Meu dicionário Houaiss tem mais de 500 mil palavras em umas 2000 páginas. Verbetes, locuções e acepções. Além de prefácio, notas e até um comentário sobre o Desacordo Ortográfico de 1990.
Meu dicionário Houaiss tem mais de 500 mil palavras em umas 2000 páginas. Verbetes, locuções e acepções. Além de prefácio, notas e até um comentário sobre o Desacordo Ortográfico de 1990. | ||
Ele fica do lado dos meus livros e sobre eles exerce um tipo de ascendência. É uma pretensiosa chave de interpretação com a megalomania de querer totalizar a língua. Eu tenho que pegá-lo com as duas mãos e o largo na mesa, com um estrondo. | ||
Só que tem palavras que escapam, como aves, dele. Outras que significam o contrário. E umas que vão nascer. “Mil faces secretas sob a face neutra”, como disse o Drummond. | ||
Acho que assim surge a poesia. Lugar que nem me arrisco e já me arrependo de comparar palavra com ave. Só busco a palavra certa e precisa. Tenho medo de virar pichação de muro, post de Instagram ou recitar versos em sarau. | ||
Mas a poesia continua e surge na minha manhã, no café, no futebol e na mulher. Eu fico assombrado. Pega a palavra e transforma, inventa a língua. Meu Houaiss parece pesado e também inútil. Penso em colocá-lo embaixo do monitor. | ||
Livre e anárquica, dispensa até a escrita. Minha avó foi poeta e nem sabe, por exemplo. | ||
Na casa de praia em Coroados eu, piá, estava sentado no muro baixo. Na rua de areia acontecia um evento inédito. Dois moleques de rua em um violento entrevero. A areia se desprendia do chão e envolvia os combatentes. Vi a mesma cena em um filme do Charles Bronson depois. Coroados foi uma cidade do Oeste americano. | ||
Ofensas desconhecidas, golpes inesperados, suor e sangue. Não sabia o motivo e nem me importava. Eles se jogaram na grama mais pra frente e eu me levantei do assento, como se tivesse pagado ingresso. Comecei a sorrir, completamente entretido. | ||
Daí chega minha avó já com o braço enrolado no meus ombros, me retirando do espetáculo. Não sem antes poetizar: | ||
- Que que você tá URUBUSERVANDO aí, menino? | ||
Eu não estava olhando, nem só observando, palavras do Houaiss que não me auxiliariam. Eu era um animal à espreita e sedento por carniça. Minha larga manga da camisa do Athletico projetava uma sombra negra ali. | ||
Mas aquilo exigia a sensibilidade e a inventividade que só minha avó teve. Ela extraiu o sentido exato e abriu mais possibilidades, a um só tempo. | ||
Poesia é um terreno perigoso. Deixo pra minha avó. | ||