De Camões a Dr. Rey
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De Camões a Dr. Rey

Estima-se que em Nova York sejam faladas mais de 800 idiomas. A essa imprecisa estatística eu preciso incluir um, que é o português usado pelos expatriados que acabam sendo alfabetizados em inglês. 

Eduardo Barão
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Estima-se que em Nova York sejam faladas mais de 800 idiomas. A essa imprecisa estatística eu preciso incluir um, que é o português usado pelos expatriados que acabam sendo alfabetizados em inglês. 

É o caso dos meus filhos e de muitas outras crianças cujo destino é falar um inglês impecável e um português bem particular. 

Sentar à mesa com meus filhos Rafael, 12 e Tomás, 9, em meio a conversas sobre lançamentos de séries, teorias ouvidas no YouTube, e o dia na escola, tem sido uma experiência bem interessante, para dizer o mínimo. 

Tomás: A primeira vez que a gente moveu pra cá... 

Eu: O que foi, Tomás? Moveu o quê? 

Tomás: Que a gente está morando aqui... 

Eu: Ah, tá, quando a gente mudou para cá! 

Tomás adaptou para o portugues a conjugação do verbo ‘to move’ que pode significar mudar de lugar no inglês. 

The book is on the table
The book is on the table

Outro dia, contando um episódio do desenho do Scooby Doo, eu ouvi ‘necklace’ (colar), ‘trap’ (armadilha) e ‘storage’(depósito), como se fossem palavras em português. 

Meu mais velho, Rafael, pensa bastante antes de falar e percebo que ele faz umas pausas enquanto conversa comigo. Dá a impressão de que fica buscando na memória quais seriam as palavras exatas em português, já sabendo que o pai chato vai pegar no pé dele. Mas quando se empolga, os termos e expressões em inglês saem naturalmente. 

Contando sobre um caso policial que tinha visto me disse que uma pessoa foi ‘atirada’ (baleada) e que agentes chegaram e disseram ‘vamos levar o caso daqui’ (vamos assumir o caso daqui da frase “We’ll take it (the case) from here).  

Pais que moram há mais tempo do que eu aqui nos Estados Unidos relatam que os filhos trocam palavras o tempo todo. No caso dos mais novos, que são alfabetizados em inglês, a situação é ainda mais complicada. O português é a língua que o pai ou a mãe falam de vez em quando com os parentes que ficaram no Brasil.  

Junto com a proficiência vem, inevitavelmente, o sotaque americano. Um amigo meu de infância se mudou para cá há cinco anos com filhos de 4 e 7 anos à época. Hoje, além de falarem um inglês perfeito, sobrou um baita sotaque de gringo quando eles, às vezes, falam português. O mais novo, garoto hoje com 8 anos, fala como o médico que ficou famoso no Brasil, Dr. Rey, cujo sotaque virou meme, numa época que ainda não tinha meme. 

Setembruchove?
Setembruchove?

Meus filhos moram aqui há pouco mais de um ano. Já vieram com boa bagagem da nova lingua após anos estudando em escola bilíngue, mas, na minha modesta opinião, tinham uma base sólida do português e não esqueceriam o idioma. Mas as misturas de palavras recentes mostram que talvez esse risco seja maior. 

É uma situação totalmente nova que traz um desafio. Não esquecer a língua-materna não foi uma preocupação na minha família, nem da minha esposa. Lembro do meu bisavô Manoel me ensinando a contar os números em espanhol, mas seu conhecimento dessa língua não ia muito além. Meus avós paternos de origem italiana deixaram no meu acervo linguístico pouco mais do que “crustoli” (nome da iguaria que parece bolinho de chuva) e alguns palavrões. Minha sogra que é nascida no Egito foi alfabetizada em árabe e francês, mas em casa a única língua falada sempre foi o português. 

No caso dos meus filhos, penso também no futuro, já que o português ainda é a sexta língua mais falada no mundo e poderá abrir oportunidades profissionais ou de estudo. Aqui em casa, tem de falar, ler e escrever a língua de Camões, sem exceção, com x e cedilha. 

Além de esquecer o português, é comum relatos de adolescentes e jovens que não deixam os pais falarem com os amigos. Eles têm vergonha do sotaque e dos erros gramaticais que qualquer pessoa não-nativa costuma cometer.  

Não quero que isso aconteça comigo. No meu caso, o desafio é ainda maior já que uso o português diariamente para trabalhar. Penso, escrevo e falo com o mais nobre sotaque da zona oeste paulistana. 

Enquanto as crianças vão ganhando o sotaque do Dr. Rey, passam a achar ridículo qualquer som que denuncie que sua língua-mãe não seja o inglês. Porr isso, a partirr de hoje eu vai falarr e escreverr tudo com várrias letrras erres. Não estrranhem, porr favorr!!