Dois heróis brasileiros: um estudo sobre a camaradagem
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Dois heróis brasileiros: um estudo sobre a camaradagem

Entre os deveres militares, a camaradagem é conceituada na Cartilha Valores e Ética Profissional Militar, do Programa Raízes, Valores e Tradições, como “capacidade de estabelecer relações amistosas com superiores, pares e subordinados”. Se, e...

Sagran Carvalho
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Soldado Sérgio Pereira recebendo a medalha Bronze Star das mãos do General Truscott
Soldado Sérgio Pereira recebendo a medalha Bronze Star das mãos do General Truscott

Entre os deveres militares, a camaradagem é conceituada na Cartilha Valores e Ética Profissional Militar, do Programa Raízes, Valores e Tradições, como “capacidade de estabelecer relações amistosas com superiores, pares e subordinados”. Se, em tempo de paz, figura como importante atributo para o perfeito funcionamento das características militares, quando em combate, a camaradagem revelação-se essencial para a sobrevivência e para o cumprimento de níveis de nível de risco e complexidade.

A história militar brasileira é rica em episódios que demonstram como a camaradagem é valiosa em situações que levam os combatentes a situações extremas. Foi o que ocorreu na noite de 12 para 13 de dezembro de 1944, por ocasião da quarta tentativa brasileira de conquistar o Monte Castello, durante a Segunda Guerra Mundial.

Desde o mês de novembro, a Força Expedicionária Brasileira (FEB) tentava subjugar uma posição estratégica importante, cuja conquista permitiria a ruptura da Linha Gótica, rede defensiva alemã apoiada na cordilheira dos Apeninos. Apesar da coragem e tenacidade dos pracinhas da FEB, três tentativas de ataque haviam fracassado, dado a qualidade das posições alemãs, que dominavam o terreno e os acessos à elevação.

No dia 12 de dezembro, desenvolvia-se mais um ataque, e o Capitão João Tarciso Bueno liderava a 1ª Companhia do 11º Regimento de Infantaria em sua progressão rumo ao Monte Castello. Quando o inimigo conseguiu ajustar seus fogos sobre a subunidade, o Capitão Bueno identificou a situação crítica e passou à frente de seus homens para liderá-los pessoalmente. Pouco a pouco, a eficácia das armas alemãs foi provocando numerosas baixas e a progressão arrefeceu. Diversas subunidades, em setores vizinhos, já haviam recebido ordens  para retrair, mas o capitão prosseguiu com seus homens, até ser colhido por uma rajada de metralhadora que lhe provocou graves ferimentos. Caído em uma vala, inconsciente, com várias costelas partidas e com o pulmão esquerdo trespassado por um tiro, o capitão permaneceu no terreno, enquanto os remanescentes de sua combalida companhia retraíam.

Depois de ser informado que o comandante de uma de suas subunidades jazia ferido na “terra de ninguém”, o comandante do batalhão organizou patrulhas para tentar resgatá-lo. Com a proteção da noite, diversas patrulhas vasculharam a região a procura do oficial ferido, uma delas liderada pelo célebre patrulheiro Sargento Max Wolff Filho, mas nenhuma logrou êxito, pois o Capitão Bueno havia rastejado em busca de água e caído em um córrego. Resignado, mas temendo perder mais homens, o comandante do batalhão sustou o envio de novas patrulhas.

Um integrante da 1ª Companhia, no entanto, não se conformou com a situação. Tratava-se do Soldado Sérgio Pereira, natural de Minas Gerais, ordenança do Capitão Bueno. Sabia que seu comandante havia sido visto, pela última vez, com vida, ainda que gravemente ferido, e tomou uma decisão: sairia pela “terra de ninguém” e só retornaria com seu chefe e camarada, ainda que isso pudesse custar-lhe a vida .

Armou-se, equipou-se, pegou algumas granadas de mão e, silenciosa e solitariamente, partiu oculto pela escuridão do inverno italiano. Por muitas horas caminhou, rastejou, correu e escondeu-se de patrulhas inimigas, até que conseguiu chegar aos arredores de Abetaia, localidade em poder dos alemães. Depois de ter passado pelos cadáveres de companheiros que haviam perecido na jornada, já pensava em desistir devido à aproximação das luzes da madrugada. Sua persistência, no entanto, foi recompensada. Ao vasculhar um riacho com águas quase congeladas pelo frio, conseguiu localizar seu capitão, inconsciente. Verificando que ele ainda estava vivo, o Soldado Sérgio transportou-o nos ombros por algumas milhas, cuidando para não fazer ruídos. Em seguida, rastejou em uma parte aberta do terreno, trazendo seu chefe nas costas até, finalmente, alcançar as linhas avançadas da FEB. Sua obstinação e seu elevado senso de camaradagem haviam salvado seu capitão.

O General Mascarenhas de Moraes, Comandante da FEB, elogiou o Soldado Sérgio nos seguintes termos: “É um exemplo magnífico de dedicação ao chefe, que tenho a mais grata satisfação de apontar à FEB”. O Monte Castello cairia em poder dos brasileiros somente em 21 de fevereiro de 1945, após um quinto e bem-sucedido ataque, abrindo o caminho para o vale do Rio Pó.

Por sua liderança, o Capitão Bueno foi promovido e condecorado pelo Brasil e pelos Estados Unidos. O Soldado Sérgio também recebeu uma promoção e condecorações por bravura. De volta ao Brasil, ambos permaneceram grandes amigos até o fim de suas vidas. Um belo exemplo de camaradagem legado para todos os integrantes da Força Terrestre por esses dois heróis brasileiros, naquela gelada e silenciosa noite de inverno em 1944.

Capitão João Tarciso Bueno
Capitão João Tarciso Bueno

Artigo escrito por Coronel R1 Carlos Daróz

  Carlos Daróz, Coronel de Artilharia R1, é doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense, possui mestrado em História pela Universidade Salgado de Oliveira e mestrado em Operações Militares pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, além de especialização em História Militar pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Professor de curso de pós-graduação em História Militar da Universidade do Sul de Santa Catarina. É professor visitante do Instituto Universitário Militar de Portugal, da Academia da Força Aérea dos EUA e do Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais de Cabo Verde. Desenvolveu pesquisas junto ao Service Historique de la Défense e ao Musée de l´Armée, de Paris. Autor dos livros  Um céu cinzento: a aviação na Revolução de 1932, A guerra do açúcaras invasões holandesas no BrasilO Brasil na Primeira Guerra Mundial: a longa travessia, Bruxas da Noite: as aviadoras soviéticas na Segunda Guerra MundialIntervenção: a particular da segurança pública no estado do Rio de Janeiro, História do Brasil nas duas guerras mundiais Aviatrix: a saga das mulheres que ousaram desafiar o céu. Atualmente é pesquisador-chefe da Seção de Memória Institucional do Centro de Estudos e Pesquisas de História Militar da Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército .

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