Monteverdi e a Doutrina dos Afetos
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Monteverdi e a Doutrina dos Afetos

Pioneiro no uso de tétrades, quem melhor definiu os usos musicais na "Doutrina dos afetos", e quem observou que um maior número de instrumentos de cordas traria maior sustentação do som.

Gesiel
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Em fins do século XVI e início do século XVII, a comunidade artística musical da europa encontrava-se em uma disputa de egos sobre qual seria a real e única maneira de produção de peças musicais, tanto sacras quanto profanas e seculares. 

Havia aqueles que se posicionavam ao lado da que ficou conhecida futuramente, a partir de uma publicação de Giovanni Maria Artusi sobre as composições de Monteverdi, como “Prima Pratica” onde a música deveria orientar o canto. Seus críticos se apegavam ao fato de que era uma música tão rebuscada em polifonia e contraponto que tirava o entendimento do texto, tornando-se mais uma apresentação para acadêmicos e críticos do que realmente uma apreciação para leigos.

Este assunto entrou pela primeira vez em discussão no Concílio de Trento, em 1545, onde a igreja católica, na tentativa de combater a Reforma Protestante, realizou uma “contra reforma” com uma série de mudanças internas, inclusive na música, a qual se opôs Giovanni Pierluigi da Palestrina demonstrando que era possível realizar um canto polifônico sem comprometer o entendimento do texto sagrado cantado nas missas. Vale ressaltar que o fez com maestria tamanha, que poucos de sua época tem sua técnica estudada até os dias de hoje e se você deseja ver um pouco mais sobre o assunto leia a matéria  “Contribuições Musicais da Reforma Protestante e da Contra Reforma” aqui mesmo no Blog do Gesiel.

Aos opositores, essa “prima pratica”  não poderia ser tomada como única e perfeita forma de composição, porém, não houve alguém que chamasse a atenção para uma nova maneira de compor como Claudio Monteverdi, não só invertendo a importância na relação música-texto, como provando a perfeita coexistência de ambos.

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Nascido em 09 de maio de 1567, em Cremona, Claudio Giovanni Antonio Monteverdi é considerado um divisor na história da música, e, em uma análise musical mais profunda, chamado carinhosamente por alguns de “inventor” do Período Barroco(1600-1750).

Não é intenção deste artigo discorrer sobre a história de vida de Claudio Monteverdi, mas sim sobre sua contribuição na estruturação musical como conhecemos hoje.

Com datas não muito precisas, sabe-se que por volta de 1590, já trabalhava como músico, gambista, na corte do Duque Vicenzo I Gonzaga, em Mântua.  Neste mesmo ano publicou seu segundo livro de madrigais já rompendo com o padrão musical de então e atraindo a atenção de olhares críticos para sua obra que até o momento já contava, incluindo este, com dois livros de madrigais; uma coleção de música sacra a três vozes; uma a quatro vozes, e; uma coleção de canções a três vozes. Todo este trabalho publicado entre os 15 e os 23 anos de idade, algo raro para a sociedade italiana de então.

A música renascentista e barroca dividia-se em áreas de composição. Ela poderia ser sacra, aquela que atendia o serviço das missas; secular, a música com temas simples e textos do cotidiano, onde não havia “pecado”; ou profana, com temas e textos totalmente impróprios para se cantar nas missas, ou até mesmos no dia a dia.

Via de regra os madrigais não eram idealizados como música sacra, e cumpria os requisitos das composições da “prima pratica” , ou seja, a letra deveria se submeter a música, com uma harmonia baseada em tríades com notas longas e polifonia tão trabalhadas que tornavam o texto ininteligível. Como padrão, era uma música vocal acompanhada apenas por um instrumento que dava uma base harmônica para os cantores, estes instrumentos comumente eram um cravo, uma viola de gamba, um violoncelo, ou outro instrumento, de preferência de som grave.

Monteverdi nada criou na música, apenas aplicou padrões harmônicos que a partir de então tornaram-se base para todas, “todas”, as composições. Por exemplo, foi ele que iniciou o uso de tétrades na harmonia trabalhando com dissonâncias comuns hoje em dia como a quarta aumentada, quinta diminuta, acordes com nona, e o acorde dominante com sétima, criando assim o que conhecemos hoje como “cadência perfeita” (V7-I).

Acrescentou em seus madrigais instrumentos harmônicos e, em vários deles, mais de um instrumento, dando sustentação aos cantores. Sustentação do som também foi a intenção de Monteverdi ao acrescentar à orquestra um naipe de madeiras aumentando a quantidade de instrumentos de cordas, tal como as orquestras apresentam hoje.

Agora com uma base instrumental sólida, deixa de lado, em algumas peças ou seções destas, os excessos da polifonia vocal e passa a trabalhar, com maestria, a monodia. 

Em 1592 publica seu terceiro livro de madrigais, e enquanto preparava o quarto livro, que só seria publicado em 1603, Artusi publica, no ano de 1600, o artigo “Seconda Pratica, ou As Imperfeições da Música Moderna”, criticando ferrenhamente o trabalho de Monteverdi, que, embora tocado por tais críticas, não se moveu a debatê-las neste quarto livro, que seguiu como tinha que ser, porém no quinto livro, 1605, há um verdadeiro rompimento com a “Prima Pratica” algo que passou a ser a sua assinatura nas obras posteriores.

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Em 1602 tornasse mestre de capela do duque, e embora o cargo  trouxesse prestígio na sociedade europeia, lhe trouxe também grandes tribulações, como relatou em correspondências ulteriores, tais como atrasos nos pagamentos salariais, que eram baixos; falta de autonomia em relação a quantidade e escolha de músicos; restrições em seus trabalhos, que só deveriam ser feitos para o ducado; entre outros.

Ainda assim, Monteverdi nos brindou com ricas obras musicais. Em 1607 estreia sua primeira ópera: “O Orfeu”. É na música cênica que podemos ver mais nitidamente suas intervenções no sistema de composições dominante naquele período.

Adepto da “doutrina dos afetos”, onde a música deveria ser trabalhada para gerar no ouvinte a emoção necessária ao conteúdo apresentado, Monteverdi criou um sistema de composição baseado em três categorias de igual valor, ou seja, não há importância maior ou menor entre elas, mas sim características da música em que deve ser utilizada uma categoria ou outra.

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Trabalhava a oratória, a harmonia e o ritmo, conforme o que ele chamava de “sentimentos da alma”, ou seja, o que a peça musical deveria transmitir ao ouvinte, tais como ira, humildade, paixão, amor, sofrimento,...

Se a ideia fosse atos de heroísmo, excitação, ira, a tessitura seria trabalhada em voz alta, com baixos agitados, tempos rápidos, notas curtas, saltos ascendentes e com mudanças de tonalidade. Para sofrimento ou súplica, por exemplo, a linha melódica seria descendente e em tonalidade menor, com registro de voz baixo. E para sentimentos moderados a tessitura seria média com tonalidade constante, pouca movimentação no baixo e acompanhamento neutro. 

Monteverdi criou ainda três estilos de composição levando em consideração o caráter da música: concitato (alegria, fúria,...); molle (paixão, tristeza, …); e temperato (sentimentos delicados e tranquilos).

Tudo isto seria trabalhado conforme a natureza da peça musical, ou seja, música dramática, encenada, declamada, ou para dança. Considerava também o ambiente onde seria apresentada, o que remetia a quantidade e tipos de instrumentos a serem utilizados, bem como a qualidade sonora do ambiente. 

Sua situação financeira, que já era ruim, piora com o falecimento do duque em 1612 e sua consequente demissão. Mas, como toda noite há de amanhecer, devido ao seu reconhecido prestígio musical,  assume em agosto de 1613, a função de mestre de capela na Basílica de San Marco, em Veneza,  cargo musical mais cobiçado da Europa. Talvez a sua coleção de peças sacras para as Vésperas da Virgem Maria, de 1610, tenha cooperado para eleição a tal posto.

Agora, com alto salário e total liberdade, inclusive para contratar músicos e cantores, seu trabalho se multiplica em composição, não só de músicas sacras, como também madrigais e óperas.

Monteverdi aplicou conceitos musicais que se tornaram padrão nas composições consideradas referências na música ocidental. É dele a ideia de aplicar nas óperas a repetição de fragmentos do tema, algo que conhecemos hoje como “motivo” (quer saber um pouco mais sobre isto? Veja a matéria “A Riqueza da Análise Melódica” , aqui mesmo no Blog do Gesiel). Trabalhava também com tonalidade bem definida clareando a harmonia e facilitando, para ouvidos leigos, o entendimento da forma musical através de  cadências que não só completavam o fraseado mas também serviam como articulação ao contexto da obra. Fez uso de pizzicatos em momentos de duelos de espadas, bem como trêmolos em momentos de representação de personagens em morte iminente; usou sons graves para representar cenários infernais; para deuses e nobres associava flautas e alaúdes; e para temas pastoris utilizava as madeiras. Dava especial atenção a preparação dos cantores que seriam associados a sua obra, preparando a dicção, a impostação vocal e o fraseado. 

Morreu em 29 de novembro de 1643 em Veneza, deixando um vasto repertório que inclui música sacra, como missas e cantatas; música cênica, como óperas e ballets; coleções de canções e madrigais com nove livros publicados; além de composições perdidas no tempo, das quais não há exemplares conhecidos. Tudo isto torna Monteverdi um dos músicos fundadores do Período Barroco, e alguém cuja obra musical é digna de ser estudada.

Saiba mais sobre as contribuições de Monteverdi ao mundo da música:

"A Indústria da Ópera, e Alguns Nomes"

"A Orquestra"

REFERÊNCIAS:

https://observador.pt/especiais/monteverdi-o-genio-que-inventou-o-barroco/ 

www.britannica.com