Palavras
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Meu dicionário Houaiss tem mais de 500 mil palavras em umas 2000 páginas. Verbetes, locuções e acepções. Além de prefácio, notas e até um comentário sobre o Desacordo Ortográfico de 1990.

André Corrêa
1 min
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Meu dicionário Houaiss tem mais de 500 mil palavras em umas 2000 páginas. Verbetes, locuções e acepções. Além de prefácio, notas e até um comentário sobre o Desacordo Ortográfico de 1990.

Ele fica do lado dos meus livros e sobre eles exerce um tipo de ascendência. É uma pretensiosa chave de interpretação com a megalomania de querer totalizar a língua. Eu tenho que pegá-lo com as duas mãos e o largo na mesa, com um estrondo.

Só que tem palavras que escapam, como aves, dele. Outras que significam o contrário. E umas que vão nascer. “Mil faces secretas sob a face neutra”, como disse o Drummond.

Acho que assim surge a poesia. Lugar que nem me arrisco e já me arrependo de comparar palavra com ave. Só busco a palavra certa e precisa. Tenho medo de virar pichação de muro, post de Instagram ou recitar versos em sarau.

Mas a poesia continua e surge na minha manhã, no café, no futebol e na mulher. Eu fico assombrado. Pega a palavra e transforma, inventa a língua. Meu Houaiss parece pesado e também inútil. Penso em colocá-lo embaixo do monitor.

Livre e anárquica, dispensa até a escrita. Minha avó foi poeta e nem sabe, por exemplo.

Na casa de praia em Coroados eu, piá, estava sentado no muro baixo. Na rua de areia acontecia um evento inédito. Dois moleques de rua em um violento entrevero. A areia se desprendia do chão e envolvia os combatentes. Vi a mesma cena em um filme do Charles Bronson depois. Coroados foi uma cidade do Oeste americano.

Ofensas desconhecidas, golpes inesperados, suor e sangue. Não sabia o motivo e nem me importava. Eles se jogaram na grama mais pra frente e eu me levantei do assento, como se tivesse pagado ingresso. Comecei a sorrir, completamente entretido.

Daí chega minha avó já com o braço enrolado no meus ombros, me retirando do espetáculo. Não sem antes poetizar:

- Que que você tá URUBUSERVANDO aí, menino?

Eu não estava olhando, nem só observando, palavras do Houaiss que não me auxiliariam. Eu era um animal à espreita e sedento por carniça. Minha larga manga da camisa do Athletico projetava uma sombra negra ali.

Mas aquilo exigia a sensibilidade e a inventividade que só minha avó teve. Ela extraiu o sentido exato e abriu mais possibilidades, a um só tempo.

Poesia é um terreno perigoso. Deixo pra minha avó.

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