A faca, o queijo e as moças
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A faca, o queijo e as moças

Um olhar masculino lançado sobre a dinâmica dos relacionamentos.

Caio Versucci
19 min
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<span style="background-color: rgba(252, 233, 106, 0.4);">Pra não dizer que não falei das flores</span>
Pra não dizer que não falei das flores

Gostaria de dividir com vocês um breve relato. Assim que me surgiu o incômodo estalo de escrevê-lo, pensei com meus botões e cheguei à conclusão de que, de fato, talvez seja ilustrativo do pé em que as coisas andam. Pelo menos nas atmosferas em que venho respirando. Já aviso que é banal. Não esperem nenhum ensaio metafísico sobre o sexo dos anjos, é claro que não tenho altura para tanto. De todas as indignidades que minha dispersão insiste em aderir, esta pelo menos servirá como uma epifania de meia tigela.

Era uma sexta-feira de dezembro. A maré da praia que sediará a noite de reveillón começa a resvalar o dedão. Eu – e todo mundo – sinto o fim de 2022 se aproximar, acompanhado daquele friozinho na barriga inerente a essas épocas. Começo a projetar as metas que virão e, a verdade, é que os últimos quinze dias deste reflexivo mês ao qual incumbe encerrar o ano são absolutamente coadjuvantes. Quase ninguém os vive. São um trailer de algo futuro que traz expectativa. mas, aqui em entre nós, quem chega ao cinema pontualmente na hora do trailer? Nem você, nem eu. Aliás, não me lembro a última vez que fui ao cinema. Quando está passando o trailer você está nas lojas americanas terminando a fila daquele chocolate ou daquela bala fini; a não ser que seja milionário e disponha de trinta e cinco reais para gastar num balde de pipoca, pois os cinemas daqui cometem esse disparate. 

Enfim, sob essa névoa, começa o dia. Expediente de trabalho comum e expectativa incomum para um jovem saudável que adentra uma sexta-feira à noite, leia-se a total ausência dela. Dia de prova, fui à faculdade e fiz o feijão com arroz, suficiente para passar na matéria e contabilizar um abacaxi a menos. Encontro meu amigo Marco, voltamos andando para casa como de praxe mas, nessa noite, acompanha-nos um outro amigo dele – cearense muito típico e cordial por sinal – o qual eu não conhecia. Em pouco tempo trocamos palavras. Naturalmente, fomos os três para o bar, porque afinal de contas um tapinha não dói. 

Centro do Rio à noite, aquela simbiose reconfortante entre rapazes sem grandes carteiras de investimento a supervisionar e garçons nordestinos caricaturalmente honestos, cuja voz e trejeito são de uma previsibilidade incomum. Certamente lhe veio a imagem de algum “fala, chefe!” à mente agora. Aquela coisa. Uns vinte e poucos graus e sem muita gente. Uma conversa extremamente desinteressante para qualquer ser humano normal que não seja graduando em direito, sobre a experiência judicial de particulares contra planos de saúde, de o quanto o judiciário está abarrotado dessas discussões. Politiquinha rasteira. Copa do Mundo. Fulana é gata. Cicrana é mais. Puro suco de formalismo informal masculino. 

Lá pelas tantas, depois de umas oito garrafas divididas entre quatro pessoas (o primo do Francisco, que acabei de conhecer, chegou depois), eu e Francisco - que àquela altura já tinha passado no meu crivo baixíssimo e adquirido o selo “amigão de copo em potencial”- fomos esticar até a Lapa porque nem eu nem ele estávamos a fim de ir embora. Só eu e ele, Marco fora para casa uma hora antes. A pé, porque é bem próximo. Há um certo movimento na região, então nossos celulares estavam um pouco menos tensos em nossos bolsos.

Chegamos no famoso bar da cachaça (o sugestivo nome é literalmente esse). É um pointzinho famoso da Lapa no qual a juventude de esquerda – pela qual nutro um misto de antipatia e pena – se reúne antes de ir para algum outro lugar; um pressuposto que pressupõe algum programa mais pulsante, e é uma minoria de gente que vai para lá com a intenção de ficar muito tempo ou a noite toda. Pouca luz, muita gente e muito cigarro; quase nenhuma vontade de se tornar ao menos uma sombra daquilo que em décadas mais decentes convencionou-se denominar de adulto razoavelmente respeitável. Coisa que eu não vivi para ver e escrevo de gaiato.

No andar da carruagem, introduzimo-nos a uma roda de desconhecidos que não eram daqui. Uns de Minas e outros do norte. Acabamos por nos sentar junto deles, até porque foram bem receptivos. Convenhamos, seria mais legal do que ficar só tomando mais algumas com o Francisco e olhando para a afável cara dele, que, por mais que afável que fosse, tinha pelos, queixo quadrado e, acima de tudo, era uma cara de macho. Os assuntos já tinham se esgotado nas três horas que antecederam no outro bar. Era de fato melhor dar uma espairecida com aqueles turistas aparentemente abertos. Um rapaz de dread (esse eu acho que talvez fosse do Rio) muito sorridente, um outro rapaz de Minas Gerais e uma garota paraense. Havia mais gente, mas o eixo narrativo gira em torno deles. 

Coisa de cinco minutos e o Francisco levantou e foi embora. Subitamente, parecia de saco cheio. Sinceramente não entendi muito bem. Não digo que ele estava desconfortável com alguma coisa específica porque não ficou claro a esse ponto, mas fiquei com essa impressão após ele se despedir de uma forma um tanto quanto fortuita. Entre risadinhas de quebra clima e uma curiosidade geminiana genuína, continuei ali. 

O nome dela eu não me lembro, mas me lembro que era do Pará. Tinha um sotaque pouquíssimo carregado. Se não falasse que era de lá eu não saberia. Óbvio que não, eu nunca fui ao Pará. Experimentei uma cachaça maluca de jambo que me ofereceu e senti um formigamento afincado na língua. O gosto tinha impacto, era marcado e com uma espécie de frescor ácido capaz de impregnar na memória. Eu não sou alcóolatra, bebo socialmente e quase sempre nas sextas ou finais de semana, isso quando bebo. Bebo sim, estou vivendo, mas em doses reguladas o suficiente para o meu eu de sessenta anos não se arrepender. Aquele gesto espontâneo - acompanhado do gosto exótico - me fez ligar o pisca alerta.

Entre alguns diálogos amenos e uma conversa com o mineiro, após esfregar na cara dele a freguesia do Atlético (desnecessário expor meu time), voltei-me a atenção para Fulana, na falta de saber o que de fato consta naquele RG desconhecido. Entre perguntas irrelevantes sobre a vida dela, cujas respostas me escapam, notei que o cabelo era bem preto. Era preto, não castanho. Não era crespo ou enrolado, sim “meio liso”. Tinha um ensaio de brilho mas não era brilhoso, era normal. Até um pouco abaixo da nuca, sem ser curtinho nem extenso. O formato do rosto era arredondado e a pele parda, sem sobressaltos. Ela tinha uma boca não muito carnuda, levemente bem delineada que perpassava quase todo o comprimento do rosto, com um sinal de tamanho mediano um pouco acima do canto superior esquerdo dos lábios. O sinal não era grande, mas como qualquer coisa que se tenha bem acima do lábio ganha a notoriedade de uma blusa amarela num velório, eu percebi. Tenho prazer em reparar nesse tipo de detalhe e uma certa queda por visagismo. Quando vou ao barbeiro e peço um corte que deixe minha cara um pouco mais quadrada, muitas vezes percebo que Valmir franze as sobrancelhas, como quem diz “até onde esse cara pensa que vai o meu talento?” 

Ela não era nenhuma Gabriela, mas tinha um certo vaivém. Ainda mais para meus olhos capazes de balancear qualquer marolinha de São Pedro da Aldeia. As pupilas bem escuras estampavam alguém sutilmente entediada, que não queria dar o braço a torcer e admitir que ali não era o lugar mais inspirador do mundo. Simpática, sem estar muito aí com a hora do brasil e resvalando a a lateral do meu rosto, furtivamente. Isso quando não estávamos dialogando de forma frontal. Os modos eram suaves e destoavam um pouco da frivolidade barulhenta do lugar; pegava naquele copinho devagar e com uma mãozinha pequena. Era pequena. Chegou a curiosamente me fazer perguntas e, gradualmente, fui percebendo uma abertura. Se você que está lendo é homem e tem familiaridade com a experiência do flerte, sabe que existem “portas” que vão se abrindo uma a uma antes que você chegue na cara do gol, na cena do crime, no último ato de “sacar a arma” ou não. São microssegundos que te dizem algo sobre a receptividade – ou falta dela - daquele outro ser humano magnético, fugidio, errático, qualquer coisa menos translúcido.

Tudo isso para dizer que a primeira porta foi aberta. Nada de cara de nojinho, postura corporal desconfortável. Não. Dei um leve toque no braço, para sentir a temperatura. Normal, sem sinais claros de repulsa. Sorrisinhos, conversinha, climãozinho. Um diminutivo gostoso de uma surpresa agradável que assaltava aquela sexta-feira despretensiosa.  Cheguei no último parágrafo. Na entrada da área e sem muita gente na frente. Bati no gol. A bola não entrou. Disse que eu era um “carioca galante”.

- “Eu sou galante?” Perguntei só pra sentir o gostinho de ouvir de novo aquela gatinha me dizer que eu era galante. 

- “É”-

- “Mas isso é algum problema pra você?”

- “O problema é que você vai virar a esquina e vai dizer essas mesmas coisinhas para qualquer uma outra por aí” 

- “Quem disse?” 

- “Eu sei que vai” 

Confesso que volta e meia faço concessões ao desejo sádico de ouvir verdades duras. Esses eufemismos acariciadores têm uma carga de comiseração que me irrita.

Não quero porque você não é bonito o suficiente para suprir minhas expectativas para esta noite.

Não quero porque sua abordagem me pareceu insegura

Sua cara simplesmente não me agrada.

Não fico com ninguém de um metro e setenta.

Por que elas nunca dizem isso? Por que é sempre uma mentirinha suave para “não ferir”? Você leitora, se estivesse doente e precisasse de um diagnóstico preocupante, gostaria que o médico lhe contasse uma mentirinha agradável? Então, a gente também não gosta. Eu pelo menos não gosto. E assim: dá pra saber que não tem substância de verdade, pouco crível, que é desculpa. Por favor, parem. Digam a verdade. A gente aguenta (será?).

Voltei a conversar com o mineiro, com aquela pseudonaturalidade que me projetava um sorriso amarelado, talvez incapaz de disfarçar minha cara de elevador. Tranquilo. Toco é do jogo. E eu gosto do jogo. Eu gosto de me testar. Isso é uma coisa nossa – mais propriamente dos extrovertidos porque os tímidos parecem adormecer esse instinto. Relação de amor e ódio que nutrimos pelo impulso irrefletido de navegar por esses mares mulheris. Algo que se instala em você lá pelos catorze, quinze anos e nunca mais te larga. 

É um inquilino rude, inconveniente, que muitas vezes atrasa o aluguel mas que, apesar de sucessivas ameaças mês a mês, nunca temos a coragem de despejá-lo. Ele mora ali, mora nos casados e românticos inclusive. Não que mulher não tenha, mas elas esperam que venha. Venha a nós o nós o vosso reino. Nós nascemos instalados numa clave de seja feita a minha vontade. É uma sede egóica, estúpida, por uma glória vaidosa de porcelana, é profano e sem nobreza. Um plebeu entre os instintos, que por vezes nos conservam. Mas é como é. Nunca é uma boa ideia convidá-lo a sentar na mesa junto às faculdades mais racionais, ele solta um arroto sem a menor cerimônia. Já cheguei a prometer a mim mesmo que pararia de me submeter a esse tipo de azedume, mas dali a pouco está lá eu de novo. Felizes são os religiosos que buscam apenas a validação de Deus, porque a dessas desconhecidas que se acham deusas é sempre mais difícil de contemplar. E talvez seja por isso que a gente goste. 

Dez minutos. Me chega um cara totalmente empacotado naquela roupagem feministo progressista. Cabelo platinado descolorido (só de lembrar me causa uma palpitação que anuncia uma tragédia cômica), camisetinha de botão com estampa brega, meio zara, brinquinho, tatuagens de qualidade duvidosa. Enfim, um desconstruído. Eu trabalho pra cacete pra construir alguma coisa e detesto perder pra desconstruído, porque na minha cabeça não faz o menor sentido. Meio malinha – aliás bem malinha. Começou a exaltar pretensões em si, uma conversa chata, um jeitão de quem se ama ao melhor estilo Sidney Magal mirando-se no espelho no auge dos seus vinte e cinco. 

Esse sujeito, após flertar um pouco com a Paraense, começou a beijar efusivamente o rapaz de dread, que pelo que me lembre estava comprometido. Talvez tenha rolado uma traição. Muita língua, intenso. A garota vendo tudo. Em seguida foi a vez dela provar um pouco também. O cara simplesmente estava atracado com um outro na frente dela há cinco minutos atrás, mas e daí? É cool. Tá na moda.

Deixa eu ver se eu entendi: não é impedimento galantear a língua em outro mancebo, impedimento é “ser galante” com ela? Claro que o problema não é esse. O "problema" (entre aspas porque isso definitivamente não é um problema) é não ser moderninho o suficiente para traçar um cida adão e em seguida arrematar ela. Eu não tomei a quarta dose de progressismo, então ela me barrou na entrada. Ou simplesmente bati com a cara na parede de alguma das verdades duras ali de cima.

Você vai me dizer que soa preconceituoso. Soa mesmo. Mas eu não consigo não achar esquisito uma mulher com tesão em homem afeminado, desculpem-me a franqueza. Para mim é tão natural quanto sair para pedalar de terno em Bangu. O mineiro ainda me soltou um “putz, véio… tava torcendo por você”. Será que abordei de um jeito tenso o suficiente para o cidadão “torcer” pra mim? Eu nem sabia que tinha gente na arquibancada olhando, por mais que ele estivesse num banco bem próximo. Começo a sentir uma quentura na barriga ao ver aquele sujeitinho tosco fazendo o que eu queria fazer bem na minha frente, mas mantive a compostura e fingi que não estava ligando. Nem tanto por desejo, por ela. Não houve tempo para isso. Gostaria, mas provavelmente seria mais um número fazendo número. O amargo era o casalzinho: a concretude daquele beijo mequetrefe de mãos dadas com a ideia abstrata de que as mulheres elegem sistematicamente esses tipinhos. Poesia bárbara de gente fútil. 

No final ainda veio fazer menção de me dar um abracinho de jacaré carregado de pena, o qual, graças a Deus, pelo menos recusei.

Comecei dizendo e volto a repetir: sei que é banal. Pode ser uma questão de ocasião. Talvez na sexta passada, vai saber… quem sabe fosse eu um cara de fora chegando no Pará… não sei, também pouco me interessa. A verdade é que, tão arbitrário quanto as escolhas que elas supostamente fazem, é a minha pretensão de querer reivindicar alguma espécie de mérito, porque não se trata disso no mais mínimo. Eu sei, eu sei. As pessoas escolhem arbitrariamente, e nesse particular surge a ambiguidade do processo: nós passamos por uma fase de transição, na qual nos é ensinado que existe uma série de maneiras de “fazer do jeito certo”, “se vestir do jeito certo”, “projetar confiança na abordagem”, “ser um bom ouvinte”, “despertar as chaves emocionais certas” e, ao aprender sinteticamente um arremedo disso tudo, você finalmente estará com a faca e o queijo na mão. Só esqueceram de nos contar que isso é uma meia verdade, porque a faca até pode estar em nossas mãos; podemos e queremos, ainda hoje - por mais feminista que a sociedade esteja - ser o elemento penetrante, caçador, audaz, rompedor, em suma: o ó do borogodó do polo ativo ativador.

Legal.

Mas e o queijo?

Esse ainda repousa silencioso na mão delas. Dorme ali. Pode até se putrefazer escasso entre aqueles dedinhos, se for o caso. Basta ela não querer. Você fez tudo “certo”, né? Acontece que não é um jogo de certo e errado, meu cumpadi. E vou te dizer mais, tá? Se bobear, os "errados" estão mais próximos dos finalmentes do que você.

Ah, isso é clichê, hoje em dia não está mais assim... essa visão é estereotipada, que nãoseiquelá...

Vai por mim. O queijo vai na boca de quem ela quer, e isso não tem nada a ver com mérito nenhum. É aquilo: ela pode consagrar tua noite, mas também pode ser o seu algoz. A recíproca não é verdadeira. Qualquer raio de coisa que você faça não foge plenamente do repertório que qualquer um dos quatrocentos e quinze anteriores trouxeram à mesa. Você não abala nada nela. O seu mecanismo de reforço é escasso, o dela é abundante. Você não tem quarenta e sete pessoas do sexo oposto te chamando de lindo no instagram. O motor psicológico dessa coisa toda são os estímulos conflitantes, os desejos insatisfeitos. O racional entende que, no fim do dia, não se trata da cura da aids e, sinceramente, pouco importa a massagem que seu ego pede, qualquer um(a) coloca o sarrafo onde quer, caso queira colocar algum também, e é isso aí. Mas o inquilino… aquele que não paga o aluguel…

Esse vive de criar subterfúgios, esse tem sede. Esse encara um rostinho bonito como um passaporte para patamares sucessivamente mais altos. Nem é preciso dizer que, a bem da verdade, se trata mais de você mesmo do que dela, e baseado nisso podemos concluir que você é um tremendo Narcisão, ressentido pelo cisco no olho dos outros sem se preocupar com a trave no teu. A autossabotagem, mãe da culpa, começa quando jogamos essa verdade para debaixo do tapete para satisfazer os desejos do inquilino, aquele que requisita sua vã glória. Neste dia é ele quem te cobra o aluguel e te faz passar por situações constrangedoras como essa. A autoconfiança não se guarda, não se basta em si mesma. Precisa de uma vitória. Precisa de um teste de fogo. Precisa de um vestibular pra ser aprovada, de um juego. Hay que ganar.

Quando essa mentalidade se apossa de você, naturalmente surge a tendência de interpretar tudo num viés de “merecimento”, o que fatalmente te conduz a um abismo da realidade, estupidamente caótica, que não segue nenhuma cartilha de valores pré-estabelecidos. Entrar no "jogo" com essa cabeça já te faz, automaticamente, calçar um sapato formal de bico quadrado para pisar num terreno arenoso. Você vai estar fora do tom, vai se sujar e vai culpar a composição do solo, quando na verdade tinha era que estar de chinelo, pra começo de conversa. Rapaziada, sejamos francos: encaramos com autocobrança algo que é de uma fugacidade tamanha a ponto de tornar absolutamente cruel e desmedida essa imposição de desempenho. Quanto tempo ainda vamos levar para compreender que não se trata de desempenho? Elas parecem estar mais habituadas a entender a maneira que a banda toca, suave. Parece que entram na brincadeira mais leves, risonhas, lançando olhares descompromissados, evasivos, sem nenhuma satisfação a dar pra ninguém. Frequente algum ambiente noturno e observe detidamente o semblante delas. É notório que a imensa maioria desfruta, este é precisamente o verbo. Elas desfrutam, se divertem. Com amigas, com a música que toca, desfrutam do ambiente e estabelecem ali um momento de prazer, disruptivo, deixando de lado tudo que não interessa naquele momento.

Nós não. Não desfrutamos de coisa alguma, temos contas a prestar para com nosso ego e nossa tribo de "caçadores" ao final da noite. Nós entramos pra "ganhar", com um fardo pesadíssimo nas costas. É óbvio que, enquanto esse tônus emocional perdurar, iremos "perder", invariavelmente. Vejo muitos caras frustrados e desapontados com todo o processo de engajar o sexo oposto - em todos os níveis - sendo que, no cerne dessa amargura, se encontra o mesmo sentimento mesquinho que me tomou naquele momento: elas são "injustas". Hoje eu merecia uma vitória que não veio. Isso é tremendamente errôneo e sem sentido, ao mesmo tempo em que tão espontâneo, vívido, vulgar, comum e corrente, que chega a ser uma evidência quase irrefutável. É tragicômico. Tenho uma forte suspeita de que grande parte da decepção que o afegão médio nutre em relação às mulheres venha precisamente desta raiz psicológica paradoxal: não existe nenhuma sombra de garantia de que seus critérios de julgamento são os mesmos que os dela, sequer de que ao menos ela tenha algum critério que não o mero impulso momentâneo, inseparável da mais fatalista das arbitrariedades, a feminina. Mas aqui entre nós: bem que você queria que existisse. Se existisse você não seria preterido por imbecis. É bem aqui que Napoleão perdeu a guerra.

O desafio é abraçar o humor dos infortúnios, dos acasos, e torcer para que você, um dia, possa encontrar alguém que se alinhe com seus propósitos, expectativas. Até lá, você não merece nada. Ninguém te deve nada. É duro, mas é a verdade.

Nós, os tradicionais, que ainda gostamos de terno e gravata, de profissões antigas, de chegar e sentar com a calça suja de ônibus no sofá e foda-se, de um palmeiras e grêmio quarta-feira, do aspecto mais bruto da vida sem grandes floreios; nós estamos, dia após dia, perdendo espaço. Sim, existe um aspecto mercadológico nisso tudo: somos vistos como os caras chatos para casar (se é que ainda querem casar), aos trinta e dois, depois de ter passado boas temporadas de aventuras no carrossel de senhoritos desconstruídos, regadas a muita maconha e competições olímpicas de "(i)responsabilidade afetiva". Depois, muito depois, bota depois nisso, quando tudo não tiver mais a menor graça, quando o relógio biológico colocar a comanda sobre a mesa, aí sim, quem sabe, ela se lembre de você.

Pra curtir? Ser objeto de desejo quando elas estão na flor da idade? Esquece. Os filhotes de Tiago Iorc cumprem esse papel. Encarnamos os bons pagadores de boleto, no máximo bons pais em potencial. Bom amante é outra conversa. Não habitamos os bairro nobres do imaginário desses seres, somos periféricos. Na melhor das hipóteses, um bairro comercial que no passado teve algum requinte, mas que hoje anda meio esquecido e maltrapilho. O Leblon é dos esquerdomachos. Todo o substrato da inveja universal, desde o dia em que a pedra de Caim transfigurou o rosto de Abel, consiste em projetar a sua raiva merecedora sob os ombros de quem supostamente não merece aquilo que você queria e não teve. Eu enxergo exatamente isto em mim mesmo, agora. Aristóteles dizia que o homem é um animal político. Discordo de Aristóteles. Eu só queria poder sentir o gostinho de negar o queijo de vez em quando, mas só tenho minha faca cega. Eis aqui o desabafo de alguém que nasceu na época errada.