocínio nos leva à conclusão de que o futebol não se resume aos títulos. Por isso, o Barcelona foi escolhido o maior time da década pela IFFHS. Mesmo não tendo sido o maior vencedor, foi o time que encantou com as tabelas de Messi, Xavi e Iniesta, com as triangulações do MSN, com as invenções táticas de Guardiola. Tudo foi construído entorno do que o barça representa. Ou seja, a invenção, a carta na manga, a plasticidade e, claro, o espírito vencedor. Confesso que estou curioso para assistir às cenas dos próximos capítulos, com o crescimento acelerado dos reis do camarote. Um dia, eles serão tradicionais como os mais antigos? Creio que não, mas posso estar errado.

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