Mais uma sobrevivente do Nordeste.
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Mais uma sobrevivente do Nordeste.

"Comecei sobrevivendo a fome, após a morte da minha mãe. Depois quase apanhei até a morte por três bandidas, por conta de alguém que mentiu para mim. Depois fui confiar em outra pessoa, que pensei que queria me ajudar, mas acabei perdendo tudo. Tive

Carlos Azevedo
20 min
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“Eu vivi muita coisa. Comecei sobrevivendo a fome, após a morte da minha mãe. Depois disso veio o acidente e tudo o que ele acarretou, todos os traumas, as dores. Depois apanhei quase até a morte de três bandidas, por conta de alguém que mentiu para mim. Depois fui confiar em outra pessoa, que pensei que queria me ajudar, mas acabei perdendo tudo. Tive uns AVC, alguns infartos, e estou aqui.” Hoje, com apenas um lado do corpo correspondendo suas vontades, Ana Cleide de Azevedo, se arrumou, e encontrou-se comigo. “estou bonita meu filho?”. Fez o que faz todos os dias. Deitou no sofá, enquanto esperava seu lanche preferido: tapioca com café. Sempre muito preocupada com sua aparência, e seu estilo, por ter trabalhado como costureira de grandes lojas de roupa, durante muitos anos. Conhecida por seu bom humor, sua beleza e por ser sempre reluzente e feliz, Cleide é uma pessoa muito especial na minha vida, porque é minha tia. É uma inspiração. Mas esse perfil, não é por conta desse parentesco e não é nenhuma espécie de nepotismo. Essa mulher tem uma história brilhante de vida, de superação e principalmente de sobrevivência. Exatamente, ela é uma sobrevivente. Nós a chamamos na família, de forma carinhosa, muito inspirado pela década de 80 de personagens icônicos como: “MacGyver” e “Duro de Matar”. 

Criada no interior do Ceará, no interior da cidade do Ipu que fica a 358 quilômetros da capital Fortaleza, com outros 7 irmãos. Aos 8 anos, perdeu sua mãe, vitima de um infarto fulminante aos 39 anos. Ficou responsável, ao lado da irmã mais velha, de organizar e ser a dona de casa da sua família, enquanto os homens da casa, seus irmãos e seu pai, iam trabalhar. “Foi uma época muito difícil. Não tinha luz e nem água para tomar um banho ou lavar uma louça. Tínhamos que ir com um balde na cabeça, até um terreno que tinha um açude, há uns 3 quilômetros da nossa casa, para lavar as roupas e louças. Voltava com balde cheio de água para conseguir fazer comida, quando tinha.  Nós dividíamos um ovo para 8 irmãos. Perdi as contas, das vezes que fui dormir com uma colher de farinha e um copo d’água na barriga. Perdi minha mãe muito jovem, não tenho muitas lembranças dela. Lembro mais das dificuldades da vida do que da minha própria mãe. Eu e minha irmã mais velha ficávamos cuidando da casa, enquanto meus irmãos e meu pai, iam pra roça, trabalhar pros fazendeiros ricos da época. Eles saiam 4:30 da manhã e voltavam umas 17h. A gente fazia a marmita, o café e janta. Com isso conseguíamos comer algumas sobras.”. Ao passar do tempo, seu pai arrumou uma nova esposa. Como é comum no interior do Brasil, casou-se com uma jovem, somente dois anos mais velha, que a filha mais velha. Na época, existia muitos conflitos entre a madrasta e os enteados. Hoje, todos se dão bem, são uma família unida, mas na época não era assim. “Ela acabou tendo dois filhos com meu pai, um casal. Então eles tinham tudo, e nós não tínhamos nada. Eu e minha irmã, arrumávamos a casa como duas empregadas, enquanto a minha madrasta não fazia nada e ainda sujava as coisas pra gente arrumar. Nossa irmã que nasceu desse segundo casamento, nunca lavou uma louça enquanto morávamos lá. Quase uma Cinderela. Nosso irmão, não ia para a roça com meus outros irmãos, então a gente ficava bem magoado com esse tipo de coisa. Ela deixava a gente com fome, para dar de comer pros filhos dela. Enquanto nós continuávamos dividindo o ovo para 8, cada um comia seu próprio ovo.”

A infância e adolescência difícil teve uma expectativa de melhora, quando Ana Cleide, foi convidada pela irmã mais velha, Sandra, que já havia se casado, para cuidar de sua filha, que estava prestes a nascer, no Rio de Janeiro. Cleide então, arrumou suas coisas e chegou ao Rio, para morar nas proximidades do Méier, com a vontade e com esperança de melhorar de vida para cuidar da segunda sobrinha que iria nascer. “Eu sai do Ceará, com um frio muito grande na barriga. Estava muito nervosa. Pela primeira vez na vida eu ia ter uma expectativa de melhorar, de crescer. Quando minha irmã me chamou, não pensei duas vezes. Ela pagou minha passagem de ônibus, tomei a benção do meu pai e fui. Foram 5 dias na estrada.  Aquele momento eu já sabia, que eu voltaria totalmente diferente.” Cleide ajudou a irmã em sua difícil gravidez, ajudando a fazer as coisas de casa e comida. No dia 29 de julho de 1988, nasceu sua sobrinha. Sua irmã estava no hospital e Cleide em casa, deixou tudo pronto para receber a bebe que nasceu. Seu cunhado, estava no trabalho e o combinado era: quando ele chegasse em casa, eles iriam ao hospital conhecer Raissa, a neném recém nascida. “Eu e meu cunhado estávamos muito felizes. Ele estava com uma felicidade que não cabia no peito.” O cunhado, chegou mais tarde do que o combinado e visivelmente embriagado, pois estava comemorando o nascimento da primeira filha. Mesmo assim, queria pegar o Monza vermelho ir ao hospital. Cleide então entrou no carro, confiou e foi. Próximo ao Maracanã, Carlos, o cunhado, dormiu no volante, avançou o sinal vermelho em um cruzamento e outro carro, que também vinha em alta velocidade bateu no lado em que Ana Cleide estava. O Monza vermelho capotou mais de 5 vezes. “Eu não lembro de nada do momento do acidente. Me recordo da gente entrando no carro, conversando, e de repente, tudo rodando. Lembro de muitos gritos, luzes, de muita gente conversando e de estar com muito frio. A nossa sorte, é que nós não estávamos de cinto de segurança, então, nas primeiras capotadas o carro cuspiu a gente. Eu parei uns 5 metros de onde o carro parou de capotar. As pessoas que viram o estado do carro, disseram que ele parecia com uma lata de cerveja amassada.” Cleide fraturou a bacia, teve traumatismo craniano e quebrou o braço. No decorrer da recuperação no hospital, pegou uma infecção hospitalar. Cleide conta que acredita que essa infecção se deu por ter sido violentada pelos enfermeiros e médicos de onde estava. “Eu sempre me perguntei, porque eu era tão dopada? Mesmo depois de já estar melhor, continuavam me dopando, com muita frequência. Depois de alguns anos eu comecei a ter uns flashes na minha cabeça. De enfermeiros em cima de mim, enquanto outros ficavam rindo atrás. Eu sendo apalpada e as pessoas cochichando. Daí comecei a perceber o que realmente havia acontecido. Foi um choque muito grande. Tive que conviver com isso. Demorei para tomar coragem e contar para minha família. Mas eu resolvi contar, mas como foi depois de muito tempo, acabou ficando por isso.” Depois de quase um mês no hospital, teve sua alta concedida. Sua sequela? Diversas cicatrizes grandes nas costas, muitos cacos de vidro no ombro e as vezes uns esquecimentos. “Quando sai do hospital, foi uma alegria. Eu sou muito alegre, gosto muito de rir. Então quis logo uma festa com muito forró. Toda a minha família reunida, meu irmão que tem uma banda de forró, cantando para mim. Foi um dia importante na minha vida. Acho que não tinha dimensão da gravidade do acidente até o momento em que cheguei em casa. Todo mundo muito emocionado. Apesar da festa, todo mundo muito feliz por me ver ali. Lógico eu estava muito debilitada, tive que ficar deitada, mas só o fato de poder estar ali comemorando a minha volta com a minha família foi super importante para mim, é disso que eu gosto. Minha mente depois do acidente nunca mais foi a mesma. Eu comecei a esquecer de coisas que eu não esquecia e isso se tornou frequente. Começou com meu número de RG, CPF, telefone, indo até a esquecer pessoas. Depois de um tempo voltou, como se nada tivesse acontecido. Mas após o acidente eu encontrava com pessoas do meu dia a dia, eu não lembrava delas. As pessoas falavam comigo eu olhava e pra mim nunca tinha visto.”

Ana Cleide logo após o acidente, conheceu Alonso, um homem com seus 39 anos, segundo ela, tinha um aspecto físico muito parecido ao do Seu Madruga: “Quer saber como Alonso era, só olhar o Seu Madruga do Chaves, é igual.” Além, da semelhança física com o ator Ramon Valdez, Alonso também fumava muito e isso a induziu a começar a fumar e se tornar um vício “Eu aprendi a fumar com ele, foi um vício que me acompanhou por muito tempo. As pessoas falam do mal que o cigarro faz, mas quando você é fumante não está nem aí, só quer saber de fumar mesmo. É um sabor muito doce. Hoje eu tenho nojo”. Os dois levavam uma vida de casados. Moravam juntos e sonhavam em ter uma família. Alonso já era pai de duas meninas, mas Cleide sonhava em ter seu filho. Alonso, acabou falecendo por conta de um câncer no pulmão, causado pelo uso excessivo de cigarro e deixou Cleide viúva. “Eu o amei muito. Nós éramos muito felizes. Às vezes, sinto ele comigo, parece que ele está me observando, não sei, é reconfortante. Lembro dele com muito carinho.” Após algum tempo da morte de seu ex-marido, Cleide foi se envolvendo com outros homens “Se tem uma coisa que eu gostava era de namorar meu filho, para mim não tinha coisa melhor.” Todos os finais de semana Cleide saia de casa para dançar forró, por ter um irmão músico, era tranquilo saber onde tinha um bom forró. Em um desses finais de semana de muita dança, conheceu Hugo. Os dois acabaram se envolvendo e tendo um relacionamento. “Conheci o Hugo em um forró. Ele me chamou para dançar e disse que eu iria ser a mulher que daria filhos para ele. Ao passar do tempo, fui me apaixonado por ele e começamos a namorar. Ele ia sempre para minha casa, tinha roupas lá, escova de dente, praticamente morava comigo.” Relacionamento esse que durou quase dois anos. Em um determinado dia, Cleide estava em casa, trabalhando como costureira, forma essa que trabalhou a vida inteira, e de repente três mulheres invadiram sua casa. No início, ela pensou que era um assalto, mas no decorrer da ação, foi percebendo que não era. “Essas três mulheres entraram na minha casa e me renderam. Uma delas estava armada. No inicio achei que fosse um assalto, na época, morava no bairro da Santa Rosa em Niterói, estava em alta esse tipo de assalto. Mas percebi que elas não foram procurando nada, porque não estavam vasculhando nada e eu não tinha dinheiro. Elas estavam ali para outra coisa.” Cleide foi covardemente agredida por essas três mulheres. Teve parte do seu cabelo arrancado, chutes no seio, pauladas por todo corpo e diversas tijoladas na cabeça. “Eu contei, antes de apagar 8 tijoladas na minha cabeça, mas era tanta adrenalina que não senti nada. Eu apanhei muito, só de lembrar fico muito nervosa. Eu lembro de ser jogada em cima da mesa da sala, ter quebrado a mesa. De ter levado muita porrada. Mas foi muito mesmo. Depois de umas boas tijoladas na cabeça tudo vira flash. Esse dia eu achei que fosse morrer, mais uma vez. Começou a passar um filme na minha cabeça e eu comecei a pensar o por que eu estava apanhando tanto. Nunca tinha feito mal para ninguém, sempre ajudo todo mundo. Mas foi aí que ela falou do Hugo, falando que eu não ia roubar ele, porque ele era marido dela.” Foi quando Cleide percebeu o porque apanhava. Hugo era casado. Mas não só isso. Hugo era também um dos traficantes da comunidade próxima a sua casa. “Eu nunca soube e nem desconfiei disso. Ele não demonstrava nada para mim. Nunca o vi fumando maconha, nem usando nenhum tipo de drogas, nem andando com arma, nem nada. Ele devia esconder muito bem. Enquanto ela batia com o tijolo em mim, dizia que ele era dela. Nunca percebi que ele era casado, se eu soubesse, jamais teria me relacionado com ele.” Cleide foi salva por sua vizinha, que escutou os gritos de socorro. “elas iam me matar, eu tenho certeza disso. Ficavam apontando a arma pra mim direto. Se a minha vizinha não chega eu estaria morta.” Teve traumatismo craniano mais uma vez, por conta da pancada e diversas lesões no corpo e além de ter causado dores nas lesões antigas do acidente de carro. “Foi muito difícil essa situação. Fiquei com muito medo de ficar em casa sozinha. Eu achava que a qualquer hora alguém ia entrar e terminar o trabalho. Como o objetivo delas era me matar, eu passei alguns meses, achando que elas voltariam para concluir o serviço.” Hugo, tentou contato com Cleide depois disso tudo. Contou a verdade e o que tinha acontecido. Cleide não o perdoo e nunca mais os dois se viram. Hugo morreu, vitima de uma troca de tiros na comunidade que morava.

Essa vizinha, que salvou sua vida tornou-se amiga dela. Acabou se tornando amiga da família e as duas estavam sempre juntas. Com o passar do tempo Rose, a vizinha, ficou desempregada e então Cleide a ajudou. Trabalhou durante alguns anos com ela, na costura. “Rose era uma amiga muito boa, me ajudou em certa parte da minha vida, mas eu também a ajudei. Foi o momento que mais ganhei dinheiro e ela se aproveitou disso”. Rose trabalhava com ela auxiliando na costura, mas era quem fechava os negócios, por ter estudos mais avançados. Cleide estudou até a 3º serie. Depois que sua mãe faleceu, teve que sair da escola para poder ajudar em casa. Rose assinava os contratos com as marcas de costura. “Nós costurávamos para empresas grandes. Foi um sonho realizado quando começamos a trabalhar para Maria Filó. Uma grande empresa de moda”, mas em um determinado dia ela percebeu que estava faltando dinheiro nos recibos das empresas. Desconfiando de Rose, foi confronta-la e Rose assumiu que estava roubando e roubava durante anos. As duas desfizeram o acordo e a amizade acabou ali.

Passado todo esse trauma, Ana Cleide voltou a viver a vida de antes. Cerveja, cigarro e forró aos finais de semana. Mas esses hábitos foram se tornando diários. Em uma dessas saídas de muita dança conheceu Rogério. Os dois tiveram um relacionamento durante alguns anos. Cleide engravidou e Rogério a deixou, fazendo com que ela criasse seu filho sozinha. “Rogério nunca foi um bom pai. Muito ausente. Eu tive que me virar para dar tudo para o meu filho. Nunca pagou pensão, nem nada. Ele é tão safado que a esposa dele, não sabe que ele tem um filho fora do casamento. Meu filho hoje tem quase 18 anos e não pode ir passar um fim de semana com o pai, porque a família dele não sabe. Tanto que o nome do meu filho no telefone dele é loja de computador. Ele é proibido até de mandar mensagem no fim de semana. Rogério só atende meu filho em horário comercial.” Após o fim desse relacionamento, continuou na vida de sempre, cerveja, cigarro e forró. Virou mãe solo, começou a trabalhar em casa, manteve a fábrica costurando para grandes ateliers. Então, ficou mais fácil levar a vida em que ela levava. Começou a beber uma quantidade exacerbada de cerveja e fumava muito, enquanto costurava. No meio disso tudo, dessa vida corrida, Cleide conheceu Clébio, seu atual marido. Os dois estão juntos a mais de 12 anos. Começaram a trabalhar juntos, Cleide costurava e Clébio realizava as entregas. Tudo ia muito bem, ambos estavam felizes, até que em um domingo de Carnaval no ano de 2015, os dois foram para um bloco de carnaval, com a sobrinha que havia nascido no dia do acidente que sofreu. Cleide reclamava de uma asia muito forte e dor de cabeça, mas aproveitou o dia ao lado da sobrinha querida. Na terça-feira continuava ainda com essa asia e cada vez mais forte. Decidiu então pedir ao seu marido para que a levasse ao hospital e enquanto o marido estacionava o carro, foi fazer a ficha no guichê. Enquanto escrevia, Ana Cleide desmaiou, caiu e bateu a cabeça no chão. Foi levada rapidamente para dentro da emergência. Quando Clébio chegou à recepção foi informado o que havia acontecido. Após muita espera, sem muitas novidades, veio a notícia, Cleide havia sofrido um AVC seguido de duas paradas cardíacas e desenvolvido um coagulo na cabeça quando desmaiou e bateu a cabeça no hospital. Na segunda parada, seu coração parou mais de 7 minutos. Só sobreviveu por conta de uma amiga que era enfermeira no hospital em que estava internada e pediu para que os médicos não desistissem. “Essa foi a situação mais complicada da minha vida. Sofro as consequências até hoje. Minha vida mudou completamente. Eu estava sentindo uma asia muito forte, pensei que tinha sido algo que comi, mas como durou muito tempo eu achei estranho. Eu jamais imaginei que eu estava tendo um AVC. Cheguei até a achar que fosse verme. Eu não lembro de nada. No momento em que desmaiei foi como se a minha pressão tivesse ficado baixa. Foi uma experiência, que eu penso, ser de morte mesmo. Passei uns dias em coma induzido. Tenho uma sensação de ter ido para um outro lugar. Para o Paraiso, em que acredito. Me recordo de ter tido uma paz diferente de tudo que eu já tive. Um lugar bastante claro, com uma felicidade absurda.” Hoje, Cleide vive com as sequelas do acidente vascular cerebral. Somente um lado do corpo responde aos comandos, anda com dificuldade e precisa de ajuda para tudo: ir ao banheiro, trocar de roupa, tomar banho. “É muito difícil para mim depender dos outros hoje, sempre fui muito independente e hoje estou assim. Não posso costurar, não posso trabalhar mais. Eu não consigo lavar mais a louça, coisa que fiz a vida inteira. Não posso mais dançar meu forró, que é algo que eu amava fazer. Todo mundo que me conheceu no forró e me vê hoje, fica emocionado, porque eu fico aqui no meu sofá o dia todo, comendo tapioca e tentando fazer minha mão voltar a funcionar e isso já tem mais de cinco anos.” Ela já teve diversas complicações por conta desse AVC e do infarto. Não pode ter preocupações que tem convulsões com frequência, quando fica em pé muito tempo acaba ficando tonta e cai. Tem a saúde muita debilitada. Há dois meses, antes dessa conversa, Ana Cleide teve um outro AVC, mais leve que os anteriores, mas precisou ficar internada. Mais uma vez sobreviveu.

Desde 2015 até os dias atuais, Cleide vive assim, deitada no sofá, assistindo as novelas da tarde do SBT até as novelas das 21h da Rede Globo. Os irmãos, que no passado Ana Cleide ajudou a cuidar, hoje cuidam dela. O que ela sempre fez, desde jovem para viver, desde a infância, como lavar a louça, hoje ela não consegue mais. “Eu sinto muita saudade de ser independente. Eu adorava poder arrumar a minha casa, deixá-la do jeitinho que eu quero. Infelizmente eu não consigo mais. Hoje todas as reuniões de família são aqui em casa, porque é difícil para mim conseguir sair de casa para qualquer lugar. Quando saio não me sinto mais a vontade, quero estar no meu sofá, vendo as minhas novelas e as fofocas dos famosos.” Pedro, seu filho, hoje com quase 18 anos, tem o sonho de ser dublador de filmes. “O meu sonho é ver meu filho trabalhando, ser feliz. Acho que Deus não permitiu que eu morresse para que eu pudesse cuidar e dar uma vida relativamente boa, na medida do possível. Eu que perdi a mãe muito nova, não queria que meu filho passasse por isso. Em todas as coisas que vivi, acidentes que tive a primeira coisa que eu penso foi nele. Não consigo imaginar meu filho sozinho nesse mundo tão perigoso. Já tem um pai que não está nem aí pra ele. Minha irmã que é madrinha dele, com toda certeza, iria cuidar, mas não é a mesma coisa da mãe.”

Ana Cleide saiu em 1988 do Ceará, pensando em voltar completamente diferente, um dia. Em 2013, antes de ficar debilitada por conta do AVC, decidiu voltar para a sua terra natal o Ipu, com seu marido e filho. “foi muito legal poder voltar para a terra da minha infância, para casa do meu pai, depois de muitos anos, antes da minha doença. Ficar na casa do pai depois que você sai, não é legal, por isso eu arrumei meu lugarzinho logo e fui morar com a minha família.” Ficou pouco tempo, um mês antes do seu AVC voltou para o Rio e nunca mais viu pai. “Meu pai nunca me viu assim. Eu tenho medo da reação dele. Dele ter um piripaque, até porque ele está bem velhinho, não sei. Mas eu tenho muita saudade do meu pai. Ele é muito importante para mim. A gente faz ligação de vídeo, nos falamos no telefone sempre, mas não é a mesma coisa. Tem anos que não vou vê-lo. Eu sai do Rio em 2013 decidido a voltar e ficar no Ceará até o resto da minha vida. Do nada me deu uma coisa e quis voltar, então voltei com toda a minha família, um mês antes do meu derrame. Eu acredito que eu não teria sobrevivido se eu estivesse lá no Ceará, até por conta da falta de estrutura e por causa da minha amiga enfermeira que insistiu para os médicos não pararem de tentar me reanimar. Sinto muita saudade da minha terrinha, do meu pai, mas tenho meus irmãos e meus sobrinhos aqui, então eu estou feliz.”

Ana Cleide é uma inspiração, para mim como sobrinho, para minha irmã a bebe que nasceu no dia do acidente e para todo mundo da família. Nós temos orgulho dela como mulher e carinhosamente a chamamos de “MacGyver” por ser um personagem que enfrentou tudo e escapou da morte mais de um milhão de vezes. “Eu me acho sim uma sobrevivente, vivi muita coisa. Comecei sobrevivendo a fome, após a morte da minha mãe. Depois disso veio o acidente e tudo o que ele acarretou, todos os traumas, as dores. Depois apanhei quase até a morte de três bandidas, por conta de alguém que mentiu para mim. Depois fui confiar em outra pessoa, que pensei que queria me ajudar, mas acabei perdendo tudo. Tive uns AVC, alguns infartos, e estou aqui.” Sua alegria é contagiante até hoje, ela está sempre sorrindo e fazendo suas palhaçadas. “Eu estou viva, isso para mim é o mais importante. Eu poderia não estar mais aqui, faz uns 30 anos. Eu aprendi muito, e conheci muitas pessoas. Passo para o meu filho, para não confiar em todo mundo, mesmo a pessoa se dizendo sua amiga. Confiei diversas vezes acabei sofrendo as consequências. Quem esteve comigo, foi só a minha família. Desde a morte da minha mãe, eu só tive de verdade a minha família. Eu saia, achava que tinha muitos amigos, mas alguns me roubaram outros tentaram me matar. Mas a minha família sempre esteve comigo. Eu amo a minha família. Agradeço muito a Deus por ela. Eu e meus irmãos passamos por muita coisa. Vivemos muita coisa. Eu não tive infância, comecei a trabalhar muito cedo. Alguns dos meus irmãos culpam meu pai, mas eu acho que ele fez o que achava certo na época.” Esta é Ana Cleide, guerreira, mãe solo e sobrevivente.